Por uma questão histórico-cultural, Judiciário, Ministério Público e polícias no Brasil sempre toleraram pequenos abusos em prol de uma política criminal focada na punição dos criminosos como resposta à sociedade. Esses dribles na lei e na jurisprudência, em mais do que alguns casos, se tornaram práticas consolidadas. E isso não é mais aceitável. É preciso reavaliar o custo de condenações com lastro em abusos de direito.
Quem avisa é o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça. No último ano, ele relatou três julgados que apontam para a necessidade de a persecução penal respeitar garantias constitucionais, mas também os procedimentos estabelecidos em lei. Em entrevista à ConJur, explica que o objetivo é que se deixe de aceitar como natural e normal o que de fato não é.
"Nós sempre toleramos esses pequenos abusos, que muitas vezes são grandes abusos, e consolidamos jurisprudência que acaba coonestando essas práticas. Isso pode até render, do ponto de vista do número de condenações, um resultado positivo para a sociedade. Mas o que nós precisamos avaliar é a que preço, que custo, representa a condenação que teve como lastro uma violação grave a direitos", afirma.
Esse pensamento guiou o precedente mais recente da 6ª Turma do STJ. Em março de 2021, o colegiado definiu que o policial que invadir uma residência sem mandado judicial deverá filmar a autorização do morador. O julgado dá prazo de um ano para as PMs brasileiras se adaptarem, mas já rendeu resultados. O ministro foi avisado de que Mato Grosso e Rio de Janeiro estão empenhados na aquisição de câmeras para acoplagem nas fardas, de modo a cumprir a decisão. Isso se soma a outros estados que já usam essa tecnologia, ainda que de maneira incipiente, como São Paulo e Santa Catarina.
"Isso vai causar, inclusive, redução do número de situações de confronto, de acusações de violações aos direitos humanos, e vai proteger o cidadão contra abusos que possam vir a ocorrer nessas ações", adianta o ministro. Antes, Schietti já havia relatado também acórdãos em que o colegiado proibiu a fixação de regime fechado aos pequenos traficantes e em que vetou condenações baseada exclusivamente em reconhecimento por foto.
Leia a entrevista
ConJur
— Por que a 6ª Turma decidiu adotar uma postura mais incisiva na
questão da validade da invasão de domicílio por policiais sem
autorização judicial?
Rogerio Schietti — Esse tema já tinha alguns marcos importantes na história do Direito Constitucional aplicado no Brasil. O Supremo Tribunal Federal já havia reconhecido em repercussão geral, em 2010, a necessidade de que, para o ingresso no domicílio de alguém suspeito de estar cometendo algum crime, que o policial avaliasse as circunstâncias para concluir se haveria fundado motivo, justa causa, fundada suspeita. As
expressões são variadas, mas uma razão plausível para ingressar em
domicílio seria a firme e objetiva crença de que ali iria flagrar a
prática criminosa e encontrar alguma substância, objeto, produto do
crime. E o meio ordinário que qualquer cidadão pode esperar,
na sua relação com o Estado, no que diz respeito a sua inviolabilidade
de domicílio, é que este só possa ser devassado por uma ordem judicial,
após uma análise criteriosa de um juiz de direito competente. Então o Supremo lá atrás, em 2010, já sinalizou uma importante mudança.
ConJur — E essa jurisprudência é, ainda, dominante.
Schietti — Essa jurisprudência foi sendo, digamos, aplicada moderadamente, sem uma firmeza por parte de alguns tribunais e juízes,
que às vezes toleravam a prática de invadir residências, pelo fato de
ter sido descoberta droga dentro da residência, e que, portanto, estava
em curso um crime permanente. Então quando a
polícia ingressava em uma residência e encontrava droga ou arma isso
servia como uma espécie de justificativa para considerar aquela
diligência conforme ao Direito, porque afinal de contas estaria sendo
cometido um crime permanente. Nós começamos a questionar
algumas situações, e o STJ teve decisões importantes desde 2017, quando
passou a exigir um critério mais rigoroso na avaliação desse ingresso em
domicílio. Agora, em 2021, nós acrescentamos algo que até então não havia sido enfrentado da maneira como deveria, que é analisar em que consiste o consentimento do morador que tem a sua casa invadida em uma diligência policial.
ConJur — Como esse consentimento é expressado até agora?
Schietti — Em quase todos os processos que analisados, a situação fática é muito similar: um suspeito por estar em uma localidade em que se comercializam drogas ou por ser alvo de denúncia anônima, é abordado, fora da residência ou longe dela, e às vezes até apreende-se droga em seu poder; perguntado se autoriza o ingresso na residência e ele, supostamente, responde positivamente. Nós começamos a perceber, evidentemente, que nenhuma
pessoa que possua drogas dentro se sua residência vai autorizar,
livremente, sem nenhum tipo de indução ou coação, que a polícia vasculhe
sua casa. A conclusão que nós podemos extrair é que esses
consentimentos não reproduzem, pelas regras de experiência e pelo senso
comum, uma situação real.
ConJur — Presume-se uma coação.
Schietti — Não necessariamente com uso de
violência ou coação, mas a própria situação concreta, circunstancial, em
que uma pessoa abordada na rua, na porta da sua casa por dois, três,
quatro policiais fortemente armados, numa atitude de um certo confronto,
dificilmente se terá um consentimento livre, voluntário, isento de
qualquer tipo de pressão. Com isso, nós pensamos o que poderia ser feito para dar conformidade à ação policial em relação ao modelo constitucional, inclusive para o policial precaver-se contra eventuais acusações de abuso de poder. Fomos buscar o auxílio do Direito estrangeiro e constatamos que em vários países existe uma regulamentação
ou uma jurisprudência, trazendo especificações de como deveria ser a
avaliação do policial e seu procedimento no momento de abordar um
suspeito e solicitar o ingresso em seu domicílio.
ConJur — A necessidade de comprovar a autorização.
Schietti — Estabelecemos, à luz do que já se pratica em muitos
países, alguns critérios, algumas condições para que esse ingresso
ocorra. Primeiro, espera-se que o próprio suspeito expressamente
autorize a entrada. Não pode haver uma autorização implícita, ela deve
ser clara, inequívoca, de que os policiais podem, sim, ingressar na
residência para buscar a prova do crime ou o objeto do crime. E cabe ao
Estado realizar essa prova. Segundo, que esse consentimento não pode,
portanto, estar cercado de circunstâncias que o fragilizem ou o
vulnerabilizem.
ConJur — Como esse entendimento se aplica nas hipóteses em que o crime é permanente, como é o tráfico de drogas?
Schietti — Nossa interpretação, com base em farta doutrina, é
que o flagrante delito que autoriza alguém a entrar no domicílio de
outra pessoa é aquele com caráter de um dano iminente, de uma
necessidade de urgente intervenção. Os exemplos são de alguém que está
sendo vítima de agressões ou de uma tentativa de homicídio, sequestro,
roubo, enfim, crimes que não podem aguardar um mandado judicial para
serem cessados, porque, caso contrário, se se aguardasse, a vítima
pereceria. No caso do tráfico de entorpecentes, a não ser que se
comprove que o suspeito, ciente da ação policial, poderá desfazer-se da
droga ou ocultá-la, nada justifica dispensar o mandato judicial. Se a
polícia tem conhecimento, por observação, fotografias, testemunhos etc,
que em determinada residência se realiza tráfico, deverá se dirigir ao
juízo competente, por meio do Ministério Público, e solicitar um mandado
de busca e apreensão.
ConJur — Alguma vez o senhor já se
deparou com algum caso em seu gabinete em que uma autorização para
entrada em domicílio foi não-verbal?
Schietti — Não. E quando nós vamos ler os
depoimentos dos policiais, a narrativa é quase invariavelmente a mesma. O
Policial A faz uma narrativa do que aconteceu e o Policial B diz
exatamente a mesma coisa, o que sugere ou uma realmente incrível
capacidade de relatar um fato histórico com as mesmas palavras ou um
comodismo da autoridade responsável pela lavratura do auto. Nós temos que começar a refletir — e alguns já escreveram acerca disso no Brasil — sobre o valor da prova produzida por depoimentos de policiais, no caso de autuações em flagrante. Se esses depoimentos gozam, a priori, de credibilidade, temos
que considerar que essa afirmação sofre alguma ressalva quando vivemos
situações no Brasil em que, nas periferias, ocorrem sistemáticas
violações a direitos humanos.
ConJur — É palavra contra palavra.
Schietti — Veja, o policial, depois de meses ou
anos será indagado sobre uma diligência de que ele foi protagonista
tempos atrás, igual a tantas outras. Qual a capacidade mnemônica que
esse policial terá para recordar os detalhes deste acontecimento tão
rotineiro na sua vida? Então este depoimento prestado na Polícia Civil
no momento de lavrar o auto de prisão em flagrante costuma ser
determinante. E eles relatam isso: "chegamos à
residência a partir de uma denúncia anônima, onde o suspeito ou a sua
mãe franqueou o acesso". Ora, vamos ser realistas: alguém em sã
consciência, recebendo a visita de policiais militares armados na porta
de sua casa, vai livremente permitir que seja vasculhada? Não pode haver
liberdade de consentimento numa situação dessas. Por isso,
essas diligências só serão válidas se o morador, ao consentir, o fizer
por escrito, ou se não tiver a possibilidade de fazê-lo, que haja
testemunhas que possam atestar este consentimento. E mais do que tudo: diligências policiais invasivas à esfera das liberdades das pessoas precisam ser inequivocamente comprovadas, e isso é melhor feito por meio de registro de áudio e vídeo.
ConJur
— Qual é a confiança que o senhor tem de que um policial prestes a
entrar na casa de um traficante vai parar para filmar a autorização
dele?
Schietti — Isso já existe em várias Polícias Militares, em
viaturas de Polícias Militares, que filmam, por exemplo, perseguições,
tiroteios, abordagens, mas o que nós queremos é que isso seja
incorporado à praxe, ao cotidiano, estabelecendo um protocolo de atuação
das polícias em todas as situações que poderão suscitar algum tipo de
questionamento. Nada mais simples do que acoplar, ao uniforme, ao
capacete, uma pequena câmera GoPro, que nem custa tanto assim. O Estado
investe milhões e milhões de reais na compra de armamentos, de viaturas,
uniformes, pode perfeitamente destinar um pouco dessas verbas para
munir os policiais desse equipamento. Isso vai causar, inclusive,
redução do número de situações de confronto, de acusações de violações
aos direitos humanos, e vai proteger o cidadão contra abusos que possam
vir a ocorrer nessas ações.
ConJur — O STJ já tem
tutelado, em inúmeras decisões, o que configura justa causa para invadir
uma residência sem mandado judicial. O que muda agora?
Schietti — Espero que a gente comece a não aceitar mais como natural e normal o que de fato não é.
O que nós estamos propondo é que refaçamos a maneira de apurar crimes.
Por uma questão histórico-cultural, nós sempre toleramos esses pequenos
abusos, que muitas vezes são grandes abusos, e consolidamos
jurisprudência que acaba coonestando essas práticas. Isso pode até
render, do ponto de vista do número de condenações, um resultado
positivo para a sociedade. Mas o que nós precisamos avaliar é a que
preço, que custo, representa a condenação que teve como lastro uma
violação grave a direitos, inclusive de terceiros, porque quando se
invade ilegalmente uma residência, não apenas o suspeito sofre a ação,
mas todos os moradores.
ConJur — É preciso um novo modelo de policiamento?
Schietti — Qual é o tipo de policiamento que nós
pretendemos ter nos grandes centros urbanos? Acredito que, nas pequenas
comunidades e no interior, o policial é um amigo da comunidade, é
conhecido de todos. O que acontece nas grandes cidades é que essa relação de desumanizou. E
como não tem havido uma resposta, sejamos sinceros, enérgica e
necessária do Poder Judiciário, exigindo que as coisas sejam realizadas
em conformidade com o Estado Democrático de Direito, não evoluiremos como civilização. Continuaremos
a ser identificado internacionalmente como um país em que se cometem
ilegalidades, as mais variadas, contra as pessoas mais vulneráveis. E o Poder Judiciário, diante da não edição de leis que pudessem melhor regulamentar esses temas tão sensíveis, não pode se quedar inerte quando provocado.
ConJur — A presunção de inocência é desrespeitada na relação entre policial e cidadão?
Schietti — A presunção de inocência não é apenas
algo que o juiz deve assegurar aos acusados. É um tratamento que todo
agente público que lida com pessoas eventualmente acusadas de crimes
deve, desde o início, a elas dispensar. Então a polícia tem que saber agir de tal modo a não causar mais danos que o estritamente necessário nas suas diligências.
ConJur — Como fazer isso em tempos de cobrança por mais rigor punitivo?
Schietti — O Poder Judiciário em várias situações
diferentes já percebeu algo bem frequente: de acordo com o local, a
condição social, econômica, a vulnerabilidade da pessoa e da comunidade
vítima dessas ações, há uma sistemática violação a vários direitos
humanos. Não podemos mais tolerar isso, mesmo num momento em que,
infelizmente, se estimulam respostas violentas do Estado e em que
autoridades defendem o uso de mais violência em situações de aparente
conflito. Todas as instituições e seus agentes devem
manter a sua firme e fiel observância ao que determina, desde o início,
a Constituição, quanto aos fundamentos, os valores, os princípios que
formam a República e informam o Estado Democrático de Direito: Uma
sociedade fraterna, plúrima, igualitária, sem preconceitos e com
respeito à dignidade da pessoa humana. Isso pode ser uma utopia, mas esses ideais, esses valores, têm de ser pelo menos perseguidos por qualquer agente público.
https://www.conjur.com.br/2021-mai-09/entrevista-rogerio-schietti-ministro-stj
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