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Cápsulas contra o câncer: o TJ liberou a distribuição de cápsulas da fosfoetanolamina sintética a cerca de 800 pacientes
São Paulo – Há dez anos, a comerciante Telma, que não quer ter seu
sobrenome divulgado, foi diagnosticada com tricoleucemia na medula
óssea. Com o tratamento de quimioterapia, o volume do tumor foi reduzido
após alguns meses. No final de 2013, o câncer, no entanto, voltou.
Com uma nova sessão de quimioterapia agendada para março de 2014, Telma soube da existência da fosfoetonolamina – substância que supostamente cura ou ameniza os sintomas da doença.
Contra a orientação médica, ela cancelou o tratamento tradicional e
iniciou o consumo das cápsulas. De acordo com ela, a terapia alternativa
rendeu resultados positivos já nos quatro primeiros meses.
“Hoje, com 49 anos, eu me sinto ótima. A resposta que eu tive com a
fosfo foi muito melhor do que o resultado da quimio – mesmo nove anos
mais velha”, diz em entrevista à EXAME.com.
O problema é que a cápsula azul e branca, como a fosfoetonolamina também
é conhecida, nunca passou por testes clínicos ou toxicológicos com
humanos. Isso significa que a distribuição da substância é feita sem
autorização.
Mesmo assim, a droga foi distribuída gratuitamente durante 20 anos pelo
hoje professor aposentado Gilberto Orivaldo Chierice, precursor das
pesquisas com a substância no Brasil. Na época, ele era chefe do
Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP de São Carlos, no interior de São Paulo.
Em 2014, o instituto proibiu a produção e distribuição de substâncias
médicas e sanitárias que não possuíssem registro, seguindo uma
regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A droga, no entanto, só deixou de ser distribuída na universidade no
final de setembro, após veto do Tribunal de Justiça de São Paulo
(TJ-SP).
Contudo, no início deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em favor de uma pessoa que solicitou judicialmente o consumo da droga.
Baseado nessa decisão, o TJ-SP voltou atrás e liberou a fosfo para cerca
de 800 pacientes - para quem a USP enviou a substância pelo correio.
Nos últimos dias, segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, a
universidade chegou a receber, por dia, até 50 pedidos com liminares.
A Defensoria Pública da União, em ação civil protocolada na semana
passada, defende que o fornecimento da substância seja liberado aos
pacientes que já passaram por todos os tratamentos possíveis, sem
resultados positivos.
"Existe aqui um conflito de direitos fundamentais. De um lado existe a
necessidade de avançar com os testes clínicos e conseguir a autorização
da Anvisa e, do outro, o direito a vida e saúde dos pacientes que
tentaram todos os caminhos possíveis que a medicina oferece", afirma
Daniel Macedo, defensor público responsável pelo caso. "A Defensoria não
pode ignorar centenas de relatos baseados em pesquisa científica e
prescrições assinadas".
Segundo Jan Carlo Delorenzi, farmacêutico responsável pelo Laboratório
de Farmacologia da Universidade Mackenzie, a molécula produzida por
Chierice é um lipídio (uma espécie de gordura) semelhante ao que
encontramos nas próprias células de um organismo humano.
Na teoria, quando o paciente ingere doses suplementares de fosfo, o
sistema imunológico detectaria a presença da célula cancerosa e
iniciaria o processo de morte celular. Dessa forma, o próprio organismo é
quem combateria o câncer. No entanto, até o momento, não há nenhuma
pesquisa clínica que comprove a hipótese.
O que falta para a substância ser liberada?
Para que um produto possa circular no mercado brasileiro, a Anvisa
precisa comprovar sua eficácia e riscos para a saúde. Veja quais são as
etapas.
Delorenzi, do Mackenzie, estima que só a pesquisa clínica para
medicamentos usados no combate ao câncer (primeira etapa do processo)
pode chegar ao custo de 2 milhões de reais.
“Em um estudo como esse é preciso fazer seguro de vida para as pessoas
que se submetem aos testes, pagar o médico, os exames e até a internação
se o paciente estiver se tratando com quimioterapia”, diz. “Sem dúvida é
necessário que haja um financiador”.
Até agora, contudo, os testes com a fosfoetonolamina, realizados por
Chierice, se restringiram a camundongos. De acordo com estudos do
professor aposentado da USP, os animais que receberam a substância
apresentaram uma redução do tamanho do tumor.
“O comportamento do animal é muito diferente do comportamento humano. Se
o grupo de pesquisadores da USP fizesse esse teste, aí sim haveria
algum indício de segurança para ingestão do produto”, afirma Delorenzi.
Dessa forma, segundo o professor do Mackenzie, a substância não deveria
ser ingerida por humanos. “É preciso um mínimo de segurança que os dados
apresentados nos estudos do professor Gilberto ainda não garantem",
diz. “Do jeito que está sendo feito, não é possível saber nem se há
vestígios de detergente, por exemplo”.
Por que a substância não foi aprovada até agora?
O pesquisador aposentado da USP de São Carlos alega que procurou a
Anvisa quatro vezes e, em todas, foi informado que faltavam os testes
clínicos.
Chierice conta que chegou a procurar hospitais públicos para realizar os procedimentos – mas não obteve retorno.
Na última quinta-feira (22), deputados estaduais de São Paulo
protocolaram um pedido para a criação de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para apurar a demora do Estado em realizar testes com a
substância.
A Anvisa diz que a USP corre o risco de sofrer graves sanções caso
passe a fabricar e distribuir as pílulas. De acordo com a agência, o ato pode ser considerado ilegal, já que a substância não passou por testes clínicos em humanos.
Enquanto isso, nas redes sociais...
Os relatos de resultados milagrosos após o uso da substância pipocam nas
redes sociais. Só no Facebook, EXAME.com mapeou ao menos 8 grupos que
defendem a liberação da cápsula.
No caso de Telma, descrito no início dessa reportagem, a evolução do
quadro clínico da paciente exposto nos laudos é evidente. Os exames
foram enviados por ela à reportagem.
No entanto, segundo Adgmar Andriolo, ex-presidente da Sociedade
Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), são
necessários outros procedimentos para determinar se houve cura, ou não,
da doença.
Em nota, a Universidade de São Paulo (USP) alerta os pacientes sobre oportunistas que pregam fórmulas milagreiras:
“É compreensível a angústia de pacientes e familiares acometidos de
doença grave”, afirma a nota. “Nessas situações, não é incomum o recurso
a fórmulas mágicas, poções milagrosas ou abordagens inertes. Nessas
condições, pacientes e seus familiares aflitos se convertem em alvo
fácil de exploradores oportunistas”.
Telma foi tratada por Carlos Kennedy Witthoeft, que não é médico ou
químico, mas fabricava a fosfoetonolamina. Em junho, ele foi preso por
falsificar o produto e, hoje, segue em liberdade provisória.
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