Anular uma sentença arbitral é aprimorar o sistema, é prestigiar as outras sentenças arbitrais que são boas. É também impedir que isso ocorra novamente, porque senão vira um sistema autoritário.
A opinião é do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo Fernando Maia da Cunha. Especialista em Direito Empresarial, foi presidente da Seção de Direito Privado do TJ-SP no biênio 2010/2011. Na ocasião, idealizou a criação da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, da qual foi integrante de 2012 a 2016.
Maia da Cunha foi magistrado de carreira no TJ-SP de janeiro de 1981 até sua aposentadoria em setembro de 2019. Em entrevista exclusiva à ConJur, o agora sócio consultor do Warde Advogados falou sobre a modernização e informatização do tribunal nos últimos 15 anos, de anulações e sigilos em sentenças arbitrais e da importância das Câmaras Empresariais.
"Era imprescindível que São Paulo tivesse uma jurisprudência que desse segurança jurídica à grande comunidade empresarial que se concentra no estado. A Câmara Empresarial em seguida se uniu à Câmara de Recuperação e Falência, e, hoje, há duas Câmaras Empresariais que têm feito um trabalho excelente na jurisprudência", afirmou.
Leia a entrevista:
ConJur — Por que o senhor decidiu ingressar na magistratura e, ao se aposentar, atuar na advocacia?
Maia da Cunha — Ser juiz sempre foi um sonho. Na
primeira instância, ser juiz de Vara Cível no Fórum João Mendes quase 12
anos, integrar o TRE de 2002 a 2004, participar de comissões e da
criação dos Juizados de Pequenas Causas (hoje Juizados) e integrar o 1º
Colégio Recursal (então único no Estado), nos idos de 1985, foram
aprendizados muito ricos para minha carreira.
No tribunal, presidir a Seção de Direito Privado em 2010/2011, compor a 1ª Câmara Empresarial por vários anos, integrar o Conselho Superior da Magistratura, participar do Conselho Superior da Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados) e dirigir a Escola Paulista da Magistratura em 2014/2016, dentre outras, foram experiências riquíssimas. Foram quase 39 anos vivendo intensamente o sonho de ser juiz e participar de tudo que eu podia ser útil.
Me aposentei por várias razões. A minha forma de julgar implicava conhecimento e estudo pessoal de cada caso concreto, o que não era mais possível pela quantidade de recursos. Não, pelo menos, com as minhas limitações, o que gerava grande prejuízo à família, aos estudos e participação na área acadêmica. Resolvi que precisava de mais tempo sem prejudicar a minha atuação jurisdicional. Tive uma carreira feliz na magistratura e estou feliz hoje na consultoria que faço na advocacia.
ConJur — O senhor participou do maior projeto de racionalização e modernização da Justiça de São Paulo. Como foi essa aventura?
Maia da Cunha — Os últimos 15 anos foram de
transformações no mundo em geral e não poderia ter sido diferente na
Justiça de São Paulo. Difícil fazer uma narrativa porque as mudanças
foram acontecendo ao longo do tempo. Particularmente, dentre tantos
outros fatos e circunstâncias, considero relevantes destacar, nesse
processo de modernização, a eleição para metade do Órgão Especial
(2005), a integração dos presidentes de Seção ao Conselho Superior da
Magistratura (2010) e elegibilidade de todos os desembargadores para os
cargos de direção do TJ (2012). As decisões que ponderam as iniciativas
dos mais jovens com a experiência dos mais antigos costumam ser
benéficas aos órgãos judiciais. Esses três pontos trouxeram ao tribunal,
paulatinamente, uma modernização. O tribunal ficou mais
democrático. Para mim, particularmente, como disse, foi muito
enriquecedor participar, direta e indiretamente, desse processo.
ConJur — Como
o senhor avalia a resposta do Judiciário à pandemia, com trabalho
remoto, audiências virtuais e uso cada vez maior de novas tecnologias? O
caminho do Judiciário é esse: investimentos em informatização?
Maia da Cunha — A pandemia veio depois da minha saída, mas só
ouvi elogios em relação às providências tomadas pelo TJ-SP. Em menos de
15 dias, sem parar e não obstante a sua grandeza em todos os aspectos, o
tribunal passou a funcionar remotamente. Isso é um feito que merece
todos os elogios à gestão atual do TJ-SP, que responde por quase 25% dos
processos em andamento no Brasil, ou seja, dos 77 milhões em
tramitação, 19 milhões estão no TJ-SP. Só na primeira instância são 320
comarcas e 1.529 varas. E agora tudo funcionando virtualmente. A
informatização do tribunal, como em tudo, é um caminho inevitável. E o
que se fez na pandemia certamente não seria possível se não fossem os
investimentos que o TJ fez na informática nos últimos dez anos.
Além disso, a produtividade alcançada faz presumir que não voltará mais a ser o que era. Será presencial e virtual, eu penso — talvez na proporção de 60% virtual e 40% físico, desde que sempre haja um juiz na comarca [após a entrevista, o TJ-SP publicou uma resolução que regulamenta o teletrabalho após a pandemia].
ConJur — Até
que ponto a automatização do processo judicial vai substituir pessoas?
Como o senhor vê projetos com robôs e inteligência artificial?
Maia da Cunha — Não acredito que a virtualização e os processos
digitais substituirão pessoas. A peculiaridade dos serviços judiciais
exige a presença das pessoas movimentando os computadores. Claro que não
é fora de propósito pensar que poderá haver redução em setores ou
departamentos específicos em que a inteligência artificial e robôs
poderão realizar os atos repetitivos ou de condutas semelhantes. Por
exemplo, nas execuções fiscais: além de uma quantidade absurda de
processos, o rito é o mesmo, então é possível usar robôs, que é o que
fazem os bancos hoje com a inteligência artificial. O que sei é que o TJ
estuda o fenômeno mais ou menos em sintonia com a própria
informatização.
ConJur — O que redução da faixa etária de juízes e desembargadores tem mudado o perfil da Justiça de São Paulo?
Maia da Cunha — É sempre salutar que os mais jovens participem
das decisões com os mais antigos. Isso mantém o tribunal mais
sintonizado com o mundo atual e suas alterações e desafios.
ConJur — O
senhor acredita que há um movimento de juízes se aposentando cada vez
mais cedo, como ocorreu com o ministro do STJ Nefi Cordeiro, que
surpreendeu a todos ao se aposentar aos 57 anos?
Maia da Cunha — Não consigo ver um "movimento" de juízes se
aposentando mais cedo. Houve uma transformação do mundo na última década
e o Judiciário não ficou fora das mudanças. Não tenho dados para
afirmar que hoje se aposentam mais magistrados do que há dez anos. Pode
ser que o tempo mostre que os atrativos da carreira não são mais
suficientes a manter os juízes e juízas até o tempo limite de idade.
No TJ, houve aposentadorias nos últimos anos antes da compulsória. Talvez um número acima do normal, mas acredito que não foi exatamente por falta de atrativos na carreira, mas sim por circunstâncias peculiares aos aposentados.
ConJur — Ano passado,
ministros do STJ, como o João Otavio Noronha e Rogério Schietti,
disseram que a Justiça de São Paulo rema contra questões pacificadas
pelos tribunais superiores, especialmente em matéria criminal. O senhor
acredita que juízes de São Paulo são mais punitivistas?
Maia da Cunha — Seria leviano da minha parte comentar o que
ocorre no Direito Criminal sem dele ter participado e sem ter elementos
acerca de descumprimento do que o STJ decide ou de maior rigor do que a
média. No que se refere ao Direito Privado, as decisões da 4ª Câmara,
ainda que com anotação de posicionamentos pessoais diferentes, sempre
seguiram a jurisprudência do STJ, especialmente aquelas resultantes de
recursos repetitivos. Em 2010/2011, quando fui presidente da Seção de
Direito Privado, não recebi reclamações a respeito.
ConJur — O
senhor participou da implantação da 1ª Câmara Empresarial do TJ-SP.
Como foi esse trabalho e qual a importância de ter a especialização na
área empresarial, especialmente em época de crise econômica?
Maia da Cunha — Quando assumi a presidência da Seção de Direito
Privado, tinha como uma das metas uma especialização maior do que a
existente. São Paulo concentra quase a totalidade das sedes das grandes
empresas. E o empresário é muito rápido, não tem paciência nem tempo
para esperar o fim de uma demanda que leva alguns anos. No fim do mês,
tem folha de pagamento, estoque, cliente e toda a dinâmica empresarial
da vida que segue. Então era uma grande pretensão que eu tinha.
A primeira proposta que fiz para criação da Câmara Reservada de Direito Empresarial acabou sendo aprovada, não sem muito trabalho de convencimento do CSM e dos integrantes do OE. A proposta foi feita oficialmente em novembro de 2010, que se transformou na Resolução 538 apenas em fevereiro de 2011.
Era imprescindível que São Paulo tivesse uma jurisprudência que desse segurança jurídica à grande comunidade empresarial que se concentra no estado. A Câmara Empresarial em seguida se uniu à Câmara de Recuperação e Falência, e, até hoje, há duas Câmaras Empresariais que têm feito um trabalho excelente na jurisprudência. Ao longo do tempo e com a participação efetiva do desembargador Manoel Pereira Calças [ex-presidente do TJ-SP], um entusiasta do Direito Empresarial, as Câmaras ficaram exclusivas, e foram criadas as Varas Empresariais na capital e na 1ª RAJ, que inclui mais de 30 comarcas ao redor da cidade de São Paulo.
ConJur — Desde
o início da pandemia, aumentou a demanda da área empresarial com mais
pedidos de recuperação judicial e de falências. Há algum caminho para se
evitar o acúmulo de processos em Varas e Câmaras Empresariais? Como o
senhor vê a atuação do Legislativo em questões empresariais ao longo da
pandemia, como a Lei 14.112/20?
Maia da Cunha — A Lei 14.112
criou uma obrigatoriedade na conciliação como tentativa de desafogar um
pouco a recuperação judicial. Mas a única forma de fazer uma
conciliação, com uma negociação mais equilibrada, é entrar com uma ação
cautelar pedindo para o juiz conceder uma tutela para suspender as
execuções. E aí ocorre mais judicialização. Quer dizer, para tentar
resolver a judicialização compondo os interesses, antes é preciso ir ao
Judiciário. Não há outra solução no caso da recuperação porque sem
equilíbrio da devedora e credores não há conciliação. E acredito que até
junho haverá outro aumento substancial de insolvências em decorrência
da segunda onda da pandemia.
ConJur — A arbitragem tem
sido um tema recorrente no Judiciário brasileiro e houve um aumento no
número de sentenças arbitrais anuladas em 2ª instância. Como o senhor vê
a arbitragem? É preciso melhorias no modelo?
Maia da Cunha — A arbitragem sempre foi um caminho para a
solução dos conflitos empresariais, especialmente os de empresas de
grande porte. A legislação é clara e a jurisprudência dos tribunais
sempre prestigiou a justiça arbitral. Todo modelo precisa de constante
melhoria, sob pena de não serem corrigidos problemas que podem ocorrer.
Algum aumento nas ações de nulidade da sentença arbitral, bem como
algumas anulações, não desprestigiam o instituto da arbitragem. Há
previsão legal do controle judicial de legalidade da sentença arbitral.
E, dentro das hipóteses de revisão previstas na Lei de Arbitragem,
não pode ser visto como prejudicial à justiça privada. Anular uma
sentença arbitral é aprimorar o sistema, é prestigiar as outras
sentenças arbitrais que são boas. É também impedir que isso ocorra
novamente, porque senão vira um sistema autoritário.
ConJur — O
TJ-SP também tem retirado o sigilo de sentenças arbitrais e alguns
magistrados têm criticado o fato de o segredo de Justiça ser a regra
nesse modelo. Para o senhor, as sentenças arbitrais devem ser mantidas
em sigilo ou deve-se priorizar a transparência?
Maia da Cunha — A questão do sigilo dos procedimentos de
arbitragem não é tão nova. Diante das grandes mudanças ocorridas na
sociedade em geral depois da edição da Lei de Arbitragem, talvez seja um
bom momento para a comunidade jurídica refletir a respeito. Há pontos
positivos e pontos negativos. Ao mesmo tempo que pode preservar as
empresas envolvidas e seus litígios, não contribui com a jurisprudência
para o aprimoramento do Direito Empresarial. Se pode preservar as
empresas, também pode prejudicar o direito que, sobretudo nas companhias
abertas, os acionistas têm de conhecer os litígios que as envolvem. De
outro lado não há aperfeiçoamento do Direito Empresarial porque, embora
sejam grandes juristas que proferem as sentenças arbitrais, as decisões
ficam em segredo. O risco é criar um direito próprio de uma comunidade
que não é tão grande. Seja como for, o sigilo não pode ser motivo para
evitar a discussão judicial e a necessidade de transparência se assim
entendeu o tribunal naqueles casos concretos.
https://www.conjur.com.br/2021-mai-02/entrevista-maia-cunha-especialista-direito-empresarial