Não dá mais para fazer ciência de ponta no Brasil, diz a neurocientista
Suzana Herculano-Houzel, que está prestes a trocar o Instituto de
Ciências Biomédicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
pela Universidade Vanderbilt, em Nashville (EUA). "Não na área
biomédica, pelo menos", ressalva Suzana, para quem a crise de
financiamento da pesquisa no país foi o "estopim" necessário para
aceitar o convite da instituição americana.
Mesmo sem a falta atual de dinheiro, porém, a pesquisadora e colunista da Folha
define com uma única palavra tudo o que, na sua opinião, está errado
com o jeito brasileiro de fazer ciência e que fortaleceu sua decisão de
deixar o país: engessamento. "É um engessamento que se aplica a vários
aspectos –à questão salarial, a essa ideia de isonomia que é maldita
para a academia", explica ela.
O fato de que muitos dos pesquisadores do país são funcionários
concursados de universidades e instituições públicas, com poucos
incentivos para aumentar sua produtividade e poucos riscos se produzirem
pouco, atrapalha quem quer se destacar, argumenta ela. A falta de foco
nos investimentos em pesquisa, bem como a burocracia e os custos
altíssimos, completam o cenário desanimador, segundo ela.
Autora de best-sellers sobre neurociência e de estudos de impacto sobre
como a arquitetura do cérebro humano surgiu, Suzana conversou com a
Folha pouco antes de partir para Nashville com o filho –seu marido já
está lá, e seus cachorros estão a caminho da cidade do sul dos EUA.
Confira a entrevista.
Folha - A negociação a respeito da sua ida para os EUA já está acontecendo faz bastante tempo, certo?
Suzana Herculano-Houzel - Sim, o processo começou no ano passado,
em setembro. Quando surgiu a possibilidade de uma vaga, começaram os
procedimentos, que incluem uma entrevista, palestras que eu fui dar por
lá, minha visita aos departamentos da universidade –é um processo
complexo porque é uma vaga com estabilidade.
Então já é com "tenure" [estabilidade no emprego até a aposentadoria,
categoria para os professores de elite das universidades americanas]?
É, é com "tenure". Envolve também uma consulta da universidade a
especialistas da área, que não podem ser meus colegas nem meus
colaboradores diretos. Então é um processo de vários meses até a oferta
de trabalho oficial.
No meio desse trâmite, em nenhum momento a sra. se sentiu tentada a olhar para trás e reconsiderar a decisão de sair do país?
Olha, se eu trabalhasse numa universidade americana e estivesse
descontente por qualquer razão, ou mesmo se estivesse contente e fosse
sondada por outra instituição, haveria maneiras de eu conversar com a
direção da universidade e perguntar: vocês acham que é do interesse de
vocês cobrir a oferta, criar um caminho de negociação?
Aqui, por outro lado, o que vale para mim vale para todo mundo, em
salários, benefícios e condições de trabalho. Do lado brasileiro sempre
foi tudo muito claro: o que você tem é isso e acabou. Se existe
alternativa, ela está do lado de fora.
Houve gente que sugeriu que eu tentasse ir para São Paulo, onde pelo
menos há a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo]. Aí o caminho seria eu pedir uma transferência da UFRJ para a
Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], de federal para federal.
Mas isso não muda absolutamente nada, no fundo. Eu teria um laboratório
um pouco maior, talvez, mas a questão do salário, da verba para pesquisa
e, principalmente, da dificuldade de usar os recursos para pesquisa
continuariam sendo muito difíceis.
Pensando a longo prazo, o que pesou mais na sua decisão?
Em uma palavra: engessamento. É um engessamento que se aplica a vários
aspectos –à questão salarial, a essa ideia de isonomia que é maldita
para a academia, que tem como princípio a busca por conhecimento e o
fato de que pessoas diferentes têm capacidades diferentes.
Fora daqui, você pode incentivar isso para poder recompensar o trabalho
bem feito e, inclusive para estimular as gerações seguintes: se você
trabalha num laboratório bastante produtivo, vai conseguir mais recursos
para ele, não apenas dos financiadores federais, mas, no caso dos EUA,
dos próprios fundos da universidade.
Imagine como é, para um jovem de 20 e poucos anos, ter esse exemplo e
perceber que, ao se esforçar, o esforço é recompensado. E isso vale não
só para os EUA mas também para a Europa. Quanto mais e melhor eu
trabalhar, melhores serão as minhas condições. Por outro lado, existem
avaliações contínuas e riscos que eu corro se meu desempenho não é
satisfatório.
No Brasil, o engessamento é para cima e para baixo –além de haver pouca
recompensa para o mérito, falta também o risco de punição, de você
perder o seu posto porque não produz. Você é professor, funcionário
público –se cumpre a sua carga de aulas, qual seria a justificativa para
qualquer tipo de punição?
No nosso instituto a gente tentou implementar mecanismos de avaliação da
qualidade das aulas pelos alunos, ou da produção de pesquisa feita por
pares [outros cientistas] externos, mas até onde sei as iniciativas
nunca davam em nada. Por acaso você vai poder tirar um professor pouco
produtivo do seu laboratório? Não vai. Esse engessamento da carreira
tira toda a motivação para se empenhar a produzir mais.
E há um engessamento administrativo. Os US$ 600 mil que eu recebi de um
prêmio dos EUA [da Fundação James McDonnell] são administrados pela
UFRJ, ou seja, vão para a conta da União. Queria usar esse financiamento
para contratar pessoas para um projeto sobre a relação entre
metabolismo e número de neurônios, mas nunca consegui, porque não dá
para contratar alguém sem concurso público.
Volta e meia eu tenho de pedir "compra por favor US$ 10 mil desse
anticorpo" e preciso arrumar cartas do fabricante atestando que só eles
fabricam aquilo. Se você tem a sorte de usar algo que só uma empresa
fabrica no mundo, como a gente –porque eu trabalho com literalmente
dúzias de espécies diferentes, então não é qualquer produto que vai
funcionar–, maravilha, não precisa sofrer com licitação. Mas ainda assim
leva no mínimo três meses de trâmite, mais impostos absurdos, mais
burocracia.
Enquanto isso, nossos concorrentes –e ciência tem concorrência, sim–
podem pegar o telefone, ligar para a empresa e, no dia seguinte, o
produto está na mesa deles. Eu não estou exagerando. Isso quando a
empresa não tem uma sala de recursos dentro da própria universidade e
você pode ir até lá, abrir a geladeira e pegar o que você precisa na
hora.
Sem a crise econômica atual, a sra. acha que teria saído do Brasil mesmo assim?
Eu diria que a crise foi mais um estopim que facilitou a negociação do lado americano.
O convite partiu deles, então?
Sim, eles consideram isso como "opportunity hire" [algo como
"contratação de oportunidade"], quando você identifica uma pessoa que
quer trazer por causa do perfil dela e do que ela pode trazer para a
universidade.
Essa é mais uma amostra do não engessamento, do sistema flexível e ágil
por lá. O Instituto Max Planck, da Alemanha, por exemplo, é craque em
identificar quem tem um perfil interessante como pesquisador em qualquer
país do mundo.
Qual o risco de as pessoas interpretarem sua atitude como algo
"antipatriótico", como de alguém que está "dando uma banana" para o
Brasil?
Pelo que tenho visto nas redes sociais, essas pessoas são uma minoria
ínfima, as reações são maciçamente de apoio. A ciência não tem
fronteiras. O importante é produzir conhecimento. O que as pessoas estão
dizendo, em geral, é: "Vá sim, aproveite que querem te dar condições
boas, mas não se esqueça da gente". Tenho esse gosto muito grande pela
divulgação científica e acho que a ciência é patrimônio da humanidade.
A única grande barreira é não poder gerar mais conhecimento, e
infelizmente não dá mais para conseguir fazer ciência de ponta aqui -
não em biomédicas, pelo menos. O que você tem são ilhas de excelência,
como o trabalho do Stevens [Rehen, também da UFRJ], que continua como
professor da UFRJ mas também recebe recursos da iniciativa privada, do
Idor [Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino].
Sei que não é por falta de tentativa de apoio da Faperj [fundação
estadual de amparo à pesquisa do Rio]. O Jerson Lima Silva [diretor
científico do órgão] é um cara extraordinário, empenhado,
bem-intencionado. Mas ele depende de recursos que vêm do Estado, e se o
Estado já não libera nada, não há o que se fazer –estamos esperando
recursos prometidos no final de 2014 ainda.
O que termina de piorar a situação, sobretudo no caso do CNPq [principal
órgão federal de apoio à pesquisa], é a prática nociva, ainda que
bem-intencionada, de pulverizar recursos, financiando o maior número
possível de projetos com algum dinheiro que seja. Mesmo os mais bem
avaliados vão receber um terço do máximo que pediram, e note que o teto
dos pedidos já era de apenas R$ 120 mil para três anos.
Esse teto muito baixo limita que tipo de perguntas científicas você pode
fazer, ficamos limitados pela pulverização. Falta coragem de desagradar
a algumas pessoas que talvez estejam há décadas fazendo coisas que não
têm ambição e de ter um foco em projetos realmente excelentes, que
precisam de condições reais para fazer seu trabalho. O jeito de se fazer
ciência no Brasil precisa ser completamente repensado e repaginado.
http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2016/05/1767938-engessamento-me-fez-deixar-o-pais-diz-a-neurocientista-suzana-herculano.shtml?cmpid=compfb