As
diversas crises do sistema capitalista no século XX, muitas vezes
causadas ou agravadas pelos conflitos mundiais de 1914-1918 e 1939-1945
ou pelas guerras pós-coloniais, de entre as quais as mais expressivas
foram as da Coréia, da Argélia e do Vietnã, refletiram-se em alterações
normativas, com a criação de microssistemas ou de regimes de
qualificação autônomos, ao exemplo do Direito do Trabalho, do Direito do
Consumidor, das leis do inquilinato, de leis específicas para idosos,
crianças e outros vulneráveis. Essas transformações também receberam
diferentes tentativas de explicação e de justificação teórica, as quais
receberam diversos “selos” como a socialização ou a publicização do
Direito, posto que, na atualidade, seja muito arriscado se utilizar
dessas expressões sem riscos quanto à integridade e à coerência da
exposição da matéria analisada. É sempre bom recordar que Anton Menger
von Wolfensgrün, um dos célebres nomes da crítica ao Direito Civil
clássico, foi um dos primeiros a censurar as ideias de Karl Marx. A
ponto de ter sido publicamente contestado por Karl Kautsky, colaborador
de Friedrich Engels, sob o argumento de que suas ideias depositavam uma
fé irreal na capacidade de transformação do Direito. Segundo Kautsky, a
“concepção jurídica” desenvolvida por Menger seria tipicamente burguesa e
havia retirado Deus da centralidade do Direito e colocado, em seu
lugar, o homem. O “direito humano” sucedeu ao “direito divino”, assim
como o Estado teria substituído a Igreja.
Considerada essa
limitação histórica desses “novos direitos do século XX”, pode-se dizer
sobre eles que se lhes aplica a advertência do jovem Trancredi a seu
tio, o príncipe de Salina, no clássico (também do século passado) Il Gattopardo,
de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “A não ser que nos salvemos, dando-nos
as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas
permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.
Não é sem causa que
todos nós expressamos um sentimento de impotência diante dos quotidianos
abusos cometidos no âmbito de incidência de muitos desses direitos de
caráter especial e protetivo, que se destinam a regular as situações
jurídicas que fogem do paritetismo dos sistemas gerais. O fato de
termos uma das melhores legislações de consumo do mundo não foi
suficiente para que nos livrássemos das contínuas ofensas aos direitos
asseguradas pelo Código de Defesa do Consumidor, uma das mais
bem-sucedidas experiências normativas nacionais. As deficiências
regulatórias talvez sejam as mais importantes causas da ineficácia
protetiva das leis de proteção aos vulneráveis. Um exemplo disso é o
novo selo de identificação dos assentos nas aeronaves. Ao entrar em um
equipamento comercial para uma viagem interna, o passageiro poderá saber
qual o padrão de largura e de distância entre os assentos, conforme um
sistema de letras e de cores, semelhante ao que se encontram em
eletrodomésticos para informar o nível de consumo de energia elétrica.
Esse selo, uma determinação regulatória da Agência Nacional de Aviação
Civil (Anac), é tão informativo quanto inútil. Saber o quão
desconfortável será o voo é uma informação muito pouco relevante para um
passageiro, que sofrerá em si mesmo os efeitos desse desconforto.
Se
é verdadeira a premissa de que as normas dos direitos protetivos, ao
menos na lógica e na organização do sistema capitalista, não conseguem
resolver os conflitos sobre os quais pretendem incidir, qual seria sua
função? Podem-se identificar duas delas.
A primeira é
simbólico-pedagógica. Ressalvadas as hipóteses de regulação capturada ou
ineficiente, as normas protetivas legais (ou mesmo regulatórias) podem
induzir mudanças de comportamento; formas alternativas de controle
social de fornecedores; rejeições coletivas a produtos e a serviços
ofertados por determinada pessoa jurídica; reforço nos mecanismos de accountability;
alteração da cultura interna das empresas e perda do valor de mercado
das corporações. Tanto maior a essencialidade dos produtos ou serviços,
no entanto, tanto menor será o impacto dessa força simbólica e educativa
das normas protetivas de consumo. O exemplo do transporte aéreo é
eloquente: qual minha alternativa, diante de um duopólio no setor?
Deixar de voar ou submeter-me ao transporte aéreo em um avião que
ostenta o selo C ou D, na classificação da Anac para os assentos? A
resposta é ociosa.
A segunda função das leis protetivas
(especificamente de Direito do Consumidor) está na solução tópica, mesmo
que não individual, de problemas gerados pela assimetria de posições
técnicas (informações e conhecimento), econômicas e jurídicas entre
fornecedores e consumidores. É a funda de Davi contra o poderoso Golias.
O conhecimento e o estudo das normas de Direito do Consumidor também se
prestam a ampliar o foco dessa segunda função, na medida em que permite
o exame dos conflitos de maneira mais adequada e eficaz. Essa segunda
função, que se pode dizer corretiva, é mais (re)conhecida pelas
gentes. Seu efeito está nas milhares de sentenças proferidas
diariamente e que modificam ou declaram abusivas cláusulas contratuais;
reconhecem os direitos (legítimos) dos consumidores; retiram produtos
inadequados, perigosos ou nocivos do mercado; asseguram a fruição de
direitos e impedem a interrupções de outros tantos.
Há, no
entanto, de se reconhecer um inevitável(?) e deletério efeito colateral
da função corretiva dos direitos protetivos, especialmente os relativos
ao consumo, que é o abandono da técnica jurídica em nome de um certo moralismo interpretativo.
Se as normas protetivas são uma funda de Davi, cada Golias abatido é
uma glorificação para quem lhe atinge com a pedra pontiaguda da Justiça.
E nessa condição pretendem-se não apenas juízes, como todos os que
atuam no sistema jurídico, figurando, na linha de frente, os
doutrinadores.
As causas desse moralismo interpretativo,
que tem encontrado a crítica sincera e de variegada origem ideológica
nos textos e acórdãos de Lenio Luiz Streck, Paulo Roque Khouri, José
Oliveira Ascensão, José Antonio Dias Toffoli, Antonio Junqueira de
Azevedo, Martônio Barreto, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Antonio Carlos
Ferreira, Gabriel Nogueira Dias, Ingo Wolfgang Sarlet, José Antonio
Peres Gediel Torquato Castro Junior e outros igualmente notáveis
juristas, podem-se inventariar com alguma dificuldade.
É certo,
contudo, que a metáfora davídica, para além de sua expressividade e da
força imagética das figuras bíblicas, é também reveladora da atualidade
das discussões entre Menger e Kautsky. Não se pode querer que o Direito
assuma um papel de divindade laica, capaz de resolver todas as
injustiças de um sistema que é estruturalmente assimétrico, de onde,
aliás, para muitos, ele consegue retirar sua própria superação e
renovação contínuas. É preciso sempre recordar os limites históricos e
materiais do Direito e sua inserção em dado sistema econômico.
A
grande vantagem desse reconhecimento dos limites do Direito,
especialmente os morais, está em se deixar abertas as vias para o debate
em fóruns democráticos não jurídicos. Seguindo-se uma estrutura de
pensamento desenvolvida por Christian Edward Cyril Lynch,
[1] por este colunista e por José Antonio Dias Toffoli
[2],
no Império, o poder moderador era a chave para a solução dos conflitos
regionais e de classes, o qual era combinado com a ação de órgãos como o
Conselho de Estado, com a deliberada contenção do Exército e com a
indicação de pessoas oriundas de províncias diferentes para ocupar a
chefia civil e militar dessas unidades imperiais. Na Primeira República,
o mecanismo tornou-se o Estado de Sítio. Após a Revolução de 1930, o
protagonismo militar, que se havia ensaiado com o golpe republicano de
1889, tornou-se central no processo político. De 1930 a 1985, o Brasil
assemelhou-se aos últimos estágios do Império Romano, com as legiões
decidindo quem seriam os césares. Após 1988, o Poder Judiciário, sob a
liderança do Supremo Tribunal Federal, assumiu grande parte dessas
funções históricas anteriormente cometidas ao imperador, ao presidente
(no estado de sítio) e aos militares.
A procura pelo Poder
Judiciário, como disse Luiz Werneck Vianna, em uma das mais inteligentes
metáforas que já ouvi, assemelha-se à ocupação da praça Tahrir pelo
povo egípcio. As pessoas para lá se dirigiram porque acreditaram que
naquele espaço (um espaço físico, mas profundamente simbólico) é que
seriam resolvidos os conflitos que tragaram o Egito nos estertores da
era Mubarak. Os cidadãos recorrem à Justiça porque é nesse espaço (mais
simbólico do que físico) que lhes disseram, desde que foi aprovada a
“Constituição-Cidadã”, haver um pote de ouro no final do arco-íris.
A
vertigem desse novo poder, voltado para a defesa dos pobres e
vulneráveis, com a carga simbólica herdada da monarquia, foi ampliada
pela cooperação de um coro grego, a cantar loas em uníssono, que são
muitos professores de Direito, incapazes de exercer seu ofício com a
necessária e cívica função crítica, a nós atribuída pelo também
insuspeito ideologicamente Friedrich Carl Freirrer [barão] von Savigny,
em seu clássico Sistema de Direito Romano Atual.
As
jornadas de junho de 2013, com as pessoas quebrando bancos, lojas de
telefonia e outros símbolos da “sociedade de consumo”, que lhes
apresentou um igualitarismo (pós-?)moderno sob a forma da aquisição
permanente de bens supérfluos e de programada obsolescência, podem ter
sido o indício de que esse modelo começa a se esgotar. A ausência de
canais democráticos efetivos poderá conduzir para o radicalismo
totalitário, à esquerda ou à direita, ou à reinvenção dos mecanismos de
representatividade partidária, o melhor modelo de filtragem da vontade
popular até agora existente. O certo é que as pessoas começam a
despertar para os limites do Direito, especialmente no que se refere a
campos nos quais a prometida desigualdade seria superada por meio de
ações judiciais. Atrás da montanha, onde fica essa “praça Tahrir”
simbólica, há um exército de Golias.
O esperado enfraquecimento desse moralismo interpretativo,
que começa a despertar críticas doutrinárias, poderá permitir que o
Direito se volte para o rigor técnico e assuma os custos argumentativos
que lhes são inerentes. Eros Roberto Grau, a propósito, acaba de lançar a
sexta edição refundida de Ensaio e discurso sobre a a interpretação/aplicação do Direito sob o título Por que tenho medo dos juízes
(São Paulo: Malheiros, 2013), obra na qual ele expõe sua profissão de
fé positivista. Segundo ele, enquanto não mudarem os tempos e surgir uma
nova alvorada, ele continuará entoar o cântico de sua juventude, pois
aprendeu que a última barreira de proteção do pobre é a objetividade, a
igualdade e a cegueira da lei.
O respeito à técnica, às
categorias, ao rigor teórico, menos do que um apelo fora de moda a um
passado perdido, é uma necessidade de que o Direito preservará os
espaços duramente conquistados ao longo século contra o arbítrio da
política (leia-se, dos poderosos, quaisquer que sejam os nomes que se
lhes atribuam os povos, Kaiser, imperator, negus, xá, sultão ou presidente), da religião e dos supostos valores morais autônomos.
Os
juízes, professores, advogados, membros do Ministério Público, enfim,
todos os que oficiam perante essa deusa caprichosa e inatingível, a
respeito de cuja existência milhares de pessoas no mundo não duvidam
(até porque cursam faculdades de Direito e invocam-na nos templos em sua
honra, que são os tribunais), são cada vez mais úteis e necessários no
combate à mistificação do Direito. Não é preciso ser positivista,
naturalista, culturalista, criticista ou historicista para assim o
fazer.
[1] LYNCH, Christian Edward Cyril.
O momento monarquiano o poder moderador e o pensamento político imperial. Teses de Doutorado. Programas de Pós-graduação do IUPERJ/Ciência Política. Rio de Janeiro, 2007.
[2]
DIAS TOFFOLI, José Antonio Dias. O CNJ tira poderes das elites
estaduais. Entrevista por Eumano Silva e Leonel Rocha. Revista Época,
edição 712, p. 56-58, 9/1/2012.