Na noite da sexta-feira 6, a presidenta Dilma Rousseff desembarcou na
Base Aérea de Brasília após uma cansativa viagem à Rússia, onde
participava da reunião do G-20. Horas antes, ainda em território russo,
havia concedido uma entrevista coletiva para explicar o encontro que
tivera com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no qual cobrou
explicações sobre a espionagem americana ao governo brasileiro. O fim
de semana, no entanto, não seria de descanso. Na manhã do sábado 7,
Dilma acompanhou o desfile cívico-militar em comemoração à Independência
do Brasil, e, à noite, tomaria conhecimento das primeiras chamadas do
programa Fantástico, da Rede Globo, com nova denúncia de espionagem.
Sob o olhar da águia: sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, foi alvo
da espionagem denunciada por Edward Snowden
Dessa vez, o alvo dos americanos que atuam na Agência de Segurança
Nacional (NSA, na sigla em inglês) era a Petrobras, a maior empresa
brasileira. A pouco mais de um mês da realização do bilionário leilão do
Campo de Libra, uma das joias do pré-sal, entra em cena uma espionagem
industrial em torno de segredos estratégicos que podem valer muito,
muito dinheiro. Ainda no fim de semana ficou definido que a resposta do
governo seria concentrada na Presidência da República. Nenhum ministério
deveria comentar o assunto e a Petrobras falaria apenas como empresa. O
ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, viu o programa de sua casa,
no Lago Sul, zona nobre da Capital Federal, e falou com a presidenta da
estatal, Graça Foster, por telefone, apenas na manhã da segunda-feira.
A sensação geral era de que a denúncia, embora grave, não trazia
nenhum dado concreto da Petrobras. A presidenta Dilma já havia
demonstrado irritação com a bisbilhotagem anterior, que incluiu a
violação dos seus e-mails. A versão do governo americano de que pratica
espionagem para proteger o seu país e os aliados de ataques terroristas
já parecia inverossímil. Agora, com foco na petroleira, o argumento
desmoronou.“Sem dúvida, a Petrobras não representa ameaça à segurança de
qualquer país”, afirmou Dilma, em nota oficial divulgada na tarde da
segunda-feira 9. “Se confirmados os fatos veiculados pela imprensa, fica
evidenciado que o motivo das tentativas de violação e de espionagem não
é a segurança ou o combate ao terrorismo, mas interesses econômicos e
estratégicos.”
Espionada, a presidenta Dilma Rousseff irritou-se ainda mais: "A Petrobras
não ameaça a segurança de qualquer país"
Como as novas denúncias não explicam claramente a quais dados
secretos da Petrobras o governo americano teve acesso, iniciou-se uma
série de especulações sobre o conteúdo que poderia ter vazado e quais
seriam as suas consequências. A DINHEIRO ouviu executivos de dentro e de
fora da Petrobras, incluindo os que trabalharam na empresa
recentemente, para mapear o potencial econômico, político e militar
dessas informações. “A espionagem é um ato abominável”, diz José Sérgio Gabrielli, que presidiu a Petrobras no período de 2005 a 2012. É,
ainda, um cacoete da maior economia do mundo, na avaliação do
ex-ministro Delfim Netto. “Os americanos têm a pretensão de que a lei de
seu país pode preterir todas as outras”, diz.
Independentemente da megalomania que os leva a crer serem donos do
mundo, o reconhecido know-how que a estatal possui em exploração de
petróleo em águas profundas é, sem dúvida, um ativo valiosíssimo e, por
isso,os concorrentes correm o risco de espiar. Um eventual acesso a essa
tecnologia, desenvolvida ao longo de anos de estudos e investimentos,
poderia ser replicado em outras regiões do planeta, como o Golfo do
México e a costa equatorial da África. “A Petrobras é vanguarda em águas
profundas”, afirma Gabrielli. É também do interesse das fornecedoras de
equipamentos, incluindo as americanas, saber quais são as prioridades
da Petrobras.
O dono do mundo?: o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ainda deve explicações
convincentes ao Brasil sobre o programa de espionagem
“Com isso, as empresas podem planejar sua produção, baseada em
dados estratégicos da principal compradora de equipamentos do setor”,
diz Alexandre Szklo, professor do Programa de Planejamento Energético da
Coppe/UFRJ. Em seus supercomputadores, a estatal armazena imagens em
alta definição do subsolo marítimo, informações sobre a geometria de
reservatórios e dados sobre porosidade e impermeabilidade de diversas
áreas, o que pode reduzir em milhões de reais o custo de uma eventual
exploração. Outro dado que pode interessar ao Departamento de Defesa
americano é o conhecimento acumulado pela Petrobras ao longo de quatro
décadas de pesquisa na região do Atlântico Sul, entre o Brasil e a
África.
“Essa região tem valor estratégico, geopolítico e militare”, diz
David Zylbersztajn, ex-presidente da Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis (ANP). Oficialmente, a NSA afirma, em nota,
que “não rouba segredos de empresas estrangeiras que possam beneficiar
empresas americanas”. Para justificar a coleta de informações
econômicas, a agência de segurança diz que os dados servem para
“prevenir crises financeiras que possam afetar os mercados
internacionais”. Trata-se de um argumento estapafúrdio para um país que
tem o Banco Central mais respeitado do planeta. No mundo do petróleo, a
arte de espionar é uma atividade centenária.
“Desde a década de 1920, o conhecimento geopolítico do petróleo se
tornou alvo de disputa entre os países ocidentais”, diz Szklo. Na
história da Petrobras, a partir da década de 1950, há alguns registros e
casos mal contados de espionagens.Um deles ocorreu no dia 31 de janeiro
de 2008, quando quatro laptops, dois discos rígidos e dois pentes de
memória foram furtados de um contêiner transportado pela americana
Halliburton, que prestava serviços à Petrobras, no caminho de Santos a
Macaé. Nos equipamentos, havia dados sigilosos sobre a Bacia de Santos. A
Polícia Federal, no entanto, garante que foi um crime comum e que não
houve espionagem industrial.
Na ocasião, a Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet)
denunciou uma série de furtos e invasões de residências de engenheiros e
técnicos da estatal, para roubar notebooks. Esses casos nunca foram
devidamente esclarecidos. Desde a descoberta do pré-sal, em
2007, o País vem reforçando seus mecanismos de defesa. É uma atitude
prudente diante do potencial energético que a exploração de óleo em
águas profundas proporciona. Para vigiar a faixa de domínio
marítimo do País, que se estende a 200 milhas a partir da costa, o
Ministério da Defesa conta com um orçamento de R$ 20 bilhões. Esses
recursos estão sendo gastos na aquisição de submarinos, inclusive um com
propulsão nuclear, além de helicópteros.
Afinal, o que está em jogo é uma reserva petrolífera que, se fosse
negociada pela cotação média de US$ 100, poderia render US$ 10 trilhões.
Nessa conta não estão incluídos ganhos com a mineração de metais
nobres, como ouro, manganês e cobalto, no fundo do mar. O assunto começa
a despertar a atenção de grandes empresas e entrou no radar da
Organização das Nações Unidas (ONU), que estuda a criação de um marco
regulatório para disciplinar a atividade. Nesse contexto, quem domina a
tecnologia do pré-sal poderia, ao menos em tese, sair na frente. A
espionagem americana, no entanto, é parte de outro tipo de ação. Os
esforços estão concentrados na declaração de uma guerra cibernética,
invadindo o espaço virtual da estatal brasileira.
Para se proteger, a Petrobras conta com um aparato tecnológico. Segundo
a presidenta da estatal, Graça Foster, cerca de R$ 4 bilhões são
investidos, por ano, em tecnologia. Parte desses recursos é utilizada no
sistema de proteção de dados, que é “bastante adequado”, pelas suas
palavras. O cérebro tecnológico da Petrobras está dividido
entre o imponente prédio da avenida Chile, no centro do Rio de Janeiro, e
a Ilha do Fundão, onde fica o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da
Petrobras (Cenpes), no qual a estatal aplica boa parte dos investimentos
em P&D. O local conta com laboratório de simulação de operação em
plataformas e a Coordenadoria de Programas de Pós-Graduação em
Engenharia (Coppe-UFRJ).
Tal fortaleza tecnológica, porém, não torna o sistema da Petrobras
inviolável. A partir das informações disponíveis até o momento, o
engenheiro de computação Daniel Lemos, presidente da Real Protect, do
Rio de Janeiro, traçou dois possíveis caminhos percorridos pelas NSA: a
quebra de criptografia ou a filtragem de tráfego (leia quadro "Espião
cibernético"). Nos dois casos, a agência americana conta com a ajuda de
empresas de softwares ou de operadoras de telefonia. A parceria da NSA
com companhias de internet não é novidade. A agência vem coletando
informações nos datacenters de gigantes da tecnologia, como Google,
Microsoft e Facebook. Com isso, as mensagens de usuários do Gmail e do
Hotmail, por exemplo, podem ser facilmente monitoradas pelo governo
americano.
Não se sabe ainda se essas empresas fornecem os dados com base em
decisões judiciais ou se há algum outro tipo de acordo que pode,
inclusive, envolver questões financeiras. Diante das denúncias, a
presidenta Dilma pediu urgência ao Congresso Nacional na tramitação do
projeto que trata do Marco Civil da Internet. O governo quer criar uma
central de servidores em território nacional para armazenar os dados,
eliminando assim a dependência de provedores sediados no Exterior. Outra
saída para diminuir a vulnerabilidade do governo e das empresas é
utilizar criptografia desenvolvida no País, afirma Lemos. “O Exército
brasileiro, por exemplo, já tem seus próprios algoritmos de
criptografia”, explica o especialista.
LEILÃO DE LIBRA A denúncia de espionagem da
Petrobras fomentou um intenso debate sobre a necessidade de o governo
adiar o leilão do Campo de Libra, do pré-sal da Bacia de Campos.
Previsto para 21 de outubro, o leilão será o maior da história e vai
gerar um bônus de assinatura de R$ 15 bilhões aos cofres públicos –
dinheiro fundamental para o cumprimento da meta de superávit primário
neste ano. Pelo inédito sistema de partilha, vencerá quem entregar ao
governo a maior parcela do lucro, a partir do mínimo de 41,65%. Se
comprovado, o vazamento de dados pode dar vantagens a alguns
concorrentes que saberiam quais são as áreas mais lucrativas. E pior:
pode gerar questionamentos na Justiça por parte dos derrotados.
No Congresso Nacional, parlamentares da oposição defenderam o
cancelamento do leilão ou a proibição da participação de empresas
americanas. Zylbersztajn avalia que isso é desnecessário.“Não faz
sentido algum sair culpando as empresas estrangeiras”, afirma. Para o
consultor Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de
Infraestrutura (CBIE), o foco da espionagem não está ligado ao Campo de
Libra. “Os dados são públicos e já foram apresentados pela ANP”, afirma
Pires. Na avaliação de Gabrielli, o maior ativo que a Petrobras possui
nesse leilão – e que poderia ser alvo da bisbilhotagem alheia – é a sua
capacidade de interpretar esses dados.
Graça Foster diz que a petrobras investe R$ 4 bilhões em tecnologia
e no sistema de proteção de dados do pré-sal
“Isso pode ser um elemento importante na produtividade futura da
exploração e no desenvolvimento da produção de Libra”, diz o
ex-presidente da estatal. Na quarta-feira 11, durante visita às obras da
P-74 no Estaleiro Inhaúma, no Rio de Janeiro, Graça Foster descartou
qualquer adiamento. Definitivamente, não há a menor possibilidade de
mudança da data do leilão por conta dessa informação, que não é
material, não está identificada”, afirmou a presidenta da estatal, que
se colocou à disposição do Senado para falar sobre o assunto na
quarta-feira 18. A espionagem da NSA jogou mais lenha na
fogueira da crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos, cujo ápice
poderá ser o cancelamento da visita com honras de chefe de Estado que a
presidenta Dilma fará em outubro a Washington D.C.
Na semana retrasada, diante das primeiras denúncias, a presidenta
suspendeu a ida da equipe brasileira responsável por preparar a sua
visita. Após as promessas de esclarecimentos feitas por Obama, durante o
encontro do G-20, na Rússia, havia a expectativa de que o ruído entre
os dois governos fosse superado. Mas o caso envolvendo a Petrobras
azedou o clima. Na quarta-feira 11, o ministro das Relações Exteriores,
Luiz Alberto Figueiredo, teve um encontro com a conselheira de Segurança
Nacional dos Estados Unidos, Susan Rice, na Casa Branca, sede do
governo americano.
Susan acusou a imprensa de “distorcer” as atividades da NSA, mas
reconheceu que há “questões legítimas” levantadas pelo governo
brasileiro. Ela se comprometeu a buscar soluções para encerrar o impasse
entre os dois países. Por ora, a presidenta Dilma só confirmou sua
viagem à Assembleia-Geral da ONU, no dia 24 deste mês, em Nova York. Em
seu discurso, na abertura do evento, Dilma falará sobre o tema
espionagem. Há quem interprete que será um discurso em vão. “A
bisbilhotagem faz parte do mundo do petróleo”, diz um executivo do
setor. A diferença, desta vez, é que a prática ficou comprovada a partir
das revelações do ex-consultor de inteligência americano Edward
Snowden.
Colaborou: Denize Bacoccina