Quando
Sergio Barroso de Mello
começou a advogar para empresas de seguro, verificou que o setor
contribuía com míseros 0,5% para o Produto Interno Bruto brasileiro.
Ficou surpreso ao perceber o salto para os atuais quase 5% da
participação desse ramo no somatório de todas as riquezas do país. E não
foi só a maior presença dessa área o que impressionou o especialista em
quase 30 anos de atuação. A consolidação do Direito Securitário foi a
grande e, na avaliação dele, a mais importante consequência desse
crescimento.
Mello conta que o tão esperado marco legal dos
seguros veio em 2003, com o novo Código Civil. De uma tacada só, um
capítulo com 50 artigos dirimiu as principais dúvidas do setor. “Esse
arcabouço jurídico entrou em vigor e provocou na Susep (Superintendência
de Seguros Privados), que é o órgão regulador, um sem-número de
circulares e orientações que adaptaram o mercado a essa nova norma. Isso
se refletiu no Poder Judiciário, que hoje conta com um ambiente
juridicamente seguro em relação a vários temas polêmicos”, explica o
advogado.
A segurança jurídica contribuiu para a expansão do
setor. Seguradoras internacionais investiram no país e produtos voltados
para os mais diversos públicos foram lançados, inclusive para a
população menos favorecida. De acordo com Mello, hoje o Brasil observa
um efeito então não previsto: a concessão de indenizações, pelo Poder
Judiciário, meramente por questões sociais.
“Há a interpretação
dos contratos pelo Judiciário um pouco mais flexibilizada, feita com
base em teorias modernas pelas quais, em casos de dúvida sobre as
cláusulas, julga-se a favor do segurado. Particularmente acho correta
essa teoria da interpretação do contrato em favor do segurado nos casos
em que existam dúvidas. Essa tese foi consagrada pelo Código do
Consumidor e temos que respeitá-la. Mas não é só isso: às vezes
encontramos no Judiciário (...) decisão muito mais ligada a uma
percepção social que à estrutura jurídica consagrada nos códigos”,
afirma.
A tendência cada vez maior do Judiciário de julgar de
“forma mais humana” os pedidos para o pagamento de sinistros, sobretudo
os feitos pelos mais carentes, ainda não chega a ser considerada um
problema para as seguradoras. Mas acendeu o alerta do setor, que vem
acompanhando com cautela as decisões.
“Política social quem faz
não é o Judiciário, mas os Poderes Executivo e Legislativo. O que
Judiciário faz é interpretar a lei, o negócio jurídico e o contrato. E
isso com base no direito e não em um sentimento social”, destaca o
advogado com conhecimento de causa. É que ele acabou de assumir cargo na
cúpula da principal entidade mundial do setor de seguros — a Associação
Internacional do Direito do Seguro (Aida, sigla em inglês).
Presente
em mais de 70 países, a Aida é uma entidade sem fins lucrativos, que
desenvolve atividades de estudo e pesquisa em Direito de Seguro e
Resseguro. Em outubro último, Mello assumiu a vice-presidência e se
tornou o primeiro brasileiro a ocupar um alto posto na associação. À
ConJur, ele fala sobre a importância para o Brasil dessa representação e os planos que tem para o seu mandato.
Leia na entrevista:
ConJur — Qual a importância para o Brasil ter um representante em uma entidade como a Aida?
Sergio Barroso de Mello — A Aida é uma
associação de advogados que atuam fundamentalmente na área de seguros. A
entidade tem 52 anos de existência, com sede em Londres, e está
presente em 78 países. É uma associação acadêmico-científica, de apoio
ao desenvolvimento desse setor. Ao longo de sua existência, muitos
estudos foram produzidos: o que gerou novos produtos, assim também como a
melhoria nas relações com os consumidores. Um exemplo é a franquia,
criada após estudos técnicos e jurídicos da Aida nos anos de 1970. As
regras de
compliance também são outro exemplo. Nos últimos
anos, a entidade tem tido uma preocupação grande de estudar regras e
boas práticas para manter a indústria de seguros firme. O objetivo da
entidade é ajudar no desenvolvimento saudável do mercado de seguros.
Interessa a todos um mercado economicamente forte, mas com acesso fácil
ao consumidor. Então, acho muito importante a participação efetiva do
Brasil nessa associação porque ela é vista no mundo inteiro como uma
grande companheira acadêmica e científica do mercado. Acho que o Brasil,
carimbando sua presença lá, deixará bem claro que se preocupa com o
desenvolvimento e a qualidade do setor de seguros. Por outro lado, essa
presença garantirá ao país acesso a tudo que está acontecendo no setor
em escala mundial. É claro que o mundo globalizado de hoje já nos
facilita o acesso a informações, mas há práticas acontecendo que nem
sempre encontramos na mídia da noite para o dia. Então, estando lá,
poderemos ver de perto tudo o que está acontecendo.
ConJur — Como vice-presidente, o senhor pretende apresentar alguma pauta de trabalho?
Sergio Barroso de Mello — O próximo congresso mundial
será no Rio de Janeiro, em 2018. E uma das minhas tarefas é fazer a
ponte entre a Aida Brasil, que é a organizadora do evento, e a Aida
mundial. Os congressos da Aida são preparados com muita antecedência,
pois nele são examinados de 15 a 20 temas. Os congressos são muito ricos
e profundos.
ConJur — Com relação ao arcabouço jurídico na área de seguros, como o senhor avalia o Brasil?
Sergio Barroso de Mello — O Brasil está muito bem
estruturado no campo jurídico. Até 2002, o Código Civil era a nossa
fonte principal para os contratos. Em 2003, com a atualização dessa lei,
passamos a ter um capítulo específico, o de número 15, com 50 artigos,
todos dedicados ao setor de seguros — de pessoas a propriedades em
geral. Esse arcabouço jurídico entrou em vigor e provocou na Susep, que é
o órgão regulador, um sem-número de circulares e orientações que
adaptaram o mercado a essa nova norma. Isso se refletiu no Poder
Judiciário, que hoje conta com um ambiente juridicamente seguro em
relação a vários temas polêmicos. Temos também uma segurança jurídica
enorme para efeito de operação na área de seguro e resseguro.
ConJur — Há algum tema ainda controverso para o setor e que necessitaria de lei específica?
Sergio Barroso de Mello — Acredito que
não. Vejo a nossa legislação muito bem preparada. Se compararmos o
Brasil não só com os nossos vizinhos — como a Argentina, Colômbia e
Chile, que contam com boas legislações — mas também com os países
europeus, veremos que a nossa legislação não é muito diferente. Na
verdade, temos uma lei muito parecida com a dos países mais
desenvolvidos. Isso até por conta do papel da Aida de promover a
harmonização da legislação no mundo inteiro. A associação produziu
vários projetos de lei, com linguagem e sistematização muito parecidas.
Isso gerou e está gerando leis parecidas sobre contratos de seguros.
ConJur — Como o senhor avalia a jurisprudência brasileira na área?
Sergio Barroso de Mello — Vejo que existem algumas
áreas de seguro, por exemplo como os de saúde, microsseguro, DPVAT e
outros de massa, que a sociedade menos favorecida, digamos assim,
adquire, mas tem certa dificuldade de interpretação. Há a interpretação
dos contratos pelo Judiciário um pouco mais flexibilizada, feita com
base em teorias modernas pelas quais, em casos de dúvida sobre as
cláusulas, julga-se a favor do segurado. Particularmente acho correta
essa teoria da interpretação do contrato em favor do segurado nos casos
em que existam dúvidas. Essa tese foi consagrada pelo Código do
Consumidor e temos que respeitá-la. Mas não é só isso: às vezes
encontramos no Judiciário, talvez até por desconhecimento da técnica do
seguro, decisão muito mais ligada a uma percepção social que à estrutura
jurídica consagrada nos códigos. Então, não é raro vermos, por exemplo,
uma decisão tecnicamente contrária ao Código Civil. Exemplos são as
ações de responsabilidade civil, que hoje abarrotam os tribunais.
Segundo estatísticas do CNJ, essas demandas são maioria no Judiciário e
não raro a questão do seguro está por trás de boa parte delas. Temos
visto que as interpretações adotadas, às vezes, ignoram a técnica do
contrato: ou seja, o próprio código. De um lado há uma família muito
carente, que não tem a menor condição de sobreviver, após o falecimento
de um familiar, se não for por meio do pagamento de uma indenização...
Essa é questão social que pode tocar um pouco mais o magistrado. Notamos
aí essa percepção do Judiciário de julgar com base em uma visão menos
jurídica e mais humana.
ConJur — Isso é ruim?
Sergio Barroso de Mello — Esse é o ponto. Quando
falamos em negócios, falamos também em segurança jurídica. Nenhum
empresário faz negócio se não houver segurança jurídica. E essa
segurança é fundamental para todos, inclusive os beneficiários, para que
possam saber o que é um direito, uma obrigação e até mesmo um dever.
Então, quando há uma decisão fora da lei, há a consagração da
insegurança jurídica, o que é ruim para todo mundo. Política social quem
faz não é o Judiciário, mas os Poderes Executivos e Legislativo. O que
Judiciário faz é interpretar a lei, o negócio jurídico e o contrato. E
isso com base no direito e não em um sentimento social. Do contrário,
ele poderá beneficiar um consumidor em um primeiro momento e em outro
trazer prejuízos com insegurança jurídica que estará provocando ao
acabar por afastar os consumidores da oportunidade de contratar novos
negócios com preços e condições melhores. Então, esse é um reflexo
indiscutível dessas decisões em seguro de massa.
ConJur — Essas interpretações ocorrem em qual escala? De fato tem preocupado as seguradoras?
Sergio Barroso de Mello — Acho que é uma coisa em menor
escala. É mais um movimento que estamos observando. Se olharmos para o
Judiciário como um todo, veremos que ele trabalha bem, que já teve uma
percepção diferente da área de seguros. Isso também porque no Código
Civil anterior havia uma regulação menor. O contrato de seguros era
visto de uma maneira diferente, não se tratava tão bem dele como agora.
Sobretudo a partir de 2003, quando o novo Código Civil entrou em vigor, a
segurança jurídica chegou ao Judiciário, que se debruçou sobre a norma e
passou a interpretá-la de maneira muito clara e tranquila. Isso fez com
que o mercado de seguros pudesse ter segurança jurídica para produzir
novos produtos, como os seguros populares. Os seguros massificados só
vão funcionar com essa segurança jurídica. Assim como outros.
Para fazermos um paralelo, temos os seguros de responsabilidade civil de
empresários. Hoje temos esse problema da Petrobras. Quem está
envolvido? Diretores, gerentes e conselheiros. Todos têm seguros de
responsabilidade civil, o famoso
D&O, que se desenvolveu no
Brasil ao longo desses anos pela boa segurança jurídica que extraímos
do capítulo de responsabilidade civil do novo Código Civil. Esse é um
belíssimo produto. Já se pagou indenizações em milhões de reais nesse
país, assim também como já se recolheu milhões de reais de prêmio. É um
seguro que atende a todos. Claro que a má-fé não está coberta, mas
muitas vezes o administrador de uma empresa pode se envolver numa
situação de corrupção sem saber e nesse caso ele estará coberto.
ConJur — Mas como provar se houve ou não má-fé?
Sergio Barroso de Mello — É difícil. A prova é
basicamente testemunhal e documental. Muitas vezes há um diretor
financeiro que pode estar junto com uma equipe produzindo a ilicitude.
Os diretores administrativo e comercial, por exemplo, não estão
enxergando isso. Aí vem o escândalo, a denúncia contra a empresa é
apresentada e o processo é aberto contra todos os diretores. O que vai
fazer o segurador de
D&O? Vai guardar a evolução desse
processo criminal. Ao final, se perceber que a responsabilidade é de
determinado diretor, aqueles que entraram de boa-fé e que não sabiam o
que estava acontecendo vai ter garantia do seguro. Esse é só um exemplo.
ConJur — Com relação à tributação, como é que o senhor vê as seguradoras mundiais que querem atuar no Brasil?
Sergio Barroso de Mello — Já tivemos uma discussão
muito forte sobre tributação quando o mercado de resseguros abriu. A
tributação acabou sendo consolidada. Confesso que não sou um
especialista em tributos, mas o que vimos da discussão foi a
interpretação equivocada sobre o aumento de alíquotas. Ao fim as
alíquotas aplicadas até foram razoáveis e isso não impediu a vinda de
resseguradores para o Brasil, tampouco o pagamento de indenizações.
ConJur — Para os advogados, como é o mercado de seguros?
Sergio Barroso de Mello — Faltam advogados com
conhecimento de seguros e resseguros no mercado. Temos muito poucos que
entendem a fundo a técnica e o direito desse setor. Quando eu comecei a
exercer essa atividade, o setor de seguros representava 0,5% do PIB.
Hoje chega quase a 5%. Foi um salto grande. E o potencial crescimento
desse setor é enorme. Há, então, muitas áreas a explorar. Não existe
nenhuma indústria que se sustente sem crédito e seguro. Esses são os
dois pilares fundamentais do desenvolvimento de qualquer negócio.
Precisamos de profissionais para dar sustentação a essa área.