quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Quando o compliance é o chefe


O diretor-geral da companhia francesa Alstom é o maior fiador da área de compliance no Brasil. Literalmente

Francês de nascimento, Pierre Emmanuel Bercaire (foto) construiu sua car- reira profissional no Brasil e na América Latina, onde vive há décadas. Advogado de formação, ele atuou em empre- sas de diferentes setores e escritórios de advocacia. Em 2013, assumiu a vice-presidência jurídica e de Compliance da Alstom, companhia francesa líder na área de mobilidade urbana e, naquele momento inserida num contexto de denúncias sobre o cartel de trens do Metrô de São Paulo. Quatro anos depois, ele continua com a responsabilidade regional pelas áreas Jurídica e de Compliance, mas ganhou mais uma função. E não qualquer uma. Desde janeiro de 2018, Pierre é também o diretor-geral da Alstom Brasil, responsável pelos resultados do negócio na operação local. O executivo recebeu a reportagem de LEC na sede da companhia. Confira abaixo, os principais trechos da conversa.]

A Alstom tem um contexto de negócios que envolve, principalmente, vendas públicas e existe um histórico passado de problemas com enforcements. Esse contexto tem a ver com a sua indicação para a direção-geral, alguém que venha com esse background de compliance?
Acho que tem a ver com habilidades e características pessoais que acabam te levando a um cargo mais gerencial, como o de direção-geral. Mas, acredito que hoje, no momento no qual o Brasil encontra-se, a importância do compliance, dos temas jurídicos que são tratados todos os dias nos jornais, acabam dando mais destaque às pessoas que atuam nessa área e acabei me destacando mais. O compliance, especificamente, é um tema que veio para ficar. Aqui no Brasil, ainda parece um diferencial, mas lá fora é uma questão que você tem que ter e muito bem feito, a empresa tem respirar compliance. No resto do mundo é um diferenciador até para você participar de licitações, para poder gerar negócios. A minha indicação, claro, é um sinal forte, de mostrar que tem um especialista da área de compliance na direção da empresa. Mas, se eu não estivesse aqui na direção-geral, não mudaria nada. A Alstom hoje no mundo tem esse driver.

O fato de você, com a sua expertise de compliance, olhando agora o negócio de cima para baixo, te ajuda a identificar red flags e gaps que podem prejudicar a empresa?
Primeiro, acho que é uma mensagem forte para qualquer stakeholder envolvido com o negócio da Alstom. Sejam colaboradores, clientes ou fornecedores, quando você sabe que o diretor-geral vem da área jurídica e de compliance, o pessoal já pensa nisso automaticamente. Sem falar nada já é uma mensagem forte. E a gente acaba enxergando, não desvios, mas questões que podem vir a ser aprimoradas na área de compliance, a gente incentiva – é o tone at the top. É claro que você acaba agindo, atuando mais por ter essa capacidade de enxergar possíveis red flags ou futuros temas que poderão se converter em red flags.

Existe uma diferença entre o Pierre, CEO, que tem que entregar resultados e o Pierre do Legal & Compliance?
Não, sou o mesmo. Não há nenhuma divisão, até porque se tivesse, eu não estaria na posição de diretor-geral. Não aceitaria uma posição dessas se não pudesse agir como eu sou como compliance officer, então não muda nada. Pelo contrário, reforça que esse é um driver da direção da empresa. Não existe conflito.

Um dos grandes desafios para o pro-fissional do compliance é conhecer o negócio. E é muito difícil conhecer o negócio se você não o faz. É nesse sentido que eu queria entender se mudou algo.
Eu digo: não há diferença nenhuma. Hoje, para fazer negócios para e com a Alstom você tem que seguir todas as regras de compliance do nosso programa e das regras que são nossos valores. Eu participo de licitações, converso com empresas públicas e não existem desvios. Porque o driver, o DNA da empresa é esse. Se não está em com- pliance não tem negócio. É até fácil para mim, talvez porque venho com essa etiqueta do meu passado, da minha expertise, a pessoa pensa assim: ‘não vou nem pensar em não estar em compliance porque com certeza com essa pessoa aqui não vai acontecer’. Não tem desvios, de verdade, estou aqui desde 2013 como Diretor Jurídico e não vi desvios. E hoje, como CEO também não vi nenhum.

Você chegou a Alstom em 2013, no ano em que estourou a situação do cartel de trens, em São Paulo. Foi a partir dali que começaram as mudanças?
Não. A Alstom já tinha mudado, implementado um programa de compliance mais rigoroso, moderno e mais robusto, até porque, era uma questão global e não só do Brasil ou da América Latina. Agora, o programa vem crescendo, se aprimorando e ganhando maturidade. A gente tem um programa com embaixadores de compliance que começou com cinco pessoas. Hoje, temos 90 embaixadores no Brasil e na América Latina, funcionários de todas as áreas que também pensam compliance, conversam sobre compliance com os colegas ao redor deles. É uma forma muito boa de disseminar na Alstom essas questões. Todo esse programa que a gente montou já existia antes dessas investigações.

Em relação às licitações e projetos com governo, vocês fazem uma due diligence antes de participar?
Vou falar da parte técnica. Olhamos tecnicamente para ver se as regras da licitação fazem sentido. Estando dentro das especificações técnicas de um projeto normal, a gente participa. Se virmos que não para em pé – o que não costuma acontecer no setor de trens –, a gente faz questionamentos e, caso eles não sejam respondidos da forma adequada, ou quando enxergamos algo que não faça sentido, a gente não participa.

Os projetos técnicos são bem feitos nessa área? Ou seja, não existe a necessidade de eles serem constantemente revisados e redesenhados, o que acaba gerando aditivos?
Erros de modelagem na nossa área são muito poucos. Acredito que isso aconteça mais em obras de engenharia. Nossos clientes atuam nessa área há tantos anos que eles sabem como fazer. Se você pegar um cliente como o Metrô de São Paulo, ele sabe comprar trens há muitos anos e vai especificar o que ele entende ser importante dentro do produto que ele quer. Mas você tem uma evolução técnica. Talvez você tenha uma licitação lançada num determinado ano, e depois, você tem uma tecnologia muito mais moderna, mais rápida e menos custosa e você pode achar interessante trazer para dentro do projeto. Às vezes, mudanças vêm de situações como essa.

Como é que se organiza esse mercado?
Você tem um mercado muito competitivo, muitas empresas multinacionais e até nacionais que participam deste mercado. Não são duzentas, mas tem umas dez companhias que com certeza tornam a concorrência bem dura.

Como é que funciona a relação com os clientes, que são poucos? E como vocês atuam para melhorar o padrão e ajudar a subir a régua do mercado, do ponto de vista de compliance?
Primeiro, a gente tem que pedir aos nossos clientes que exijam certificações dessas empresas para que elas possam ter o direito de participar dessas licitações. A gente conseguiu a certificação ISO 37001 e a Alstom, no mercado ferroviário, é a única que tem essa certificação no mundo hoje. Você precisa que as entidades públicas, as autarquias que contratam comecem a exigir essas coisas, aí você vai subir a régua, porque se você quer participar a pessoa vai ter que estar dentro das melhores normas de compliance. O cliente pedir esse tipo de coisa vai ajudar muito para que as empresas se adequem as questões de compliance. A segunda é que para nós é tolerância zero. Qualquer desvio, a pessoa será afastada ou terá algum tipo de sanção e nós comunicamos a todos sobre isso. Dessa forma, incentivamos os nossos clientes e até os nossos competidores e a gente vai girando a chave. É um processo longo. Mas, de novo, quem tem que exigir é o cliente.

Você vê essas mudanças acontecerem, ainda que lentamente?
Eu vejo algumas instituições começando a incentivar empresas públicas a participarem de seminários e a conversar sobre isso. Vejo como as reuniões estão acontecendo de forma menos informal, com ata, relação de participantes, quem fez o quê. Vejo um cuidado nas conversas entre as empresas e seus clientes. Tudo isso vem da questão de compliance. Ainda há bastante coisa para fazer, do outro lado, nas empresas públicas, mas vejo as pessoas participando de palestras, eventos, cursos, há um interesse sim, talvez mais demorado. Nas multinacionais isso já está mais adequado há muito tempo, porque essa é a nossa realidade lá fora.

Aqui no Brasil você tem a responsabilidade sobre todo o negócio, já na América Latina só na área jurídica e de compliance. Muda muito a sua atuação? Como funciona o seu papel de compliance nesses mercados onde você não é o responsável pelo negócio?
A modelagem no departamento de compliance, na sua forma de trabalhar, é igual aqui ou qualquer outro país da América Latina. Temos embaixadores em todos os países também. Por exemplo, teremos agora no mês de abril, o Ethics & Compliance Day, ao mesmo tempo, em todos os países da América Latina, para que todos se sintam parte do mesmo ambiente, do mesmo grupo e com as mesmas obrigações com relação à ética e integridade.

Puxando pouco mais para a sua atuação na área, você não faz o dia-a-dia do compliance, tem toda uma estrutura embaixo de você. Mas, questões relacionadas a investigações internas, por exemplo, na qual será preciso investigar um diretor comercial. Como é que funciona esse processo no seu caso?
Como sou o CEO da empresa é mais fácil para eu investigar qualquer um. Fico sabendo da investigação desde o começo. Claro, desde que eu não seja o investigado. Temos um sistema de alerta mundial e eu sou avisado junto com a Compliance Officer. A partir desse momento, em função de qual é o tipo de alerta, a gente inicia uma investigação interna.

Esse alerta vem do canal de denúncia geralmente?
Principalmente. O sistema é muito amigável, em vários idiomas, a denúncia pode ser feita de forma anônima por diferentes meios. Mas, outras vezes, são as pessoas que vão relatar uma situação ao embaixador de compliance. Quando recebemos os alertas somos avisados e a gente inicia a investigação em função do tipo de denúncia. Nós temos um comitê disciplinar global lá na França, no qual o CEO global senta nesse comitê, junto com o responsável global de compliance, o diretor jurídico mundial e, normalmente, alguém que está vinculado à pessoa que está envolvida nesse alerta, para também avaliar a situação da perspectiva da pessoa. A investigação é feita e depois do resultado da investigação e da sua análise toma-se uma decisão. A gente faz a mesma coisa a nível nacional. Eu fico sabendo o que está acontecendo e posso dizer que não atrapalha. Como já disse, é tolerância zero. Pode ser o Papa, não vai mudar nada, não vai mesmo. A gente realmente toma a decisão que tem de tomar. E já tomamos decisões bastante duras inclusive aqui na minha unidade.

…Que de alguma maneira podem impactar o negócio?
O problema de impactar o negócio vem depois. Se essa pessoa cometeu algum erro de compliance isso vai impactar o negócio. Talvez não de imediato, mas a médio e longo prazo. É muito pior para gente. Se o negócio não foi dentro da regra ele impacta o negócio. Então, melhor não fazer o negócio assim.

Profissionais de compliance, em geral, não são pessoas “queridas” dentro da empresa. Por mais que se diga que compliance não é polícia, na prática ela está lá cuidando do que você está fazendo, em geral as pessoas não gostam disso. Você tem essa responsabilidade de compliance, ao mesmo tempo em que é o diretor-geral, o chefe delas. Isso influenciou a reação das pessoas?
Acho que depende das pessoas, do “approach” de cada profissional. Eu já trabalhei em outras empresas e se o compliance officer vem como polícia, nunca vai funcionar. Não acho que seja a forma de se trabalhar.

Mas, mesmo quem atua de forma mais próxima, para apoiar os negócios mesmo, acaba sendo encarado como o “cara chato”, no sentido de estar controlando…
Partindo do começo. Se a área de compliance está dentro do DNA da empresa e faz parte das práticas da empresa, existe uma simbiose das duas coisas. O “cara chato”, apesar de não concordar com a terminologia, é a pessoa que acompanha o que está sendo feito. Ele não é chato, só está olhando se estão respeitando o DNA da empresa, as regras da empresa. E quem fez algo errado, sabe o que fez. Acho que o grande erro é você criar um clima de polícia dentro da empresa. Conheço empresas que trabalham assim e sou contra, acho que não funciona. Você afasta as equipes da área de compliance e incentiva, talvez, que as pessoas tentem esconder as coisas que talvez não estejam fora das regras. A transparência é o mais importante de tudo, para que as pessoas se sintam num ambiente onde eles pos-sam ir e falar: ‘olha, vi uma coisa errada’ e se sentirem confortáveis de falar com o compliance officer.

Como é que vocês trabalham a comunicação desta cultura?
Disseminamos esse DNA de compliance muito graças ao trabalho desses embaixadores, isso ajudou muito. Porque eles não são da área (de compliance), conhecem seus pares, suas equipes, eles conversam com os colegas, que vão entendendo a importância do assunto, vendo que não é um bicho de sete cabeças, que não é polícia e que dá para trabalhar dentro do compliance para fazer negócio. Além disso, para fazer negocio você tem que estar na regra do compliance. Também é importante a escolha do perfil desses embaixadores. Você tem que ter pessoas que queiram saber o que os outros fazem, que possam ter tempo de explicar e não chegar, aplicar a regra e ponto. Ao explicar você cria um ambiente de confiança e é assim que o sistema funciona. Hoje, quando realizamos o Ethics & Compliance Day, é uma verdadeira festa. E todos querem participar.

Quais os principais riscos de compliance da Alstom que vocês tomam mais atenção hoje?
Você tem que tomar muito cuidado com fornecedores. Você não está dentro da casa do fornecedor, tem uma atuação limitada para saber o que está sendo feito pelo fornecedor, a gente faz uma avaliação do fornecedor, você exige que ele conheça as nossas regras de compliance, a gente faz muitas palestras para o fornecedor, faz treinamento, em função do tamanho do fornecedor, a gente faz uma investigação para saber se os fornecedores estão trabalhando de forma correta, dentro dos valores e dentro do compliance que a Alstom exige. E tem, no caso dos parceiros, as empresas com as quais a gente faz consórcio. Nesse caso, fazemos uma diligência ainda maior.

Vocês já deixaram de participar de consórcio por causa de um parceiro?
Sim.

A Alstom eliminou os agentes de vendas globalmente. Como vocês têm trabalhado?
Exatamente. Existem vários tipos de consultoria que você pode contratar e até nisso a gente presta atenção. A gente trabalha com honorários por hora, como para um advogado, e não por resultados. Não corremos mais riscos que foram corridos no passado. Na questão comercial, a única forma de termos um representante comercial é em mercados onde não atuamos diretamente. Num país onde não temos ninguém, a gente poderia pensar em fazer isso, e passa por todo um processo lá fora, com uma investigação muito detalhada. E, mesmo nesse caso, a remuneração deste consultor é por horas trabalhadas.

Na América Latina, você tem algum caso assim?
Sim. Temos em um país.

É um vendedor a preço fixo?
Na verdade, é um consultor à horas trabalhadas. Ele apresenta o relatório de horas trabalhadas, como um escritório de advocacia, e a hora dele custa tanto.

Situações de assédio e de diversidade, que passam muito pelo canal de denúncias, são tratadas pelo compliance?
Acabam sendo tratados também na área de compliance, em parceria com a área de recursos humanos. Mas, as consequências serão tratadas da mesma forma, no comitê de ética, que tomará a decisão e que conta com participação da área de compliance. Diversidade é a mesma questão. Se for gerada uma inconformidade em decorrência da diversidade, vamos atuar da mesma forma, quer seja assédio ou uma situação de não respeitar ao outro. São os nossos valores.

Vocês têm alguma política formal de diversidade?
A gente tem metas pra seguir, principalmente em relação a gêneros. Estamos incentivando a diversidade globalmente. Na diversidade, a gente fala até de nacionalidade, queremos que todas as nacionalidades estejam representadas nos mais altos escalões no mundo. A gente tem um indicador que olha quantos não europeus trabalham na Europa, quantos não latinos trabalham na América Latina, a gente quer que essa diversidade de nacionalidades seja apresentada para gente. E claro que temos que melhorar e aprimorar. A gente ainda não atingiu a paridade entre homens e mulheres.

Como é o seu relacionamento como diretor-geral e como VP de Legal & Compliance com a sua Compliance Officer?
Temos reuniões semanais, independentemente de onde eu esteja, ou onde ela esteja, sentamos e ela me traz as questões. Existe uma cultura muito legal na Alstom que é a de que as portas estão sempre todas abertas. Você tem acesso a qualquer um dentro da empresa, a qualquer momento. Já trabalhei em outras empresas e tem uma hierarquia, você tem que falar com a secretária para acessar o diretor, aqui não tem nada disso. Mantemos a agenda semanal porque é bom ter essa janela já pré-fixada, mas em termos de acesso é 100%. E facilita muito o fato de eu já ter expertise na área e de ser um tema que eu gosto e pelo qual me interesso e acabo incentivando muito.


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Imagem: Revista LEC


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