A
dois meses do fim do seu mandato e de sua aposentadoria, o presidente
do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini, faz críticas à
sociedade brasileira, chama cidadãos e empresas à responsabilidade,
diante do número de processos em tramitação, e se queixa da dificuldade
de se mudar a cultura de litigância também dentro do maior tribunal do
país e do mundo.
A existência de mais de 100 milhões de processos
no Judiciário brasileiro, de acordo com dados do Conselho Nacional de
Justiça, indica que a sociedade está doente, na opinião de Nalini. “No
mínimo, ela sofre de infantilidade, de uma síndrome da tutela
permanente”, disse em entrevista à equipe do
Anuário da Justiça de São Paulo em seu gabinete no centro da cidade de São Paulo.
O
desembargador sugere que a sociedade faça a sua escolha: resolva
sozinha os simples problemas cotidianos e dedique a Justiça apenas aos
grandes casos ou, então, pague pelo crescimento de sua estrutura.
“Tentamos chamar a atenção da sociedade de que se é esse o modelo que
ela quer, então, que ponha a mão no bolso e prepare-se para ser
sacrificada ainda mais, porque a máquina não vai parar de crescer.”
De
dentro da corte, para melhorar o atendimento à população, tem
trabalhado para aumentar a equipe de assessores nas varas, instância
judicial que considera a mais importante. Até o final de 2015, 100% da
Justiça paulista estará apta a aceitar apenas o processo eletrônico. Com
a redução da burocracia e a necessidade de menos pessoas no cartório,
haverá mais servidores para atuar diretamente na atividade-fim da
Justiça. Não há data certa ainda para que essa mudança se torne
realidade.
Tem também acompanhado de perto a produtividade dos
desembargadores. E lamenta não ter conseguido apoio dos colegas para
criar um mecanismo para barrar a distribuição de casos repetitivos. A
ideia seria identificar os temas repetidos e, antes da distribuição,
aplicar a mesma decisão para todos. O que tornaria a decisão mais rápida
e uniforme. Um dos argumentos contrários à ideia é o princípio do juiz
natural, que exige um relator para cada ação.
Nascido em Jundiaí,
José Renato Nalini completa 70 anos no dia 24 de dezembro de 2015. Quase
40 deles foram dedicados à Justiça paulista. Foi presidente do Tribunal
de Alçada, integrante da Seção de Direito Público do TJ, corregedor e
presidente. Antes, teve uma passagem de três anos pelo Ministério
Público de São Paulo. Na seção “sobre mim”, no
blog
pessoal que mantém há anos, apresenta-se como presidente do Tribunal de
Justiça, ex-presidente da Academia de Letras, professor universitário e
autor de livros como
Ética da Magistratura e
A Rebelião da Toga.
Escreve artigos sobre variados temas, desde crise financeira,
alimentação, limpeza urbana e, por que não?, Judiciário. Tem também uma
coluna semanal no jornal
Diário de S. Paulo.
Leia a entrevista:
ConJur – O país ultrapassou o número de 100 milhões de processos, de acordo com o último Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. O que esse número de processos representa para o Judiciário, para a sociedade?
Renato Nalini – É um exagero. Embora os interessados não achem,
isso é patologia. Uma sociedade que precisa da Justiça para todo e
qualquer problema é uma sociedade que está doente. No mínimo, ela sofre
de infantilidade, de uma síndrome de tutela permanente.
ConJur – As pessoas são incapazes de resolver os próprios problemas?
Renato Nalini – Sim. A sociedade precisaria estar formada por
pessoas preparadas para enfrentarem, pelo menos, as questões pequenas.
Ou seja, sentar, conversar. O advogado brasileiro precisa ser mais um
arquiteto de soluções e não um fomentador de litígios.
ConJur – A advocacia tem responsabilidade sobre esse exagero?
Renato Nalini – Em grande parte sim, porque deveria partir das
profissões jurídicas o interesse em disseminar uma cultura da
pacificação, da conciliação. Nós temos um processo judicial muito
sofisticado, muito lento porque tem quatro instâncias e mais de 50
recursos e o excesso de normatividade, o excesso de formalismo não
contribui para pacificar a sociedade. Não estou falando isso para
reduzir a carga de trabalho praticamente invencível dos juízes e dos
funcionários. Nós temos uma
expertise muito boa em crescer,
fazemos pressão e lobby junto ao parlamento e eles vão criando cargos.
Mas essa estrutura gigantesca não significa que a Justiça seja cada vez
mais eficiente. Nós temos que trabalhar com outras opções.
ConJur – Quais?
Renato Nalini – A primeira é essa: criar uma cultura de
pacificação; deixar o juiz para coisas sérias. Não faz sentido milhões
de processos iguais pedindo a mesma coisa quando a solução já foi dada
até em instância superior. Nós temos que encontrar uma fórmula de brecar
isso e falar: está valendo a decisão tal ou a decisão tal. E não
adianta querer argumentar que o seu caso é um pouquinho diferente. A
questão é a mesma, é o mesmo direito lesado. Essa é uma política pública
que tem que ser levada a sério. As profissões jurídicas têm que
acordar. Não se pode fazer desse país um enorme tribunal, com um juiz em
cada esquina e com aquela estrutura pesada, porque ao lado do juiz tem
que ter funcionários, promotor que também tem funcionários, defensor
público, procurador e aquela legião de profissões jurídicas.
ConJur – O que falta para as pessoas conseguirem resolver os próprios problemas?
Renato Nalini – Falta crescer, falta assumir responsabilidades,
falta educação. Nós somos a República dos direitos. Todo mundo clama
por direitos, exige direito, mas aparentemente as pessoas faltaram à
aula dos deveres, das obrigações, das responsabilidades. Não estou
dizendo isso só para aliviar a Justiça, não, porque nós podemos crescer.
A sociedade não pode continuar assim tutelada, esperando que o governo
faça por ela o que ela poderia conseguir sozinha, através de sacrifício,
esforço, trabalho, devotamento, empenho, zelo e todas essas coisas que
foram esquecidas. Se ela aprendesse, não teria deixado a República
chegar onde chegou. Uma pessoa puerilizada, que fica esperando o
Estado-juiz resolver os seus problemas, que não consegue resolver nem as
coisas minúsculas, pequenas, corriqueiras, ela nunca vai conseguir
participar da gestão da coisa pública.
ConJur – Como mudar essa situação?
Renato Nalini – Educação. Principalmente, educação jurídica, que é anacrônica, conservadora, só ensina a litigar. O advogado recebeu o
status
de “essencial à administração da justiça”, mas isso não significa
judicializar todos os problemas. Administrar a Justiça é fazer justiça, é
fazer uma advocacia de pacificação, uma advocacia de prevenção, uma
advocacia de aconselhamento.
ConJur – Na Seção de Direito
Privado do TJ-SP, grande parte da demanda se dá por problemas na
prestação de serviços, por desrespeito aos direitos dos consumidores,
inscrições indevidas em cadastros de restrição ao crédito. Há uma
aproximação do Judiciário com essas empresas?
Renato Nalini – Nós estamos fazendo esse trabalho também. Incentivamos a conciliação e disseminamos os Cejuscs [
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania].
O desembargador Ivan Sartori investiu bastante na gestão deles e eu
continuei chamando as empresas para fazer acordos de cooperação. Criei
também o selo Empresa Amiga da Justiça, para reduzir a judicialização.
ConJur – Que tipo de empresas são procuradas?
Renato Nalini – Todas. Começou com a TAM, depois a Gol, e
vieram outras mais. Recentemente, o presidente da Sabesp veio até o
tribunal e decidimos fazer um grande mutirão. Os bancos também, Itaú,
Bradesco, as seguradoras. Todos estão sendo chamados. Os municípios
também.
ConJur – Cada empresa tem uma meta de redução de processos?
Renato Nalini – Sim. Se a empresa atingir a meta, ela consegue o
selo “Amiga da Justiça”. Mas o objetivo final desse projeto é
conscientizar as empresas. Houve o caso de um banco que tinha 400
escritórios de advocacia pelo Brasil inteiro para representá-lo. Peguei
uma petição, na época em que eu estava na Corregedoria, que tinha erros
de português, coisas ininteligíveis. Tirei cópia e levei para o
presidente do banco. Perguntei se ele achava que estava bem representado
por um analfabeto, falei sobre o quanto ele perdia de dinheiro com uma
defesa ruim. Depois disso, ele foi diminuindo o número de escritórios e
hoje são apenas quatro. Ele colocou também uma equipe imensa de
atendimento aos clientes. No fim, é a falta de comunicação que leva a
tantos desentendimentos. A pessoa pode até tentar uma solução, mas é mal
recebida ou não é nem atendida, e aí entra com processos. Abrimos uma
porção de frentes para repensar os litígios. Mas acredito que a nossa
maior contribuição é fazer a sociedade prestar atenção no que está
acontecendo. É lógico que, se ela quiser, vamos continuar crescendo,
vamos ter 100 mil juízes. Só que aí ela vai ver o que isso significa.
ConJur – Terá que pagar, é isso?
Renato Nalini – Sim, é isso. Esse tribunal é o maior do
planeta, não é só o maior do Brasil. E como maior do planeta, tem os
maiores problemas também. Embora o orçamento seja bilionário, maior até
que o de vários estados da Federação, é insuficiente. Tentamos chamar a
atenção da sociedade de que se é esse o modelo que ela quer, então, que
ponha a mão no bolso e prepare-se para ser sacrificada ainda mais,
porque a máquina não vai parar de crescer. Você pode tentar resolver as
coisas mais simples e deixar a Justiça, que é um equipamento
dispendioso, para as questões complexas. A sociedade deve assumir as
suas responsabilidades, ter deveres, obrigações e ajudar a República a
voltar para o caminho certo. Outra alternativa é a informatização.
Assumimos o risco de um projeto audacioso que é só nosso. Apesar de
termos sido pressionados a usar o PJe, porque o CNJ queria padronizar o
sistema, insistimos no nosso próprio projeto, que funciona e já foi
assimilado pelos advogados, pelos juízes. Seria um contrassenso, seria
nefasto e seria jogar o dinheiro do povo fora abandonar isso por causa
de um projeto que o CNJ trouxe muito depois do nosso.
ConJur – Na gestão do ministro Ricardo Lewandowski foi possível dialogar mais?
Renato Nalini – Sim. Mas do ministro Joaquim [
Barbosa, ex-presidente e ministro aposentado do STF]
não posso reclamar, porque ele foi pressionado pelos conselheiros e
pelos que estavam tentando impor o PJe goela abaixo do Tribunal de
Justiça. Ele foi aconselhado até a intervir aqui e ele não fez isso.
Disse que não, que confiava no que São Paulo estava fazendo e para
deixar assim.
ConJur – O sistema do TJ de São Paulo conversa com o PJe?
Renato Nalini – Tem que ter interoperabilidade. Essa é a
receita. Não é possível ter um projeto só no Brasil inteiro, num Brasil
continental, um Brasil tão diferente. O que precisa é que eles
conversem, a chamada interoperabilidade. O nosso sistema existe há
muitos anos, passou por várias gestões, um projeto que custou R$ 6
bilhões. No dia 23 de novembro todas as unidades judiciárias do estado
de São Paulo estarão preparadas para receber o peticionamento
eletrônico. Isso não significa que os 26 milhões de processos em papel
vão desaparecer, mas já é uma porta de entrada para que isso seja
resíduo.
ConJur – Será obrigatório?
Renato Nalini – Assim que implementado, a única alternativa
será o peticionamento eletrônico. Isso vai acelerar a prestação
jurisdicional, precisar de menos espaços físicos para o funcionamento da
Justiça, deixar o ambiente mais agradável. Foi um passo ambicioso.
ConJur – Os advogados já se adaptaram?
Renato Nalini – Já, todo mundo. Se eles não se adaptaram, pelo
menos os assistentes já, perfeitamente. Com isso, estamos investindo em
gestão inteligente, otimizando a gestão.
ConJur – Como o senhor avalia hoje a atuação do Tribunal de São Paulo? A produtividade dos juízes e dos desembargadores?
Renato Nalini – No geral melhorou, porque temos tido surpresas
nos últimos meses, como a queda do ingresso de processos físicos. Já é o
segundo mês que caiu o número de processos físicos [
a entrevista foi concedida no final de setembro].
Hoje, 83% da Justiça paulista está informatizada. Ao mesmo tempo, sou
corregedor dos desembargadores. Tenho que cobrar produtividade, até
porque a corregedora nacional [
ministra Nancy Andrighi] costuma
telefonar para saber se estou monitorando casos que são crônicos. A
pessoa não consegue acelerar a produtividade porque quer fazer sozinha.
Daí eu me pergunto: para que ter um gabinete, que é um gasto
considerável? O desembargador precisa orientar linhas mestras, mas
também deixar o gabinete trabalhar e produzir. Isso justifica um
gabinete. Mas a maior parte está respondendo bem.
ConJur – Nesses casos, o senhor chama os desembargadores para conversar?
Renato Nalini – Chamo todos para conversar, reservadamente. E
estamos conseguindo progresso. O melhor é a conscientização. Chegamos ao
limite. A Justiça permaneceu autista durante muito tempo, não queria
tomar conhecimento da sociedade, até por causa de seu conservadorismo. O
juiz diz: “não posso me relacionar porque depois vou perder a
imparcialidade”. Mas não é isso. Simultaneamente, estamos tentando
resgatar a autoestima do funcionário. Fiz tudo o que foi possível para
compensar as reivindicações. Muitas são legítimas, mas outras são
próprias do funcionário público. Temos 34 sindicatos e associações
fazendo as suas reivindicações.
ConJur – O senhor vai completar o mandato sem greve?
Renato Nalini – Estamos em um ano crítico, sem orçamento, com
queda na arrecadação. Mas falamos muito francamente com os servidores.
Não prometi nada que não poderia cumprir. Embora eu tenha dobrado o
pagamento das indenizações, aqueles passivos que o Estado tem e que é
difícil recuperar, sempre falta. Mas há muita gente que já recebeu quase
todo o passivo. Criamos também a escola do servidor, que oferece
capacitação. Fizemos um projeto de arte e cultura, que propicia, uma ou
duas vezes por semana, palestras com pessoas que os servidores escolhem e
que venham voluntariamente.
ConJur – A primeira instância
é o grande problema da Justiça como um todo, pela alta carga de
processos e de trabalho. Na sua gestão o que foi feito para tentar
melhorar a situação dos juízes nas suas varas?
Renato Nalini – Lentamente, porque não é fácil, trabalhamos
para que o juiz de primeiro grau tenha a mesma equipe do desembargador. O
desembargador tem quatro assistentes e três escreventes ou dois
escreventes e um estagiário, mas no mínimo seis pessoas no gabinete. O
juiz, em regra, só tinha um assistente e a equipe do cartório. Com a
informatização, gradualmente, servidores são liberados para exercer
outras atribuições. Não é mais necessário carregar os autos e nem toda
essa movimentação que o processo físico demanda. Então, aquele servidor
que tem mais vontade de estudar, de pesquisar, de fazer minuta de
decisões, etc., pode mudar de atribuições. Mesmo antes das metas do CNJ,
sempre defendi que a Justiça de primeiro grau é a mais importante.
Deveríamos terminar a maior parte dos processos em primeira instância,
porque é o juiz que olha no rosto das pessoas. Quando chega no tribunal,
os desembargadores julgam a tese, doutrina, é uma ficção. Não estamos
ali com o caso flamejando.
ConJur – Há uma previsão para o aumento da equipe dos juízes?
Renato Nalini – Sim, mas é um processo lento. Temos que criar
legislação para transformar o agente em escrevente, por exemplo. O
agente é uma pessoa que auxilia em coisas menores. Mas vimos que, pela
necessidade, eles começaram a fazer serviço de escrevente. Já enviamos
para a Assembleia um projeto de lei para que os agentes, desde que façam
um curso e passem por uma prova, para não frustrar a regra do concurso
público, sejam escreventes. Temos uma estrutura de 140 anos, que foi se
formando aos poucos, e não é fácil de mudar. Mas estamos ressuscitando a
ideia de família forense, pedindo que todos se motivem, que todos se
sintam empenhados, que se sintam concretizadores da Justiça.
ConJur – O tribunal tem editado súmulas para uniformizar os seus entendimentos?
Renato Nalini – São as seções que editam. O Órgão Especial
aprova, mas quem faz são as seções. Fico extremamente angustiado quando
vejo milhões de processos iguais que poderíamos brecar antes da
distribuição. A minha ideia era fazer uma barreira prévia: se todos são
iguais, separamos antes da distribuição e aplicamos a mesma decisão para
todos. Isso aliviaria muito e não haveria essa loteria. Mas ainda não
consegui. Pedi, por escrito, aos presidentes das seções para que
fizessem isso. O STJ tem o núcleo de recursos repetitivos e o Supremo
também, por que nós ao podemos? Inclusive, já existe o núcleo de
recursos repetitivos, o Nurer, mas mudar a cultura é muito difícil.
ConJur – As audiências de custódia estão funcionando?
Renato Nalini – Da melhor maneira possível. Estou extremamente
satisfeito. Confesso que tinha receio. Nós estávamos muito atrasados no
cumprimento do compromisso que assumimos internacionalmente e também da
Constituição de 1988. Eu era juiz auxiliar da presidência quando a
Constituição foi editada. E, naquela época, propus ao presidente que
cumpríssemos o seu inciso LXII do artigo 5º: “a prisão de qualquer
pessoa e o local onde se encontra serão comunicados imediatamente ao
juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada”.
Desde 5 de outubro de 1988 isso existe. Fiz um parecer ao presidente,
mas, bom, não deu. O Pacto de São José da Costa Rica, que é de 1969,
também prevê. E o resultado é que quase 40% das pessoas não precisariam
ficar presas. Vimos que é possível, que é só ter vontade e coragem. Deu
tudo certo e o subproduto, que é aliviar um pouco o sistema carcerário,
também deve ser levado em conta em tempos de crise, já que é tão caro
abrigar um preso.
ConJur – A audiência de custódia foi determinação do CNJ?
Renato Nalini – Não, foi iniciativa nossa. Mas o ministro Ricardo Lewandowski
[presidente do STF e do CNJ]
e o secretário de Segurança Pública Alexandre de Moraes também queriam.
Houve uma coincidência. Se alguém tivesse sido contra, não teria saído
do papel. As audiências de custódia estão se espalhando.