O advogado-geral da União,
Luís Inácio Adams,
vive dias agitados. Como decano da Esplanada dos Ministérios, é ele o
responsável por defender tanto o governo quanto as políticas públicas, o
Estado e a presidente da República.
Por isso é que ele hoje
divide as atenções entre as discussões sobre “pedaladas fiscais” no
Tribunal de Contas da União, costurar junto ao Ministério do
Planejamento formas de valorizar a carreira da advocacia pública federal
e mostrar ao meio empresarial que os acordos de leniência são seguros e
valem a pena, mesmo com toda a exposição à qual submete as companhias.
Em entrevista à revista eletrônica
Consultor Jurídico, Adams
reconhece que a lei Anticorrupção (12.846/2013) tem suas falhas,
principalmente porque distribui competências concorrentes. Segundo ele, o
esforço da administração pública agora é o de uniformizar sua atuação
para dar segurança jurídica aos acordos. Do ponto de vista legislativo,
Adams acredita que o texto deve ser mais completo para dizer, por
exemplo, qual o papel do Ministério Público na investigação
administrativa da corrupção.
E se o ministro-chefe da AGU tem
papel fundamental no alto índice de judicialização de conflitos, a
postura do AGU atual foi bastante elogiada durante as discussões dos
projetos de lei sobre mediação e arbitragem, recentemente aprovados pelo
Congresso. Ambos os textos pretendem estimular a cultura da não
judicialização, mas é o poder público quem responde por quase 40% de
todas as ações em trâmite, que hoje estima-se que cheguem a 100 milhões.
O
ministro Adams é, por exemplo, um defensor de saídas não judiciais para
as execuções fiscais, que representam 30% dos processos em acervo nos
tribunais. Ele é autor de um projeto para tornar a cobrança de impostos
uma ação administrativa, e não mais judicial.
Mas ele sabe que o
caminho apenas começou: “A mediação é um instrumento que depende de uma
cultura de acordo, o que é muito difícil ainda na administração
tributária. Não é impossível, pois diversos países têm isso, mas, como é
uma obrigação que decorre de lei, não é disponível, a princípio”.
Lei a entrevista:
ConJur — O senhor acha que o governo pode perder no TCU, no caso das chamadas “pedaladas” fiscais?
Luís Inácio Adams — Espero que não. É uma decisão que, em
termos técnicos, a União não perde. Os argumentos são consistentes. Hoje
se pontuam questões da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar
101/2000) que evidenciam como são feitas as coisas. Veja a questão do
contingenciamento. A lei, no artigo 9º,
caput, deixa claro que
não é atribuição apenas do Executivo fazer o contingenciamento. Mas onde
está o contingenciamento do Judiciário, do Legislativo e do próprio
TCU? Não existe, mas a lei exige. O Executivo não pode fazer
contingenciamento em nome deles. Diz a lei: “Se verificado, ao final de
um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o
cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no
Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão,
por ato próprio e nos montantes necessários, nos 30 dias subsequentes,
limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios
fixados pela lei de diretrizes orçamentárias”.
ConJur — Isso comprova a correção do governo?
Luís Inácio Adams — A rigor, posso garantir que usamos a
metodologia adequada. As ações foram feitas da melhor forma. Em relação
aos repasses aos bancos, eles seguiram a sistemática adotada há 14 anos e
que foi referendada pelo próprio TCU. Nunca foi objeto de qualquer
apontamento. Essas sistemáticas, do ponto de vista objetivo, nunca
resultaram em prejuízo para o banco. Entre depósitos e pagamentos, a
União sempre foi credora, nunca pagou juros, já que nunca ficou devendo.
ConJur — Vale a pena para as empresas fazer acordo de leniência?
Luís Inácio Adams — Eu acredito que vale, porque as empresas
que têm um agente seu envolvido em prática de corrupção se submetem a
todo o rigor da Lei 12.846, que é a Lei Anticorrupção. Ela impõe multas
pesadas e é focada fundamentalmente na formação de
compliance.
Ou seja, de comportamentos por parte de empresas e instituições em favor
do combate à corrupção, que são regras de transparência, de gestão, de
controle etc. que a empresa tem que adotar para garantir isso.
Ora, o
acordo da leniência é um instrumento que permite fortalecer esta
implementação de
compliance associado a outros elementos, que
são a recuperação dos valores e a colaboração com a investigação. Esse
conjunto representa, no meu ponto de vista, o que eu chamo de um resgate
reputacional da empresa. Uma empresa que se vê envolvida numa situação
de corrupção contra o Estado tem a sua imagem fortemente afetada na
sociedade e isso também repercute no próprio sistema de financiamento
das empresas. Portanto, vale para a companhia que queira de fato fazer
esse exercício de reestruturar-se em favor do combate a essa situação de
corrupção.
ConJur — Agora, a empresa abre todos os seus
números, confessa, denuncia etc. para fazer um acordo com acordo com a
CGU, mas fica sujeita à ação do Ministério Público ou do Tribunal de
Contas da União. Que vantagem ela tem?
Luís Inácio Adams — Temos trabalhado para que haja uniformidade
de entendimentos entre esses órgãos, o que não conseguimos ainda
alcançar, mas já temos um caminho via Tribunal de Contas da União. Quer
dizer, um acordo firmado numa modelagem que nós construímos hoje passa
em algum momento pela homologação do Tribunal de Contas, o que dá
efetividade maior ao próprio acordo. Então até mesmo quando o MP não
concorda com o acordo, ele ganha força e isso dá segurança. Não é de se
menosprezar, por exemplo, que o Cade faz acordos de leniência, inclusive
com repercussão penal, e essa leniência ninguém discutiu. Já foram 49
acordos firmados, as empresas não deixaram de firmá-los.
ConJur — Mas o acordo com o Cade é igual a esse da nova lei, com a CGU?
Luís Inácio Adams — Tem dois tipos de acordo de leniência, um
que trata da corrupção e um que trata dos crimes contra a concorrência,
como os crimes de combinação de preços, cartel etc. Este segundo
espectro de atuação é do Cade há bastante tempo.
ConJur — Já existe algum caso do acordo previsto na Lei Anticorrupção bem sucedido?
Luís Inácio Adams — Até onde eu estou informado, não.
ConJur — Isso quer dizer que a lei até agora não funcionou nesse ponto
Luís Inácio Adams — A lei é nova e o evento que ela está sendo
chamada a regular é muito grande, muito impactante. Sua aplicação causou
grande controvérsia, e isso gerou insegurança. É claro que, no Brasil,
temos a dificuldade de que, para as mesmas situações há vários órgãos
incidindo sobre aquela situação: Tribunal de Contas, Ministério Público
da União, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União,
Petrobras... É uma multiplicidade muito grande. Veja a questão
ambiental, por exemplo: tínhamos um problema regulatório em que o mesmo
evento ambiental podia ser submetido à fiscalização ambiental do estado,
do município e da União, criando uma verdadeira balbúrdia, uma babel.
Em parte isso foi regularizado com a Lei Complementar 140, mas, de
qualquer maneira, essa realidade sobreposta da atuação estatal
permanece, o que gera uma grande insegurança, de fato.
ConJur —
E qual é a solução?
Luís Inácio Adams — Do ponto de vista da administração, o
esforço é tentar uniformizar isso, tentar construir soluções que deem o
maior grau de segurança possível. Por isso que, por exemplo, a gente
procurou uma forma de o próprio TCU poder se manifestar no mérito do
acordo de leniência, e aí ele adquire consistência, força, substância
— inclusive do ponto de vista da própria “confissão”, vamos dizer
assim.
ConJur — Mas por mais que a lei seja nova, o fato de ninguém ter se interessado até agora não é um sinal positivo...
Luís Inácio Adams — Foram poucas empresas, quatro ou cinco,
interessadas em fazer um acordo. Mas é uma dinâmica complicada, porque
um acordo de leniência requer tempo, não é meramente arbitrário. E o
Brasil ainda não estabeleceu como fazer isso, como lidar com isso. O
governo conseguiu dar força a esse espaço de investigação, de
persecução, e essa força tem resultados nessas grandes operações que têm
conseguido identificar situações de núcleos de corrupção no Estado.
Agora, a controvérsia política suscitada dentro da sociedade, associada
também a algum nível de protagonismo que muitos órgãos procuram ter, faz
com que o tema seja ainda suscetível a debate e forma uma percepção de
insegurança, de incerteza.
ConJur — A lei foi mal feita?
Luís Inácio Adams — Talvez ela precise ser aperfeiçoada, sim. O
próprio Ministério Público, por exemplo, requer a possibilidade de
fazer acordo de leniência, o que hoje não está previsto.
ConJur — Outra
questão que se coloca é a da repercussão da decisão na esfera penal na
esfera administrativa. O que acontece se a empresa assina um acordo de
leniência com a CGU, mas depois há absolvição criminal? Tudo o que está
na CGU é desconsiderado?
Luís Inácio Adams – Não, porque a CGU está na esfera
administrativa. Você não faz o acordo de leniência só depois que o
processo penal foi julgado em definitivo.
ConJur — Mas e no caso de os dois correrem paralelamente?
Luís Inácio Adams — O acordo permanece válido. A empresa
reconheceu algum grau de ilícito. Mesmo que o agente da companhia venha a
ser absolvido, por exemplo, por atipicidade penal ou até por prova de
inocência, o acordo está firmado. Ele não deixa de existir por causa
disso.
ConJur — Mudando um pouco de assunto, o que muda com a nova Lei de Mediação e com as mudanças na Lei de Arbitragem?
Luís Inácio Adams — Nos dois casos há um forte espaço para o
setor público. Conseguimos avançar muito na admissão dos instrumentos
extrajudiciais como ferramentas de solução de conflitos com o Estado.
Tem um capítulo na Lei de Mediação que foi desenvolvido a partir de uma
discussão aqui com a AGU e conseguimos prever a mediação como modelo
factível de solução de conflito entre os cidadãos e Estado, o que é
fundamental. É um primeiro passo importante. O segundo ponto é que a
mediação nunca chegou a ser de fato regulada, nunca teve um instrumental
para isso, e agora temos todo um regramento. A mediação procura
facilitar o entendimento entre as partes, o que se dá por intervenção de
um agente treinado e que procura distensionar o litígio que existe
entre essas partes. E um ponto importante é a existência de uma
tentativa de mediação prévia ao próprio litígio, à fase judicial, o que
facilita a redução de litigiosidade.
ConJur — Essa nova forma de relacionamento pode facilitar a execução fiscal pela via administrativa?
Luís Inácio Adams — Sou a favor, mas o problema da execução
fiscal é que nós não estamos mais com o modelo administrativo, em que
pese o fato de que texto que está lá admita uma fase semiadministrativa.
Ou seja, estamos trabalhando com um modelo que se aproxima do Código de
Processo Civil. Já encaminhamos ao Congresso uma proposta de
aperfeiçoamento do processo de execução para que sejam retirados da
esfera judicial os dois elementos que hoje estão soterrando o
Judiciário: a localização do devedor e a localização de bens. Só vai pra
juízo se tiver bens e se o devedor estiver devidamente identificado.
ConJur — A mediação ganharia espaço aí?
Luís Inácio Adams — A mediação é um instrumento que depende de
uma cultura de acordo, o que é muito difícil ainda na administração
tributária. Não é impossível, pois diversos países têm isso, mas como é
uma obrigação que decorre de lei não é disponível, a princípio. Depende
de uma legislação que autorize essa composição. E também, por haver toda
uma visibilidade pública social, o exercício da mediação é muito mais
complexo nesse caso. Mas eu acredito que sim, que ele pode ser adotado
com as especificidades próprias.
ConJur — Porque que foi vetada a arbitragem para relações de trabalho e consumeristas?
Luís Inácio Adams — Havia uma preocupação de que a lei não
deixava claro que a adesão, no caso do consumidor, não fosse em contrato
padrão. Ou seja, que o fato de ele ter assinado um contrato padrão já o
obrigaria, uma vez iniciada a arbitragem, a ela ser realizada, e não
como um entendimento no qual tivesse livre disponibilidade. Por isso se
vetou e agora está procurando uma formulação mais clara nesse sentido.
ConJur — E na área trabalhista?
Luís Inácio Adams — Há uma resistência muito grande do
Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho às dinâmicas
arbitrais e de mediação. Essa resistência se deve à lógica protetiva aos
direitos do trabalhador. Isso resulta em perda muito grande das
alternativas eleitas pelas próprias pessoas interessadas. Evidentemente
há pessoas carentes, que não têm poder decisório real, mas muita gente
tem. Mas o que se acertou na própria comissão de juristas, que propôs o
anteprojeto da nova lei, é que haveria uma legislação própria para esses
institutos no âmbito da Justiça do Trabalho e que não ficaria apenas a
mera admissão genérica do modelo de lei geral. Haveria a necessidade de
se trabalhar melhor num texto específico para a implementação dessas
soluções na esfera trabalhista.
ConJur — Sobre as demandas
da categoria, a grande reclamação é a remuneração. Há no Congresso duas
PECs, uma dando autonomia administrativa à AGU e outra vinculando o
salário do advogado público ao do ministro do Supremo. Há uma competição
de autonomias. Como equacionar isso?
Luís Inácio Adams — As chamadas áreas jurídicas vivem em certo
grau de distanciamento em relação às demais funções – exceto a advocacia
pública, pelo menos a federal. Então, com as PECs 82 e 443 o Congresso
Nacional veio a responder ou a parametrizar a realidade da advocacia
pública a essas outras instituições. Porque somos a única função
essencial à Justiça que está em uma posição de defender tanto uma
política pública quanto o administrador. A própria administração,
aguçada por ações judiciais, tem na advocacia pública sua primeira linha
de frente, e esse esforço que a advocacia pública faz exige também que
ela tenha um grau de reconhecimento equivalente. Acredito que as PECs
são uma resposta do próprio Congresso. Nesse sentido elas são
importantes, para dar esse reconhecimento, que alguns chamam de paridade
de armas, para ter equivalência do ponto de vista de captação de
quadros.
ConJur — O senhor concorda com essa ideia de autonomia administrativa que está sendo proposta?
Luís Inácio Adams — A questão da autonomia administrativa está
virando uma coqueluche, como se isso fosse solução. Entendo que, se essa
é a solução para o Estado brasileiro, a AGU tem que estar nela,
necessariamente. Só que eu vejo que a prática dessa autonomia tem sido
não para a finalidade do órgão, mas para a concessão de benefícios. É o
exercício da finalidade da autonomia para fins internos. Na Defensoria
Pública da União, as resoluções que estão propondo são só para aumento,
férias, salário, auxílio etc. Agora, o caso da PEC 82 tem uma
diferenciação. Ela não trata de um problema de autonomia administrativa.
Está tratando uma questão orçamentária. Ela dá à AGU a autonomia de
fazer a própria proposta orçamentária sem que o Executivo possa
contingenciar. Então ela é muito mais focada na questão orçamentária que
administrativa.
ConJur — E como a AGU tem encaminhado essas questões administrativas internas?
Luís Inácio Adams – Estivemos com os ministros Nelson Barbosa [
Planejamento] e Aloizio Mercadante [
Casa Civil]
e enviamos essa proposta para o Ministério do Planejamento para
discussão. Outra proposta é o plano de carreira, um tema antigo e que
está com o Planejamento e acredito que agora deve avançar, seja no
âmbito da Casa Civil, seja do Ministério da Fazenda ou do próprio
Planejamento. Também encaminhamos um texto para termos uma agenda
estruturante, e isso já foi acertado com a Casa Civil.
ConJur — Estruturante em que sentido?
Luís Inácio Adams — Seja a estrutura de comissionamento da AGU,
seja a estrutura de funcionamento, de estrutura material dos prédios e
assim por diante. A AGU muitas vezes responde por coisas que ela não
administra. Por exemplo: a AGU tem mais de mil unidades presentes em
diversos órgãos federais. Porém, dessas unidades, cerca de 300 estão sob
gestão administrativa da AGU, ou seja, os recursos orçamentários e
financeiros de custeio são da AGU. As demais são alocadas em outros
órgãos, sendo os recursos orçamentários e financeiros dos ministérios,
no caso das Consultorias Jurídicas, ou das autarquias e fundações
federais, no caso de algumas procuradorias federais. Por isso a
estruturação desses órgãos vai exigir algum nível de coordenação para
que haja condições de trabalho adequadas para todos os servidores,
advogados e procuradores. E a Casa Civil deu até o dia 30 de julho para
que a AGU, o Planejamento e a Fazenda concluam essas conversas para que
possamos iniciar o segundo semestre com propostas concretas.
ConJur — Então vai fazer os órgãos se articularem melhor entre si e dentro de uma cadeia de comando?
Luís Inácio Adams — Sim. E também dar os meios. O quadro de
pessoal, as condições de trabalho, a remuneração compatível com a
captação de quadros no mercado e com o que outras organizações têm. O
que não pode acontecer são essas situações de o analista judiciário que
atende o balcão ganhar mais que o advogado público. Isso é uma
distorção, porque as funções são diferentes: uma é meramente
administrativa e a outra é a representação judicial de um órgão.