Depois da venda da BR Distribuidora, o ministro da economia tenta cumprir uma ambiciosa agenda de privatizações, mas há dúvidas sobre o avanço e o impacto dessa estratégia
Bancos públicos deveriam ser privatizados, o BNDES deveria
ser extinto e a Petrobras também privatizada.” A fala do presidente da
Petrobras, Roberto Castello Branco, durante evento em março, no Rio de
Janeiro, ilustra bem como seria o seu mundo ideal. No entanto, ele
admitiu que isso tudo é muito difícil de acontecer. “É como a música dos
Rolling Stones: ‘You can’t always get what you want’” (“você nem sempre
pode ter o que quer”), completou. As credenciais liberalizantes da
equipe econômica são bastante conhecidas. Além de Castello Branco,
também defendem a venda de estatais o empresário mineiro Salim Mattar,
escolhido como secretário de desestatização e desinvestimento e, em
especial, o chefe de todos eles: o ministro da economia, Paulo Guedes.
Este último chegou a prometer, durante a campanha presidencial, levantar
R$ 1 trilhão com a venda de ativos federais. Mas, para quem esperava um
avanço agressivo logo de cara, a filosofia “rollingstoniana” promete
ser a tônica do governo. “Há diversos processos caminhando, e à medida
que cada um estiver pronto, nós vamos divulgar ao mercado”, disse Mattar
à DINHEIRO. “O processo de privatização será feito de forma cuidadosa,
gradual e constante, buscando maximizar o valor para o pagador de
impostos.”
O empresário também revelou que a meta de US$ 20 bilhões deve ser
atingida já neste mês com a venda da Liquigás. O objetivo é conseguir o
máximo de vendas possível, ao mesmo tempo em que se contorna
dificuldades impostas pelo Congresso e por posturas menos liberais de
dentro do próprio governo. Ao menos é o que indica a estratégia adotada
para a venda do controle da BR Distribuidora pela Petrobras. Enquanto o
governo e parlamentares ainda festejavam a aprovação em primeiro turno
da reforma da Previdência na Câmara, a petrolífera estatal anunciava, no
dia 23 de julho, a venda em leilão na B3 do controle da distribuidora.
Com o negócio, a Petrobras baixou de 71,25% para 37,5% a sua
participação na BR, levantando R$ 9,6 bilhões. Apesar de a estatal se manter como maior acionista, a
distribuidora deixou de ter um controlador majoritário. Agora, a BR
passa a ser uma empresa de capital pulverizado, uma “corporation”.
Trata-se de um modelo pouco comum no Brasil até mesmo entre as empresas
privadas com ações cotadas na B3. Os exemplos são a Lojas Renner, a
Equatorial e a Raia Drogasil.
Quem mais aumentou a participação na BR foi o Previ, fundo de pensão
dos funcionários do Banco do Brasil. Ele teria dobrado a sua
participação para 4%, pagando R$ 600 milhões. Dessa forma, a influência
política na empresa pode se manter. “O risco está minimizado, mas se o
governo quiser pressionar para a empresa praticar um preço baixo, ele
conseguirá”, diz Sérgio Lazzarini, professor do Insper. “O governo
Bolsonaro já demonstrou que não é tão liberal quanto se pensava, ao dar
declarações sobre preços do combustível e intervir em propaganda do
Banco do Brasil.” Na prática, o governo pode continuar dando as cartas
na maior distribuidora de combustíveis do País. Mas, pelo menos por
enquanto, ele pretende se eximir da responsabilidade de controle.
Segundo o novo estatuto da BR, o número de assentos no conselho de
administração cairá de 10 para nove. E a Petrobras diminuirá a sua
presença de quatro para, no máximo, três conselheiros. “Como tudo na
vida, o equilíbrio é o ponto ótimo. No novo conselho, queremos ter todos
os perfis e estou conversando diretamente com os investidores para
trazermos gente da área de distribuição, gente de finanças,
especialistas em turnaround estratégico, de varejo, de tecnologia e de
meios de pagamentos”, disse Rafael Grisolla, presidente da BR
Distribuidora, na quinta-feira, dia 1º, em conferência com os analistas.
De qualquer forma, a venda da BR Distribuidora
poucos dias depois do avanço da Previdência no Congresso indica um novo
capítulo da agenda do ministério da Economia. Na terça-feira 30, Guedes
havia declarado que “a palavra de ordem logo após a reforma é ‘emprego e
renda’”. Dentro dessa estratégia de induzir a retomada econômica, um
dos pontos centrais é colocar a distribuição de gás na agenda de
privatizações. Ao defender o novo mercado de combustíveis, Paulo Guedes
afirmou que, depois de “10 anos com energia mais barata, o PIB
industrial vai aumentar mais 10%”, ajudando na reindustrialização do
País. Antes da BR Distribuidora, a Petrobras já havia negociado, em
junho, 90% da TAG (Transportadora Associada de Gás) com o grupo francês
Engie e para o fundo canadense CDPQ. O negócio levantou R$ 33,5 bilhões.
Castello Branco promete que a Petrobras ficará focada na exploração de
águas profundas. O próximo passo de sua gestão será a conclusão da venda
da Liquigás, já em agosto. Depois, buscará negociar oito das 13
refinarias da empresa, 15 usinas térmicas, a rede de postos em outros
países e campos de petróleo em terra e águas rasas.
Como parte do esforço para diminuir a presença da Petrobras no setor
de gás, a estatal planeja a venda completa da TBG, dona do gasoduto
Brasil-Bolívia, e da fatia de 10% que tem nas transportadoras NTS e TAG,
além da participação na Gaspetro.
Em outra frente, o governo promete para 6 de setembro o lançamento do edital, por parte da Agência Nacional do Petróleo (ANP), de vendas do excedente da cessão onerosa, que pode render bônus de R$ 107 bilhões. Trata-se do volume de petróleo descoberto que ultrapassa os cinco bilhões de barris previstos no contrato de cessão entre a União e a Petrobras em 2010. O governo espera que até 11 empresas estrangeiras disputem esse leilão.
DESESTATIZAÇÃO
A Petrobras lidera o processo de
desestatização, mas não é a única envolvida. O BNDES deve ter um papel
ainda mais relevante nessa estratégia. O novo presidente do banco de
fomento, Gustavo Montezano, tem a fama de ser um experiente
privatizador. O BNDES e o BNDESpar, o seu braço de participações em
empresas, possuem
R$ 50,52 bilhões em ações. No montante há fatias significativas de empresas como Petrobras, JBS, Copel e Cemig. Com um portfólio de tamanho volume, a ideia é se livrar das participações em dois ou três blocos. Para o segundo semestre, o BNDES pode levar R$ 35 bilhões de ações ao mercado, para que a venda não impacte muito fortemente o preço das ações dessas empresas. Montezano já se encontrou com líderes dos grandes bancos para apresentar os seus planos.
Ao adotar o modelo de “corporation” para a BR Distribuidora, em vez
de vender para outra holding, a Petrobras agilizou o processo de venda —
que vinha sendo estudada desde a passagem de Pedro Parente pela
presidência da estatal, durante o governo Michel Temer. Além disso,
evitou dois riscos. Se a venda fosse realizada para uma empresa que já
atua em distribuição no Brasil, como a Raízen ou a Ipiranga, o negócio
dificilmente seria aprovado pelo Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade). Por outro lado, se a opção fosse negociar o controle
com uma empresa estrangeira, como a ExxonMobil ou Shell, a oposição
ganharia argumentos nacionalistas para atacar o processo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu há dois meses que o governo
federal só pode vender estatais com o aval do Congresso e na forma de
licitação sempre que o negócio provocar a perda de controle acionário da
União. A regra, no entanto, não vale para subsidiárias, como a BR e a
TAG. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, chegou a
declarar, em abril, que a venda da Eletrobras será mais difícil de ser
aprovada do que a Reforma da Previdência. A desestatização também
encontra certa resistência na sociedade. Segundo pesquisa da Ipsos,
realizada há um ano, 68% dos brasileiros são contrários às
privatizações.
Uma vez contornada essas questões espinhosas, o foco na BR é o
desempenho de negócios. “O governo tirou a bola de ferro do pé da BR
Distribuidora”, afirma Adriano Pires, sócio-fundador e diretor do Centro
Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). “Ela pode escapar das
ineficiências de uma estatal, com rentabilidade menor do que suas
concorrentes, e agora pode fazer licitações mais ágeis, contratar melhor
e criar novos negócios.”
Com isso, a expectativa é valorizar a empresa e alcançar um valor
ainda maior caso a Petrobras resolva vender os 37,5% de participação
restantes. “A aposta é que, se o modelo de ‘corporation’ funcionar, ele
possa ser aplicado em privatizações futuras, como a da Eletrobras”, diz
Pires. No entanto, a economista Elena Landau, que conduziu como diretora
do BNDES o plano de privatizações do presidente Fernando Henrique
Cardoso na década de 1990, lembra que esse modelo não é o mais
eficiente. “As vendas da BR e da TAG foram bem feitas, mas esse não é o
modelo que eu usaria”, afirma. “Se o governo vendesse primeiro o
controle e depois as participações, a Petrobras já estaria agora
ganhando mais em ofertas secundárias.
Ao inverter a ordem e dar um jeitinho para a privatização passar sem
ser percebida, a venda de fato pode acabar nunca acontecendo.” A
economista acredita que o governo, ao não dar força às privatizações já
no início do ano, pode ter perdido o timing mais favorável. “Até agora
não vi nenhum programa de privatização. É preciso uma governança. Se uma
lista de empresas a serem privatizadas não for apresentada com um
cronograma, as vendas em pílulas vão enfrentar resistências uma a uma”,
diz. “Tenho certeza que Salim Mattar quer vender quase tudo. mas o
presidente quer que quase nada seja vendido. E Onyx Lorenzoni (ministro
da Casa Civil) nunca fala sobre o assunto.”
Integrantes do governo também podem estar desidratando o portflólio
de privatizações. O comando da Empresa Brasileira de Comunicações (EBC),
por exemplo, parece ser do interesse da comunicação do governo, que
sofre forte influência do filho do presidente e vereador do Rio de
Janeiro, Carlos Bolsonaro. A estatal de ferrovias Valec e a EPL (Empresa
de Planejamento em Logística) interessam ao ministro da Infraestrutura,
Tarcísio Gomes de Freitas. Por isso, há quem acredite que a Valec tem
mais chances de ser extinta do que vendida. Já a Ceitec, que produz
chips, está na zona de influência de Marcos Pontes, o ministro da
Ciência e Tecnologia.
Críticas à esquerda ao programa do governo alegam que as
privatizações, apesar de trazerem receita de curto prazo, podem
desequilibrar as contas no médio prazo. Num passado não tão distante, em
um momento de economia mais dinâmica, os cinco principais grupos
estatais ajudavam o Tesouro a fechar no azul. Em 2012, contribuíram com
R$ 30,4 bilhões. É um volume relevante para um País que ainda finaliza a
Reforma da Previdência que promete trazer uma economia entre R$ 800
milhões e R$ 900 milhões em 10 anos. Os economistas liberais defendem
que dividendos de estatais não deveriam ser importantes para fechar as
contas do governo. “O capital empatado nas estatais pode trazer mais
retorno se for direcionado para saneamento, educação e segurança”, diz
Lazzarini, do Insper.
Há um consenso de que o governo federal administra muitas empresas.
No fim de 2018, o Brasil possuía 134 estatais enquanto outros países
latino-americanos, como Argentina e Colômbia, detinham 59 e 39 estatais,
respectivamente, segundo dados compilados em 2015 pela OCDE
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Os países
mais liberais, EUA e Reino Unido, possuem 16 cada. “Mas estudos mostram
que países, em especial, europeus, estão revertendo privatizações de
empresas de saneamento e energia elétrica, porque a iniciativa privada
apenas aproveitou o capital instalado e não reinvestiu, causando perda
de qualidade de serviços”, afirma Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico
do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos). Desde 2000, ao menos 884 serviços foram reestatizados
pelo mundo, segundo estudo do TNI (Transnational Institute), centro
holandês de estudos em democracia e sustentabilidade — 89% dos casos
aconteceram a partir de 2019.
FILÉ MIGNON Outro risco do programa do governo é
vender as melhores empresas, que dão resultados positivos, e ficar com
as piores, que exigem mais injeção de capital e podem não interessar às
iniciativas privadas. “Qual o sentido de vender o filé mignon e ficar
com a carne de pescoço?”, diz Lúcio. A Infraero, por exemplo, passou a
dar prejuízo para o governo a partir de 2013, depois de vender alguns
dos seus melhores aeroportos, como o do Guarulhos (SP) e Galeão (RJ),
mantendo operações em localidades de menor interesse para o mercado.
A expectativa, tanto entre as vozes que acreditam que o plano de
Guedes é mais agressivo do que deveria ser quanto entre as que defendem
que ele jamais conseguirá cumprir as promessas feitas, é que avanços
devem acontecer nos próximos meses. O difícil é prever se o movimento
privatizador será longo, constante e profundo, conforme o desejo do
ministro. Pelo lado da equipe econômica, o negócio da BR Distribuidora
indica que um certo pragmatismo deve imperar nas próximas operações.
Afinal, como ensinaram Mick Jagger e Keith Richards, não se pode ter
tudo o que se quer.
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