O diretor-geral da companhia francesa Alstom é o maior fiador da área de compliance no Brasil. Literalmente
Francês de nascimento, Pierre Emmanuel Bercaire (foto) construiu sua
car- reira profissional no Brasil e na América Latina, onde vive há
décadas. Advogado de formação, ele atuou em empre- sas de diferentes
setores e escritórios de advocacia. Em 2013, assumiu a vice-presidência
jurídica e de Compliance da Alstom, companhia francesa líder na área de
mobilidade urbana e, naquele momento inserida num contexto de denúncias
sobre o cartel de trens do Metrô de São Paulo. Quatro anos depois, ele
continua com a responsabilidade regional pelas áreas Jurídica e de
Compliance, mas ganhou mais uma função. E não qualquer uma. Desde
janeiro de 2018, Pierre é também o diretor-geral da Alstom Brasil,
responsável pelos resultados do negócio na operação local. O executivo
recebeu a reportagem de LEC na sede da companhia. Confira abaixo, os
principais trechos da conversa.]
A Alstom tem um contexto de negócios que envolve, principalmente, vendas públicas e existe um histórico passado de problemas com enforcements. Esse contexto tem a ver com a sua indicação para a direção-geral, alguém que venha com esse background de compliance?
Acho que tem a ver com habilidades e características pessoais que
acabam te levando a um cargo mais gerencial, como o de direção-geral.
Mas, acredito que hoje, no momento no qual o Brasil encontra-se, a
importância do compliance, dos temas jurídicos que são tratados todos os
dias nos jornais, acabam dando mais destaque às pessoas que atuam nessa
área e acabei me destacando mais. O compliance, especificamente, é um
tema que veio para ficar. Aqui no Brasil, ainda parece um diferencial,
mas lá fora é uma questão que você tem que ter e muito bem feito, a
empresa tem respirar compliance. No resto do mundo é um diferenciador
até para você participar de licitações, para poder gerar negócios. A
minha indicação, claro, é um sinal forte, de mostrar que tem um
especialista da área de compliance na direção da empresa. Mas, se eu não
estivesse aqui na direção-geral, não mudaria nada. A Alstom hoje no
mundo tem esse driver.
O fato de você, com a sua expertise de compliance, olhando
agora o negócio de cima para baixo, te ajuda a identificar red flags e
gaps que podem prejudicar a empresa?
Primeiro, acho que é uma mensagem forte para qualquer stakeholder
envolvido com o negócio da Alstom. Sejam colaboradores, clientes ou
fornecedores, quando você sabe que o diretor-geral vem da área jurídica e
de compliance, o pessoal já pensa nisso automaticamente. Sem falar nada
já é uma mensagem forte. E a gente acaba enxergando, não desvios, mas
questões que podem vir a ser aprimoradas na área de compliance, a gente
incentiva – é o tone at the top. É claro que você acaba agindo, atuando
mais por ter essa capacidade de enxergar possíveis red flags ou futuros
temas que poderão se converter em red flags.
Existe uma diferença entre o Pierre, CEO, que tem que entregar resultados e o Pierre do Legal & Compliance?
Não, sou o mesmo. Não há nenhuma divisão, até porque se tivesse, eu
não estaria na posição de diretor-geral. Não aceitaria uma posição
dessas se não pudesse agir como eu sou como compliance officer, então
não muda nada. Pelo contrário, reforça que esse é um driver da direção
da empresa. Não existe conflito.
Um dos grandes desafios para o pro-fissional do compliance é conhecer o negócio. E é muito difícil conhecer o negócio se você não o faz. É nesse sentido que eu queria entender se mudou algo.
Eu digo: não há diferença nenhuma. Hoje, para fazer negócios para e
com a Alstom você tem que seguir todas as regras de compliance do nosso
programa e das regras que são nossos valores. Eu participo de
licitações, converso com empresas públicas e não existem desvios. Porque
o driver, o DNA da empresa é esse. Se não está em com- pliance não tem
negócio. É até fácil para mim, talvez porque venho com essa etiqueta do
meu passado, da minha expertise, a pessoa pensa assim: ‘não vou nem
pensar em não estar em compliance porque com certeza com essa pessoa
aqui não vai acontecer’. Não tem desvios, de verdade, estou aqui desde
2013 como Diretor Jurídico e não vi desvios. E hoje, como CEO também não
vi nenhum.
Você chegou a Alstom em 2013, no ano em que estourou a situação do cartel de trens, em São Paulo. Foi a partir dali que começaram as mudanças?
Não. A Alstom já tinha mudado, implementado um programa de compliance
mais rigoroso, moderno e mais robusto, até porque, era uma questão
global e não só do Brasil ou da América Latina. Agora, o programa vem
crescendo, se aprimorando e ganhando maturidade. A gente tem um programa
com embaixadores de compliance que começou com cinco pessoas. Hoje,
temos 90 embaixadores no Brasil e na América Latina, funcionários de
todas as áreas que também pensam compliance, conversam sobre compliance
com os colegas ao redor deles. É uma forma muito boa de disseminar na
Alstom essas questões. Todo esse programa que a gente montou já existia
antes dessas investigações.
Em relação às licitações e projetos com governo, vocês fazem uma due diligence antes de participar?
Vou falar da parte técnica. Olhamos tecnicamente para ver se as
regras da licitação fazem sentido. Estando dentro das especificações
técnicas de um projeto normal, a gente participa. Se virmos que não para
em pé – o que não costuma acontecer no setor de trens –, a gente faz
questionamentos e, caso eles não sejam respondidos da forma adequada, ou
quando enxergamos algo que não faça sentido, a gente não participa.
Os projetos técnicos são bem feitos nessa área? Ou seja, não
existe a necessidade de eles serem constantemente revisados e
redesenhados, o que acaba gerando aditivos?
Erros de modelagem na nossa área são muito poucos. Acredito que isso
aconteça mais em obras de engenharia. Nossos clientes atuam nessa área
há tantos anos que eles sabem como fazer. Se você pegar um cliente como o
Metrô de São Paulo, ele sabe comprar trens há muitos anos e vai
especificar o que ele entende ser importante dentro do produto que ele
quer. Mas você tem uma evolução técnica. Talvez você tenha uma licitação
lançada num determinado ano, e depois, você tem uma tecnologia muito
mais moderna, mais rápida e menos custosa e você pode achar interessante
trazer para dentro do projeto. Às vezes, mudanças vêm de situações como
essa.
Como é que se organiza esse mercado?
Você tem um mercado muito competitivo, muitas empresas multinacionais
e até nacionais que participam deste mercado. Não são duzentas, mas tem
umas dez companhias que com certeza tornam a concorrência bem dura.
Como é que funciona a relação com os clientes, que são
poucos? E como vocês atuam para melhorar o padrão e ajudar a subir a
régua do mercado, do ponto de vista de compliance?
Primeiro, a gente tem que pedir aos nossos clientes que exijam
certificações dessas empresas para que elas possam ter o direito de
participar dessas licitações. A gente conseguiu a certificação ISO 37001
e a Alstom, no mercado ferroviário, é a única que tem essa certificação
no mundo hoje. Você precisa que as entidades públicas, as autarquias
que contratam comecem a exigir essas coisas, aí você vai subir a régua,
porque se você quer participar a pessoa vai ter que estar dentro das
melhores normas de compliance. O cliente pedir esse tipo de coisa vai
ajudar muito para que as empresas se adequem as questões de compliance. A
segunda é que para nós é tolerância zero. Qualquer desvio, a pessoa
será afastada ou terá algum tipo de sanção e nós comunicamos a todos
sobre isso. Dessa forma, incentivamos os nossos clientes e até os nossos
competidores e a gente vai girando a chave. É um processo longo. Mas,
de novo, quem tem que exigir é o cliente.
Você vê essas mudanças acontecerem, ainda que lentamente?
Eu vejo algumas instituições começando a incentivar empresas públicas
a participarem de seminários e a conversar sobre isso. Vejo como as
reuniões estão acontecendo de forma menos informal, com ata, relação de
participantes, quem fez o quê. Vejo um cuidado nas conversas entre as
empresas e seus clientes. Tudo isso vem da questão de compliance. Ainda
há bastante coisa para fazer, do outro lado, nas empresas públicas, mas
vejo as pessoas participando de palestras, eventos, cursos, há um
interesse sim, talvez mais demorado. Nas multinacionais isso já está
mais adequado há muito tempo, porque essa é a nossa realidade lá fora.
Aqui no Brasil você tem a responsabilidade sobre todo o
negócio, já na América Latina só na área jurídica e de compliance. Muda
muito a sua atuação? Como funciona o seu papel de compliance nesses
mercados onde você não é o responsável pelo negócio?
A modelagem no departamento de compliance, na sua forma de trabalhar,
é igual aqui ou qualquer outro país da América Latina. Temos
embaixadores em todos os países também. Por exemplo, teremos agora no
mês de abril, o Ethics & Compliance Day, ao mesmo tempo, em todos os
países da América Latina, para que todos se sintam parte do mesmo
ambiente, do mesmo grupo e com as mesmas obrigações com relação à ética e
integridade.
Puxando pouco mais para a sua atuação na área, você não faz o
dia-a-dia do compliance, tem toda uma estrutura embaixo de você. Mas,
questões relacionadas a investigações internas, por exemplo, na qual
será preciso investigar um diretor comercial. Como é que funciona esse
processo no seu caso?
Como sou o CEO da empresa é mais fácil para eu investigar qualquer
um. Fico sabendo da investigação desde o começo. Claro, desde que eu não
seja o investigado. Temos um sistema de alerta mundial e eu sou avisado
junto com a Compliance Officer. A partir desse momento, em função de
qual é o tipo de alerta, a gente inicia uma investigação interna.
Esse alerta vem do canal de denúncia geralmente?
Principalmente. O sistema é muito amigável, em vários idiomas, a
denúncia pode ser feita de forma anônima por diferentes meios. Mas,
outras vezes, são as pessoas que vão relatar uma situação ao embaixador
de compliance. Quando recebemos os alertas somos avisados e a gente
inicia a investigação em função do tipo de denúncia. Nós temos um comitê
disciplinar global lá na França, no qual o CEO global senta nesse
comitê, junto com o responsável global de compliance, o diretor jurídico
mundial e, normalmente, alguém que está vinculado à pessoa que está
envolvida nesse alerta, para também avaliar a situação da perspectiva da
pessoa. A investigação é feita e depois do resultado da investigação e
da sua análise toma-se uma decisão. A gente faz a mesma coisa a nível
nacional. Eu fico sabendo o que está acontecendo e posso dizer que não
atrapalha. Como já disse, é tolerância zero. Pode ser o Papa, não vai
mudar nada, não vai mesmo. A gente realmente toma a decisão que tem de
tomar. E já tomamos decisões bastante duras inclusive aqui na minha
unidade.
…Que de alguma maneira podem impactar o negócio?
O problema de impactar o negócio vem depois. Se essa pessoa cometeu
algum erro de compliance isso vai impactar o negócio. Talvez não de
imediato, mas a médio e longo prazo. É muito pior para gente. Se o
negócio não foi dentro da regra ele impacta o negócio. Então, melhor não
fazer o negócio assim.
Profissionais de compliance, em geral, não são pessoas “queridas” dentro da
empresa. Por mais que se diga que compliance não é polícia, na prática
ela está lá cuidando do que você está fazendo, em geral as pessoas não
gostam disso. Você tem essa responsabilidade de compliance, ao mesmo tempo em que é o diretor-geral, o chefe delas. Isso influenciou a reação das pessoas?
Acho que depende das pessoas, do “approach” de cada profissional. Eu
já trabalhei em outras empresas e se o compliance officer vem como
polícia, nunca vai funcionar. Não acho que seja a forma de se trabalhar.
Mas, mesmo quem atua de forma mais próxima, para apoiar os negócios mesmo, acaba sendo encarado como o “cara chato”, no sentido de estar controlando…
Partindo do começo. Se a área de compliance está dentro do DNA da
empresa e faz parte das práticas da empresa, existe uma simbiose das
duas coisas. O “cara chato”, apesar de não concordar com a terminologia,
é a pessoa que acompanha o que está sendo feito. Ele não é chato, só
está olhando se estão respeitando o DNA da empresa, as regras da
empresa. E quem fez algo errado, sabe o que fez. Acho que o grande erro é
você criar um clima de polícia dentro da empresa. Conheço empresas que
trabalham assim e sou contra, acho que não funciona. Você afasta as
equipes da área de compliance e incentiva, talvez, que as pessoas tentem
esconder as coisas que talvez não estejam fora das regras. A
transparência é o mais importante de tudo, para que as pessoas se sintam
num ambiente onde eles pos-sam ir e falar: ‘olha, vi uma coisa errada’ e
se sentirem confortáveis de falar com o compliance officer.
Como é que vocês trabalham a comunicação desta cultura?
Disseminamos esse DNA de compliance muito graças ao trabalho desses
embaixadores, isso ajudou muito. Porque eles não são da área (de
compliance), conhecem seus pares, suas equipes, eles conversam com os
colegas, que vão entendendo a importância do assunto, vendo que não é um
bicho de sete cabeças, que não é polícia e que dá para trabalhar dentro
do compliance para fazer negócio. Além disso, para fazer negocio você
tem que estar na regra do compliance. Também é importante a escolha do
perfil desses embaixadores. Você tem que ter pessoas que queiram saber o
que os outros fazem, que possam ter tempo de explicar e não chegar,
aplicar a regra e ponto. Ao explicar você cria um ambiente de confiança e
é assim que o sistema funciona. Hoje, quando realizamos o Ethics &
Compliance Day, é uma verdadeira festa. E todos querem participar.
Quais os principais riscos de compliance da Alstom que vocês tomam mais atenção hoje?
Você tem que tomar muito cuidado com fornecedores. Você não está
dentro da casa do fornecedor, tem uma atuação limitada para saber o que
está sendo feito pelo fornecedor, a gente faz uma avaliação do
fornecedor, você exige que ele conheça as nossas regras de compliance, a
gente faz muitas palestras para o fornecedor, faz treinamento, em
função do tamanho do fornecedor, a gente faz uma investigação para saber
se os fornecedores estão trabalhando de forma correta, dentro dos
valores e dentro do compliance que a Alstom exige. E tem, no caso dos
parceiros, as empresas com as quais a gente faz consórcio. Nesse caso,
fazemos uma diligência ainda maior.
Vocês já deixaram de participar de consórcio por causa de um parceiro?
Sim.
A Alstom eliminou os agentes de vendas globalmente. Como vocês têm trabalhado?
Exatamente. Existem vários tipos de consultoria que você pode
contratar e até nisso a gente presta atenção. A gente trabalha com
honorários por hora, como para um advogado, e não por resultados. Não
corremos mais riscos que foram corridos no passado. Na questão
comercial, a única forma de termos um representante comercial é em
mercados onde não atuamos diretamente. Num país onde não temos ninguém, a
gente poderia pensar em fazer isso, e passa por todo um processo lá
fora, com uma investigação muito detalhada. E, mesmo nesse caso, a
remuneração deste consultor é por horas trabalhadas.
Na América Latina, você tem algum caso assim?
Sim. Temos em um país.
É um vendedor a preço fixo?
Na verdade, é um consultor à horas trabalhadas. Ele apresenta o
relatório de horas trabalhadas, como um escritório de advocacia, e a
hora dele custa tanto.
Situações de assédio e de diversidade, que passam muito pelo canal de denúncias, são tratadas pelo compliance?
Acabam sendo tratados também na área de compliance, em parceria com a
área de recursos humanos. Mas, as consequências serão tratadas da mesma
forma, no comitê de ética, que tomará a decisão e que conta com
participação da área de compliance. Diversidade é a mesma questão. Se
for gerada uma inconformidade em decorrência da diversidade, vamos atuar
da mesma forma, quer seja assédio ou uma situação de não respeitar ao
outro. São os nossos valores.
Vocês têm alguma política formal de diversidade?
A gente tem metas pra seguir, principalmente em relação a gêneros.
Estamos incentivando a diversidade globalmente. Na diversidade, a gente
fala até de nacionalidade, queremos que todas as nacionalidades estejam
representadas nos mais altos escalões no mundo. A gente tem um indicador
que olha quantos não europeus trabalham na Europa, quantos não latinos
trabalham na América Latina, a gente quer que essa diversidade de
nacionalidades seja apresentada para gente. E claro que temos que
melhorar e aprimorar. A gente ainda não atingiu a paridade entre homens e
mulheres.
Como é o seu relacionamento como diretor-geral e como VP de Legal & Compliance com a sua Compliance Officer?
Temos reuniões semanais, independentemente de onde eu esteja, ou onde
ela esteja, sentamos e ela me traz as questões. Existe uma cultura
muito legal na Alstom que é a de que as portas estão sempre todas
abertas. Você tem acesso a qualquer um dentro da empresa, a qualquer
momento. Já trabalhei em outras empresas e tem uma hierarquia, você tem
que falar com a secretária para acessar o diretor, aqui não tem nada
disso. Mantemos a agenda semanal porque é bom ter essa janela já
pré-fixada, mas em termos de acesso é 100%. E facilita muito o fato de
eu já ter expertise na área e de ser um tema que eu gosto e pelo qual me
interesso e acabo incentivando muito.
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Imagem: Revista LEC
http://www.lecnews.com.br/blog/quando-o-compliance-e-o-chefe/
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