terça-feira, 13 de outubro de 2015

"Sociedade deve escolher se resolve seus litígios ou paga para a Justiça resolvê-los"


A dois meses do fim do seu mandato e de sua aposentadoria, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato Nalini, faz críticas à sociedade brasileira, chama cidadãos e empresas à responsabilidade, diante do número de processos em tramitação, e se queixa da dificuldade de se mudar a cultura de litigância também dentro do maior tribunal do país e do mundo.

A existência de mais de 100 milhões de processos no Judiciário brasileiro, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, indica que a sociedade está doente, na opinião de Nalini. “No mínimo, ela sofre de infantilidade, de uma síndrome da tutela permanente”, disse em entrevista à equipe do Anuário da Justiça de São Paulo em seu gabinete no centro da cidade de São Paulo.

O desembargador sugere que a sociedade faça a sua escolha: resolva sozinha os simples problemas cotidianos e dedique a Justiça apenas aos grandes casos ou, então, pague pelo crescimento de sua estrutura. “Tentamos chamar a atenção da sociedade de que se é esse o modelo que ela quer, então, que ponha a mão no bolso e prepare-se para ser sacrificada ainda mais, porque a máquina não vai parar de crescer.”

De dentro da corte, para melhorar o atendimento à população, tem trabalhado para aumentar a equipe de assessores nas varas, instância judicial que considera a mais importante. Até o final de 2015, 100% da Justiça paulista estará apta a aceitar apenas o processo eletrônico. Com a redução da burocracia e a necessidade de menos pessoas no cartório, haverá mais servidores para atuar diretamente na atividade-fim da Justiça. Não há data certa ainda para que essa mudança se torne realidade.

Tem também acompanhado de perto a produtividade dos desembargadores. E lamenta não ter conseguido apoio dos colegas para criar um mecanismo para barrar a distribuição de casos repetitivos. A ideia seria identificar os temas repetidos e, antes da distribuição, aplicar a mesma decisão para todos. O que tornaria a decisão mais rápida e uniforme. Um dos argumentos contrários à ideia é o princípio do juiz natural, que exige um relator para cada ação.

Nascido em Jundiaí, José Renato Nalini completa 70 anos no dia 24 de dezembro de 2015. Quase 40 deles foram dedicados à Justiça paulista. Foi presidente do Tribunal de Alçada, integrante da Seção de Direito Público do TJ, corregedor e presidente. Antes, teve uma passagem de três anos pelo Ministério Público de São Paulo. Na seção “sobre mim”, no blog pessoal que mantém há anos, apresenta-se como presidente do Tribunal de Justiça, ex-presidente da Academia de Letras, professor universitário e autor de livros como Ética da Magistratura e A Rebelião da Toga. Escreve artigos sobre variados temas, desde crise financeira, alimentação, limpeza urbana e, por que não?, Judiciário. Tem também uma coluna semanal no jornal Diário de S. Paulo.


Leia a entrevista:
 


ConJur – O país ultrapassou o número de 100 milhões de processos, de acordo com o último Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. O que esse número de processos representa para o Judiciário, para a sociedade?
Renato Nalini –
É um exagero. Embora os interessados não achem, isso é patologia. Uma sociedade que precisa da Justiça para todo e qualquer problema é uma sociedade que está doente. No mínimo, ela sofre de infantilidade, de uma síndrome de tutela permanente.

ConJur – As pessoas são incapazes de resolver os próprios problemas?
Renato Nalini –
Sim. A sociedade precisaria estar formada por pessoas preparadas para enfrentarem, pelo menos, as questões pequenas. Ou seja, sentar, conversar. O advogado brasileiro precisa ser mais um arquiteto de soluções e não um fomentador de litígios.

ConJur – A advocacia tem responsabilidade sobre esse exagero?
Renato Nalini –
Em grande parte sim, porque deveria partir das profissões jurídicas o interesse em disseminar uma cultura da pacificação, da conciliação. Nós temos um processo judicial muito sofisticado, muito lento porque tem quatro instâncias e mais de 50 recursos e o excesso de normatividade, o excesso de formalismo não contribui para pacificar a sociedade. Não estou falando isso para reduzir a carga de trabalho praticamente invencível dos juízes e dos funcionários. Nós temos uma expertise muito boa em crescer, fazemos pressão e lobby junto ao parlamento e eles vão criando cargos. Mas essa estrutura gigantesca não significa que a Justiça seja cada vez mais eficiente. Nós temos que trabalhar com outras opções.

ConJur – Quais?
Renato Nalini –
A primeira é essa: criar uma cultura de pacificação; deixar o juiz para coisas sérias. Não faz sentido milhões de processos iguais pedindo a mesma coisa quando a solução já foi dada até em instância superior. Nós temos que encontrar uma fórmula de brecar isso e falar: está valendo a decisão tal ou a decisão tal. E não adianta querer argumentar que o seu caso é um pouquinho diferente. A questão é a mesma, é o mesmo direito lesado. Essa é uma política pública que tem que ser levada a sério. As profissões jurídicas têm que acordar. Não se pode fazer desse país um enorme tribunal, com um juiz em cada esquina e com aquela estrutura pesada, porque ao lado do juiz tem que ter funcionários, promotor que também tem funcionários, defensor público, procurador e aquela legião de profissões jurídicas.

ConJur – O que falta para as pessoas conseguirem resolver os próprios problemas?
Renato Nalini –
Falta crescer, falta assumir responsabilidades, falta educação. Nós somos a República dos direitos. Todo mundo clama por direitos, exige direito, mas aparentemente as pessoas faltaram à aula dos deveres, das obrigações, das responsabilidades. Não estou dizendo isso só para aliviar a Justiça, não, porque nós podemos crescer. A sociedade não pode continuar assim tutelada, esperando que o governo faça por ela o que ela poderia conseguir sozinha, através de sacrifício, esforço, trabalho, devotamento, empenho, zelo e todas essas coisas que foram esquecidas. Se ela aprendesse, não teria deixado a República chegar onde chegou. Uma pessoa puerilizada, que fica esperando o Estado-juiz resolver os seus problemas, que não consegue resolver nem as coisas minúsculas, pequenas, corriqueiras, ela nunca vai conseguir participar da gestão da coisa pública.

ConJur – Como mudar essa situação?
Renato Nalini –
Educação. Principalmente, educação jurídica, que é anacrônica, conservadora, só ensina a litigar. O advogado recebeu o status de “essencial à administração da justiça”, mas isso não significa judicializar todos os problemas. Administrar a Justiça é fazer justiça, é fazer uma advocacia de pacificação, uma advocacia de prevenção, uma advocacia de aconselhamento.

ConJur – Na Seção de Direito Privado do TJ-SP, grande parte da demanda se dá por problemas na prestação de serviços, por desrespeito aos direitos dos consumidores, inscrições indevidas em cadastros de restrição ao crédito. Há uma aproximação do Judiciário com essas empresas?
Renato Nalini –
Nós estamos fazendo esse trabalho também. Incentivamos a conciliação e disseminamos os Cejuscs [Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania]. O desembargador Ivan Sartori investiu bastante na gestão deles e eu continuei chamando as empresas para fazer acordos de cooperação. Criei também o selo Empresa Amiga da Justiça, para reduzir a judicialização.

ConJur – Que tipo de empresas são procuradas?
Renato Nalini –
Todas. Começou com a TAM, depois a Gol, e vieram outras mais. Recentemente, o presidente da Sabesp veio até o tribunal e decidimos fazer um grande mutirão. Os bancos também, Itaú, Bradesco, as seguradoras. Todos estão sendo chamados. Os municípios também.

ConJur – Cada empresa tem uma meta de redução de processos?
Renato Nalini –
Sim. Se a empresa atingir a meta, ela consegue o selo “Amiga da Justiça”. Mas o objetivo final desse projeto é conscientizar as empresas. Houve o caso de um banco que tinha 400 escritórios de advocacia pelo Brasil inteiro para representá-lo. Peguei uma petição, na época em que eu estava na Corregedoria, que tinha erros de português, coisas ininteligíveis. Tirei cópia e levei para o presidente do banco. Perguntei se ele achava que estava bem representado por um analfabeto, falei sobre o quanto ele perdia de dinheiro com uma defesa ruim. Depois disso, ele foi diminuindo o número de escritórios e hoje são apenas quatro. Ele colocou também uma equipe imensa de atendimento aos clientes. No fim, é a falta de comunicação que leva a tantos desentendimentos. A pessoa pode até tentar uma solução, mas é mal recebida ou não é nem atendida, e aí entra com processos. Abrimos uma porção de frentes para repensar os litígios. Mas acredito que a nossa maior contribuição é fazer a sociedade prestar atenção no que está acontecendo. É lógico que, se ela quiser, vamos continuar crescendo, vamos ter 100 mil juízes. Só que aí ela vai ver o que isso significa.

ConJur – Terá que pagar, é isso?
Renato Nalini –
Sim, é isso. Esse tribunal é o maior do planeta, não é só o maior do Brasil. E como maior do planeta, tem os maiores problemas também. Embora o orçamento seja bilionário, maior até que o de vários estados da Federação, é insuficiente. Tentamos chamar a atenção da sociedade de que se é esse o modelo que ela quer, então, que ponha a mão no bolso e prepare-se para ser sacrificada ainda mais, porque a máquina não vai parar de crescer. Você pode tentar resolver as coisas mais simples e deixar a Justiça, que é um equipamento dispendioso, para as questões complexas. A sociedade deve assumir as suas responsabilidades, ter deveres, obrigações e ajudar a República a voltar para o caminho certo. Outra alternativa é a informatização. Assumimos o risco de um projeto audacioso que é só nosso. Apesar de termos sido pressionados a usar o PJe, porque o CNJ queria padronizar o sistema, insistimos no nosso próprio projeto, que funciona e já foi assimilado pelos advogados, pelos juízes. Seria um contrassenso, seria nefasto e seria jogar o dinheiro do povo fora abandonar isso por causa de um projeto que o CNJ trouxe muito depois do nosso.

ConJur – Na gestão do ministro Ricardo Lewandowski foi possível dialogar mais?
Renato Nalini –
Sim. Mas do ministro Joaquim [Barbosa, ex-presidente e ministro aposentado do STF] não posso reclamar, porque ele foi pressionado pelos conselheiros e pelos que estavam tentando impor o PJe goela abaixo do Tribunal de Justiça. Ele foi aconselhado até a intervir aqui e ele não fez isso. Disse que não, que confiava no que São Paulo estava fazendo e para deixar assim.

ConJur – O sistema do TJ de São Paulo conversa com o PJe?
Renato Nalini –
Tem que ter interoperabilidade. Essa é a receita. Não é possível ter um projeto só no Brasil inteiro, num Brasil continental, um Brasil tão diferente. O que precisa é que eles conversem, a chamada interoperabilidade. O nosso sistema existe há muitos anos, passou por várias gestões, um projeto que custou R$ 6 bilhões. No dia 23 de novembro todas as unidades judiciárias do estado de São Paulo estarão preparadas para receber o peticionamento eletrônico. Isso não significa que os 26 milhões de processos em papel vão desaparecer, mas já é uma porta de entrada para que isso seja resíduo.

ConJur – Será obrigatório?
Renato Nalini –
Assim que implementado, a única alternativa será o peticionamento eletrônico. Isso vai acelerar a prestação jurisdicional, precisar de menos espaços físicos para o funcionamento da Justiça, deixar o ambiente mais agradável. Foi um passo ambicioso.

ConJur – Os advogados já se adaptaram?
Renato Nalini –
Já, todo mundo. Se eles não se adaptaram, pelo menos os assistentes já, perfeitamente. Com isso, estamos investindo em gestão inteligente, otimizando a gestão.

ConJur – Como o senhor avalia hoje a atuação do Tribunal de São Paulo? A produtividade dos juízes e dos desembargadores?
Renato Nalini –
No geral melhorou, porque temos tido surpresas nos últimos meses, como a queda do ingresso de processos físicos. Já é o segundo mês que caiu o número de processos físicos [a entrevista foi concedida no final de setembro]. Hoje, 83% da Justiça paulista está informatizada. Ao mesmo tempo, sou corregedor dos desembargadores. Tenho que cobrar produtividade, até porque a corregedora nacional [ministra Nancy Andrighi] costuma telefonar para saber se estou monitorando casos que são crônicos. A pessoa não consegue acelerar a produtividade porque quer fazer sozinha. Daí eu me pergunto: para que ter um gabinete, que é um gasto considerável? O desembargador precisa orientar linhas mestras, mas também deixar o gabinete trabalhar e produzir. Isso justifica um gabinete. Mas a maior parte está respondendo bem.

ConJur – Nesses casos, o senhor chama os desembargadores para conversar?
Renato Nalini –
Chamo todos para conversar, reservadamente. E estamos conseguindo progresso. O melhor é a conscientização. Chegamos ao limite. A Justiça permaneceu autista durante muito tempo, não queria tomar conhecimento da sociedade, até por causa de seu conservadorismo. O juiz diz: “não posso me relacionar porque depois vou perder a imparcialidade”. Mas não é isso. Simultaneamente, estamos tentando resgatar a autoestima do funcionário. Fiz tudo o que foi possível para compensar as reivindicações. Muitas são legítimas, mas outras são próprias do funcionário público. Temos 34 sindicatos e associações fazendo as suas reivindicações.

ConJur – O senhor vai completar o mandato sem greve?
Renato Nalini –
Estamos em um ano crítico, sem orçamento, com queda na arrecadação. Mas falamos muito francamente com os servidores. Não prometi nada que não poderia cumprir. Embora eu tenha dobrado o pagamento das indenizações, aqueles passivos que o Estado tem e que é difícil recuperar, sempre falta. Mas há muita gente que já recebeu quase todo o passivo. Criamos também a escola do servidor, que oferece capacitação. Fizemos um projeto de arte e cultura, que propicia, uma ou duas vezes por semana, palestras com pessoas que os servidores escolhem e que venham voluntariamente.

ConJur – A primeira instância é o grande problema da Justiça como um todo, pela alta carga de processos e de trabalho. Na sua gestão o que foi feito para tentar melhorar a situação dos juízes nas suas varas?
Renato Nalini –
Lentamente, porque não é fácil, trabalhamos para que o juiz de primeiro grau tenha a mesma equipe do desembargador. O desembargador tem quatro assistentes e três escreventes ou dois escreventes e um estagiário, mas no mínimo seis pessoas no gabinete. O juiz, em regra, só tinha um assistente e a equipe do cartório. Com a informatização, gradualmente, servidores são liberados para exercer outras atribuições. Não é mais necessário carregar os autos e nem toda essa movimentação que o processo físico demanda. Então, aquele servidor que tem mais vontade de estudar, de pesquisar, de fazer minuta de decisões, etc., pode mudar de atribuições. Mesmo antes das metas do CNJ, sempre defendi que a Justiça de primeiro grau é a mais importante. Deveríamos terminar a maior parte dos processos em primeira instância, porque é o juiz que olha no rosto das pessoas. Quando chega no tribunal, os desembargadores julgam a tese, doutrina, é uma ficção. Não estamos ali com o caso flamejando.

ConJur – Há uma previsão para o aumento da equipe dos juízes?
Renato Nalini –
Sim, mas é um processo lento. Temos que criar legislação para transformar o agente em escrevente, por exemplo. O agente é uma pessoa que auxilia em coisas menores. Mas vimos que, pela necessidade, eles começaram a fazer serviço de escrevente. Já enviamos para a Assembleia um projeto de lei para que os agentes, desde que façam um curso e passem por uma prova, para não frustrar a regra do concurso público, sejam escreventes. Temos uma estrutura de 140 anos, que foi se formando aos poucos, e não é fácil de mudar. Mas estamos ressuscitando a ideia de família forense, pedindo que todos se motivem, que todos se sintam empenhados, que se sintam concretizadores da Justiça.

ConJur – O tribunal tem editado súmulas para uniformizar os seus entendimentos?
Renato Nalini –
São as seções que editam. O Órgão Especial aprova, mas quem faz são as seções. Fico extremamente angustiado quando vejo milhões de processos iguais que poderíamos brecar antes da distribuição. A minha ideia era fazer uma barreira prévia: se todos são iguais, separamos antes da distribuição e aplicamos a mesma decisão para todos. Isso aliviaria muito e não haveria essa loteria. Mas ainda não consegui. Pedi, por escrito, aos presidentes das seções para que fizessem isso. O STJ tem o núcleo de recursos repetitivos e o Supremo também, por que nós ao podemos? Inclusive, já existe o núcleo de recursos repetitivos, o Nurer, mas mudar a cultura é muito difícil.

ConJur – As audiências de custódia estão funcionando?
Renato Nalini –
Da melhor maneira possível. Estou extremamente satisfeito. Confesso que tinha receio. Nós estávamos muito atrasados no cumprimento do compromisso que assumimos internacionalmente e também da Constituição de 1988. Eu era juiz auxiliar da presidência quando a Constituição foi editada. E, naquela época, propus ao presidente que cumpríssemos o seu inciso LXII do artigo 5º: “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada”. Desde 5 de outubro de 1988 isso existe. Fiz um parecer ao presidente, mas, bom, não deu. O Pacto de São José da Costa Rica, que é de 1969, também prevê. E o resultado é que quase 40% das pessoas não precisariam ficar presas. Vimos que é possível, que é só ter vontade e coragem. Deu tudo certo e o subproduto, que é aliviar um pouco o sistema carcerário, também deve ser levado em conta em tempos de crise, já que é tão caro abrigar um preso.

ConJur – A audiência de custódia foi determinação do CNJ?
Renato Nalini –
Não, foi iniciativa nossa. Mas o ministro Ricardo Lewandowski [presidente do STF e do CNJ] e o secretário de Segurança Pública Alexandre de Moraes também queriam. Houve uma coincidência. Se alguém tivesse sido contra, não teria saído do papel. As audiências de custódia estão se espalhando.

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