Do autoritarismo ao respeito dos
direitos humanos, a nova proposta representa uma mudança radical na
legislação brasileira. A batalha não está ganha, mas a mudança foi
iniciada.
Já está com o Ministério da Justiça a proposta de projeto de lei para
substituir o atual Estatuto do Estrangeiro. O texto foi entregue no dia
29 de agosto ao ministro da pasta, José Eduardo Cardozo, por
integrantes da comissão de especialistas em migrações, criada pelo
próprio ministério.
O anteprojeto será enviado a outros órgãos do governo que também
atuam em áreas relacionadas à migração e, posteriormente, irá para o
Congresso Nacional.
A revisão da lei insere-se em um contexto de reformas migratórias em
curso desde 2011, quando foi identificado o aumento dos fluxos
migratórios no hemisfério Sul apontado por relatório da OIM (Organização
Internacional dos Migrantes).
Segundo a OIM, uma em cada 33 pessoas vive em um país diferente do
que nasceu. São 232 milhões de migrantes internacionais e 51 milhões de
pessoas forçadas a deixarem seus lares no mundo, aponta a ONU.
De acordo com a Polícia Federal, há 1,08 milhão de imigrantes no Brasil. A maioria é de portugueses, bolivianos e japoneses.
Entulho autoritário
Criada em 1980 durante a ditadura militar, a atual legislação que
regula a situação jurídica dos estrangeiros no Brasil é subordinada aos
temas de segurança nacional e proíbe, por exemplo, que o estrangeiro
organize ou participe de passeatas. A concessão de visto é “condicionada
aos interesses nacionais” e não interpretada como um direito do
migrante.
Ao receber a nova proposta, o ministro Cardozo chamou o atual
Estatuto do Estrangeiro de “arcaico” e “muito defasado historicamente”.
“O [atual] Estatuto é o que chamamos de entulho autoritário. Ele vê o
estrangeiro como ameaça e dificulta sua regularização”, diz a
integrante da comissão, Deisy Ventura.
Pela legislação atual, considerada atrasada pelo governo federal, os
vistos temporários são concedidos apenas aos estrangeiros que já tenham
emprego confirmado ou que venham ao país para estudos.
A regra é classificada pelos defensores dos direitos humanos como
“herança” da ditadura militar e incompatível com a Constituição.
“Quem é que ganha com o migrante numa situação dessas? Só os coiotes”, afirma a pesquisadora.
Foco nos direitos humanos
A proposta agora é mudar o tratamento dado ao estrangeiro para uma
perspectiva respeitosa dos direitos humanos e agilizar os processos de
regularização por meio da criação de um órgão civil para atendimento dos
migrantes.
Além de detalhar princípios, garantias e direitos dos estrangeiros, o
anteprojeto apresenta os tipos de vistos concedidos pelo Estado
brasileiro – entre eles, temporários, diplomáticos, de trânsito, asilo e
residência, inclusive para pessoas que trabalham em municípios
fronteiriços.
A matéria define ainda como serão as situações de repatriação e
deportação, naturalização, além de medidas vinculadas à mobilidade, como
expulsão e impedimento de ingresso. Estabelece também a estrutura
organizacional e as competências da Autoridade Nacional Migratória.
Outra mudança proposta é a substituição do termo “estrangeiro” por
“migrante”. Especialistas ponderam que “estrangeiro” tem conotação
pejorativa e reforça o preconceito que essas pessoas sofrem. A nova
tipologia, “migrantes”, inclui brasileiros que estejam no exterior.
“O Brasil vive hoje um novo momento de sua história. Se antes as
pessoas saíam do Brasil para viver fora, hoje temos o inverso: as
pessoas querem morar no Brasil. Isso faz com que o Estado brasileiro
precise de uma nova legislação”, disse. “É evidente que esse projeto
terá uma tramitação que, esperamos, seja célere no Legislativo”,
acrescenta o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. A expectativa é
que a matéria seja apresentada até o final do ano ao Congresso Nacional.
Cardozo destacou que uma das principais mudanças previstas no
anteprojeto será a possibilidade de se obter um “visto de busca de
trabalho”. Caso a proposta seja aprovada pelo Congresso Nacional e
sancionada pela Presidência da República, esse visto poderá ser obtido
no corpo consular do Brasil, em qualquer país do exterior. Tendo ele em
mãos, o estrangeiro terá o prazo de seis meses para conseguir um emprego
no Brasil. Isso evita que o estrangeiro tenha de passar pelos atuais
processos burocráticos para trocar seu visto de turista por um de
trabalho.
O ministro explicou a necessidade de se ter uma legislação mais
atual. “Nós quisemos reconhecer os direitos dos estrangeiros no Brasil e
atender às expectativas de mudanças adequadas à nova realidade
brasileira. O Brasil é um País que acolhe quem vem de outros países para
tentar uma vida melhor aqui. Nada mais justo do que termos uma nova lei
proposta por especialistas e feita de maneira colaborativa com vários
setores da sociedade”, explicou.
Durante o ato público de entrega do anteprojeto, Cardozo assinou um
aviso interministerial encaminhando à Casa Civil um projeto de lei que
reconhecerá como brasileiras pessoas sem nacionalidade reconhecida por
algum Estado, os chamados apátridas.
Projeto colaborativo
O ministro também lembrou A 1ª Conferência Nacional de Migrações e
Refúgio (Comigrar), promovida pelo Ministério da Justiça em parceria com
os Ministérios do Trabalho e das Relações Exteriores. Foi a primeira
vez que imigrantes e estrangeiros foram diretamente consultados para a
formulação de políticas públicas.
Um comitê de migrantes entregou ao ministro o Plano de Atenção aos
Migrantes, que sistematiza as 2.840 propostas coletadas e debatidas
durantes os seis meses, além de mais de 200 etapas preparatórias da
conferência que reuniu, em sua etapa nacional, quase 800 migrantes,
acadêmicos e militantes de 30 nacionalidade distintas.
O secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, por sua parte,
destacou que o texto foi bastante debatido. “Foram 2.126 pessoas
participando da elaboração de mais de 700 propostas”, resumiu. “Essas
propostas passaram por uma triagem, foram sistematizadas e montadas em
um caderno de trabalho”. Agora as propostas são oficialmente entregues
para gerar ambientes favoráveis a suas implementações em todo o estado
brasileiro.
O secretário destacou a importância da proposta no combate ao
preconceito. “Todas as searas do Estado brasileiro têm procurado se
mobilizar para rechaçar todas as formas de preconceitos e xenofobias.
Queremos deixar claro que os estrangeiros são bem-vindos no Brasil”,
disse ele.
Para Deisy Ventura, viver em situação clandestina seria ruim tanto
para o estrangeiro em território brasileiro como para o Brasil como um
todo. “As pessoas falam muito sobre o risco de uma invasão que resulte
em desemprego [para os brasileiros]. Mas esse risco não existe porque as
pessoas vêm justamente porque há trabalho [disponível] no país”.
“Nós sabemos quem ele [imigrantes estrangeiro] é e de onde ele vem.
Veja a diferença de quem chega pela fronteira em condições precárias,
que acaba precisando de ajuda humanitária”, disse a professora.
“Quando a gente vai conhecer essas pessoas, a gente vê que são
engenheiros, professores, advogados, mas como deram tudo o que tinham
para os coiotes, eles nos dão impressão de fragilidade. Mas eles têm
potencial extraordinário de trabalho”, ponderou ela.
Casos e retratos
A boliviana Ruth Mendonça participou de diversas conferências para a
elaboração do anteprojeto. A secretária formada em informática veio
morar no Brasil pela primeira vez em 1998. “Era uma época em que
bolivianos vinham para ser médicos ou costureiros. Eu vim para ser
costureira e não gostei”, disse.
Ela retornou à Bolívia para completar os estudos, e retornou ao Brasil
em 2005. “O Brasil é encantador. Por mais que um estrangeiro pense que
não voltará, ele voltará porque, de tão acolhedor, o Brasil faz com que o
estrangeiro não queira voltar à sua terra”, disse.
Representante da comissão da Organização das Nações Unidas para
refugiados, André Ramirez disse que o anteprojeto representa um “passo
muito significativo” para que o mundo avance no acesso das pessoas aos
direitos humanos. “É um dia simbólico em um mundo que, só hoje, tem mais
de 3 milhões de refugiados sírios. O Brasil claramente não está
apresentando apenas um exercício acadêmico, mas um trabalho de todos
setores e instituições para dar acesso dos imigrantes aos direitos
humanos”, destacou.
Zacarias Saavedra, 61, também boliviano, formado em história e
comunicação social, levou seis anos para conseguir se regularizar. Veio
em busca de tratamento de saúde para o filho.
“Foi muito difícil. Além do custo [com taxas e multa por estar
irregular], ia direto na Polícia Federal e a cada ida era uma exigência
diferente”, diz.
Durante o período irregular, não conseguiu um emprego formal e teve que
juntar latinhas para sobreviver. Agora, atua como agente social
orientando os compatriotas sobre a regularização.
Segundo o Cami (Centro de Apoio ao Migrante), os estrangeiros têm
esperado até um ano pelo RNE (Registro Nacional do Estrangeiro) e arcam
com ao menos R$ 1.200 no processo.
Enquanto aguardam, recebem um protocolo atestando o pedido de
regularização, mas esse documento é uma “filipeta” de papel (às vezes
vem sem foto) que não é reconhecido pela sociedade.
“O protocolo poderia ser uma solução, mas virou um problema porque
não se consegue nem abrir uma conta no banco com ele. Até a polícia
quando para a pessoa acha que é falso”, diz o padre Roque Patussi,
coordenador do Cami.
Propostas
Para sanar situações como essa, por exemplo, o anteprojeto feito por
uma comissão de especialistas a pedido do Ministério da Justiça propõe
criar um visto temporário de um ano para que o estrangeiro possa vir ao
Brasil procurar trabalho legalmente.
Atualmente, a regularização migratória está vinculada a uma oportunidade de emprego formal.
A proposta também é dar acesso à rede de serviços sociais e básicos
(educação, por exemplo) sem a obrigatoriedade de estarem regulares no
país.
O texto também propõe isenção do pagamento de taxas de regularização para aqueles que estiverem com dificuldades financeiras.
Isso também evitaria que estrangeiros em busca de melhores condições
de vida entrem com pedidos de refúgio (destinado somente aos que sofrem
perseguição política/religiosa no país de origem), o que dá direito
imediato ao trabalho provisório no país.
“Nós precisamos reconhecer o direito do estrangeiro no Brasil. O
Brasil é um país que acolhe o estrangeiro, que reconhece direitos. Nada
mais justo que tenhamos agora uma nova legislação”, disse o ministro
José Eduardo Cardozo (Justiça).
Para efetivar as medidas, o anteprojeto propõe a implantação de uma
autoridade migratória civil, que tiraria das mãos da Polícia Federal o
trabalho administrativo de regularização dos estrangeiros.
Com a criação desse órgão, na visão dos especialistas, evitaria que a
chegada de um fluxo migratório provocasse uma acolhida desordenada como
se deu a dos 400 haitianos vindos do Acre para São Paulo em abril deste
ano.
Destaques
- Visto temporário de um ano para procurar emprego legalmente no Brasil;
- Criação de um órgão civil para o processo de regularização migratória;
- Concessão de residência deixa de ser discricionariedade do Estado e passa a ser um direito do migrante;
- Acesso à educação, por exemplo, fica desvinculado da regularização migratória;
- Criação de um mecanismo de acolhida humanitária para atender fluxos pontuais de migração internacional;
- Migrantes com dificuldades financeiras passam a ser isentos do pagamento de taxas de regularização.
(Redaçã + Agências – 31/08/2014)