O
Brasil corre risco de se expor negativamente – e em praça pública – se o
painel que o Ministério da Agricultura pretende abrir na Organização
Mundial de Comércio (OMC) contra a União Europeia for adiante. A
disputa, que envolve recentes barreiras sanitárias impostas pelo bloco à
carne de frango brasileira, poderá jogar os holofotes sobre as
investigações da Polícia Federal (PF) no âmbito das diferentes etapas da
Operação Carne Fraca, que envolvem casos de corrupção entre
funcionários de frigoríficos e fiscais agropecuários e fraudes em testes
de salmonela. Nesse sentido, o painel poderá até atrapalhar os esforços
brasileiros para recuperar a credibilidade de seu sistema de inspeção
sanitária.
A crítica é de Pedro de Camargo Neto,
vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e ex-presidente da
Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne
Suína (Abipecs).
Aos 69 anos, Camargo Neto é um veterano em disputas
comerciais. Quando liderou a Secretaria de Produção e Comercialização do
Ministério da Agricultura, entre 2001 e 2002, foi o articulador das
vitórias obtidas pelo Brasil na OMC contra os Estados Unidos, devido ao
subsídio daquele país ao algodão, e contra o subsídio da UE ao açúcar.
Na semana passada, a Câmara de Comercio
Exterior (Camex) aprovou os estudos que podem levar à abertura do painel
contra a UE por causa da carne de frango. Mas, para Camargo Neto, o
caminho é equivocado. Para ele, as necessidades das companhias que
tiveram frigoríficos embargados – especialmente a BRF, que está proibida
de exportar à União Europeia – são urgentes, e o contencioso, além de
expor fragilidades sistêmicas brasileiras, levará anos para se resolver.
Confira abaixo, os principais trechos da entrevista com Camargo Neto, feita pelo jornal Valor Econômico:
Valor: É uma boa ideia abrir um painel
contra a União Europeia na OMC em razão das cotas e do embargo à carne
de frango do Brasil?
Pedro de Camargo Neto: Em qualquer painel eles
vão pôr o relatório da Polícia Federal lá. A gente vai se expor. É
totalmente errado. O caminho do contencioso é equivocado. Demora meses
para começar e anos para terminar. E precisamos de um resultado com
urgência. Não podemos esperar anos. Depois, a crise é de credibilidade.
Todo o problema vem de credibilidade e o contencioso não ajuda a
resolvê-lo. Pode até atrapalhar. Então esquece.
Valor: E como reconstruir a credibilidade do sistema brasileiro?
Camargo
Neto: Fui às reuniões do grupo técnico [criado ano passado pelo
Instituto Pensar Agro, braço da frente parlamentar agropecuária, para
estruturar uma reação à Carne Fraca]. E não via uma reação das empresas.
Há um problema de corrupção das empresas com os serviços públicos. A
BRF está pagando por não ter se posicionado. Ela nem ia à reunião. A JBS
é a única. Contratou o americano. É um negócio bem óbvio. Eu falava:
não tem liderança! Só associação [nas reuniões]. Cadê as empresas? Um
dia, eu cheguei e disse: a maior delas, a JBS, está com os controladores
presos, e a segunda maior, a BRF, está com o rabo preso.
Valor: Rabo preso?
Camargo Neto: Esses
e-mails que pegaram [na Operação Trapaça, a respeito das fraudes em
testes de salmonela]. Tinha problema. Eles tinham corrompido. Agora é o
seguinte: aconteceu, aconteceu. Vira o disco. Você não pode ficar
esperando. O que a ABPA [Associação Brasileira de Proteína Animal, que
representa as indústrias produtoras de carne de frango e carne suína]
devia ter feito? Preparar as empresas. Vamos chamar todo mundo aqui e
garantir conformidade. O discurso [deveria ter sido o de] “tem que
entrar na linha. Vamos melhorar tudo. Nós fomos pegos”.
Valor: Mas o discurso dominante após a Carne Fraca foi o de que a Polícia Federal estava errada.
Camargo
Neto: Exatamente. E eu mesmo ajudei nessa linha. Por quê? A Polícia
Federal exagerou, extrapolou. Mas pegou corrupção. Ela não estava
errada.
Bem ou mal, no fundo tinha uma verdade. Mas o Turra [o ex- ministro da
Agricultura Francisco Turra, presidente da ABPA] soube fazer isso
[criticar os equívocos da PF], o Temer fez bem. Mas o problema da Carne
Fraca continuou.
Valor: E depois veio a delação do Wesley
Batista, que prometeu entregar fiscais agropecuários que recebiam
“mensalinho” da JBS. Mas a lista ainda não apareceu…
Camargo Neto:
Mas pode aparecer. São 90 fiscais, cento e tantos técnicos. E tem a
delação do Daniel Gonçalves [ex-superintendente do Ministério da
Agricultura no Paraná, preso na Carne Fraca]. Então, o discurso deveria
ter sido: “Vamos revisar o relacionamento entre empresa e funcionários”.
Valor: Na época, o governo fez várias
promessas de revisão do sistema de inspeção sanitária. Que criaria uma
mega-agência de defesa. Mas vimos pouco acontecer.
Camargo Neto: Na
primeira reunião que a gente fez em Brasília [após a operação], o que se
identificava? O que era a Carne Fraca? Corrupção no Paraná,
relacionamento promíscuo entre superintendente e políticos. Então, como a
gente enfrenta isso? Daí alguém falou: o pessoal do Dipoa [Departamento
de Inspeção de Produtos de Origem Animal] quer verticalizar. Levar tudo
para Brasília. Uma boa ideia. Hoje, o fiscal federal do Paraná é
subordinado ao superintendente do Paraná. Ele segue a norma técnica
emitida por Brasília, mas salário, férias e a gestão dele quem resolve é
o Paraná. A verticalização era isso. Mas ficou seis meses parada na
secretaria-executiva. Foi publicado um decreto em dezembro. E a portaria
[que regulamenta a verticalização] só saiu dois dias depois da Trapaça.
Valor: E aquele outro projeto de criar uma taxa de abate para financiar a inspeção sanitária?
Camargo
Neto: Olha, esse projeto me foi apresentado na semana retrasada.
Apresentaram duas minutas de projeto de lei. Falei para o Rangel [Luis
Eduardo Rangel, secretário de Defesa Agropecuária]. Projeto de lei?
Agora? Ano eleitoral? É difícil. Não vejo ser possível aprovar. Rangel
vai mandar agora para o gabinete do ministro. Vai saber quanto tempo vai
ficar por lá. A verticalização, muito mais fácil, levou seis meses.
Depois vai para a Casa Civil. Depois, para o Congresso.
Valor: No setor, não havia grandes dúvidas
de que existia propina a fiscais. Mas não se sabia como isso se dava.
Como mudar o sistema?
Camargo Neto: Que existia, existia. Mas tem
níveis. Estamos no Brasil. Havia um regulamento de inspeção sanitária de
1947, que era para um setor desse “tamanhozinho”. E de repente nos
tornamos os maiores do mundo e não mudamos nada. Temos que modernizar a
inspeção. Por exemplo, numa época o fiscal ganhava hora extra, daí
tiraram a hora extra. Começaram a ganhar [por fora]. Entre esses 210 que
ganhavam do Wesley [Batista], deve ter uma boa parte que ganhava hora
extra. É até sacanagem chamar de propina. Mas não dá para explicar ao
europeu. É o jeitinho brasileiro.
Valor: As investigações da Operação Trapaça, que envolvem BRF e laboratórios, não são mais graves?
Camargo
Neto: Aí não é hora extra. A Carne Fraca e a Trapaça são distintas.
Vamos ficar na Carne Fraca… O que aconteceu? Os fiscais ficaram com
medo. Pararam de receber hora extra e pararam de trabalhar. E travou o
sistema de inspeção. Existia um jeitinho brasileiro de operar aquilo. A
Carne Fraca acabou com o jeitinho brasileiro.
Valor: O que se alega é que, em algumas
unidades, principalmente de aves, o ritmo de abates diminuiu bastante de
modo que o custo de produção subiu em 30%.
Camargo Neto: Paciência. Se os caras faziam coisa errada, tem que subir custo mesmo. Tem que ter norma. Tem que seguir regra.
Valor: Mas de algum modo era preciso uma adaptação, já que a lei é antiga…
Camargo
Neto: Sim. A verticalização foi um passo. Outra linha de ação é o
autocontrole. A ideia é aumentar a responsabilidade da empresa. O
autocontrole é muito importante. Não tem sentido ter o fiscal
agropecuário. Para a exportação, algumas coisas vão continuar sendo
feitas com fiscais. Mas não tudo.
Valor: Mas como discutir autocontrole se o problema apontado pela Operação Trapaça é que a BRF teria burlado seus controles?
Camargo
Neto: Para entrar no autocontrole, é preciso assumir compromissos.
Então, se a fiscalização pegar que a empresa não está trabalhando, quem
se comprometeu é responsável.
Valor: Mas por que o europeu aceitaria o autocontrole se a maior exportadora de frango do país teve esse problema?
Camargo
Neto: Eu não encaro a acabou com ele” União Europeia, o serviço
sanitário, como [alguém que] veio aqui para ferrar. Não vi isso. Na
Carne Fraca, que é um escândalo mundial, todo produtor da Europa ficou
contra o Brasil. Queriam que fechasse o Brasil. O comissário europeu
pega o avião, passa uma semana no Brasil [no ano passado] para poder
voltar lá e falar para não fechar. Ele fez um relatório e mandou uma
carta ao ministro [da Agricultura do Brasil] informando o que esperava.
Valor: Aí começa o problema?
Camargo
Neto: O Brasil provavelmente não cumpriu nada. É histórico. O Brasil não
costuma responder questionário. Não vi o que aconteceu aqui, mas
garanto que tem um ano de não cumprimento de promessa. E a gente sabe
que a verticalização demorou. Teria que ter saído a verticalização
imediatamente e depois entrar com autocontrole.
Valor: E a questão dos recursos? Também se diz que falta dinheiro.
Camargo
Neto: No Brasil, falta recurso para tudo. Principalmente para educação.
Se você quiser fazer hoje do mesmo jeitinho que você fazia há 70 anos,
não tem dinheiro que chegue. É preciso fazer as mesmas coisas de maneira
mais eficiente, mais criativa, mais moderna, se enquadrando no
orçamento. Acho que é um pouco por aí. Essa modernização implica em
aumentar a eficiência, a responsabilidade em assumir compromisso.
Valor: Então não é arranjar um modelo que
crie tarifa de abate?
Camargo Neto: A proposta deles [do Ministério da
Agricultura] é um
modelo que cria tarifa. Mas o problema vai ser a gestão do dinheiro.
Valor: O risco é o dinheiro parar na conta do Tesouro Nacional…
Camargo
Neto: O Ministério da Agricultura está trabalhando nesse novo projeto
de lei. Está criando uma maneira de ter uma conta própria para não
perder o dinheiro. A Secretaria de Defesa Agropecuária seria mais forte e
mais independente do ministério. É o modelo da Receita Federal. Eu acho
que tem que ser por aí mesmo.
Valor: Voltando à BRF, o que fazer para solucionar o problema?
Camargo
Neto: Acho que ter prendido o Pedro Faria [ex-CEO da empresa] foi uma
arbitrariedade. O cara nem mais presidente era. Você prende ou porque
vai fugir ou porque pode destruir prova. Agora, prendeu para prestar
depoimento. Europeu não consegue entender. E isso pegou. Quando eles
viram o presidente preso, resolveram punir a firma inteira… Pensaram: se
a cabeça está ruim, a firma inteira está.
Valor: E o que fazer agora?
Camargo
Neto: Na minha opinião, eles tinham que contratar um escritório de
advocacia, com especialização em compliance, de preferência europeu.
Chamar os caras e falar para fazer um pente fino, ver todos os
procedimentos. [E dizer:] Se tinha erros, desculpe, agora não tem mais.
Valor: Mas a empresa informou em nota que mudou procedimentos depois da Operação Carne Fraca.
Camargo
Neto: É muito pouco. Acho que não reviu. Tem que mudar, tem que chegar e
pelo menos escolher um bode expiatório. Vai trabalhar em outro lugar
porque você fez besteira aqui. Quem tinha um relacionamento promíscuo
com fiscal, sai. Tem que demitir o cara que mandou corromper. Não é
inventar a roda. É copiar o que os caras fazem lá fora. Ninguém
enxergou. A única que enxergou foi a JBS.
Valor: E qual vai ser o jeito de recolocar a BRF no mercado?
Camargo
Neto: A BRF não pode ficar esperando. Ela tem que contratar alguém. Ela
tem que contratar o Almanza europeu, uma empresa que faça isso na
Europa. Com a credibilidade do Almanza para vir fazer um estudo, sugerir
alterações e daí ir lá [na União Europeia explicar]. É o óbvio.
Valor: Mas no Brasil não há uma cultura de pedido de desculpas.
Camargo Neto: O cara erra e quer falar que não fez nada. Diz: Errei e consertei
(Assessoria de Comunicação, 4/5/18)