Leio bela matéria de Gabriela Coelho na ConJur: “Ministério da Justiça emite parecer contrário ao projeto de Lei de Abuso”.
Sobre o PL, falei
na semana passada. Sobre a justificativa do ministro da Justiça para os
vetos, não preciso falar de todos. Basta um deles em especial.
Simboliza a “sofisticação” destes tempos difíceis. Falo dos motivos que
justifica(ria)m o veto ao artigo 9º da Lei.
Antes do pedido de veto, vejamos o que diz o próprio artigo. Trata-se do dispositivo que prevê a vedação à decretação de “medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Simples assim: diz que é proibido descumprir a lei sobre decretação de prisão. E veja-se: Manifesta desconformidade! Manifesta des-com-for-mi-da-de!
Não tem nada de crime de interpretação ou “crime de hermenêutica”. Isso
sem considerar que quem denuncia uma violação desse artigo é o
Ministério Público. E quem julgará será o Poder Judiciário. Repito o
que falei sobre isso. Élio Gaspari e eu.
Bom,
antes mesmo do motivo, já salta aos olhos a estranheza de alguém pedir
que se faça veto a um artigo de lei que, em uma democracia séria, seria
(na melhor das hipóteses) desnecessário. Porque é tautológico. É um
dispositivo legal que repete o que há de mais elementar no princípio
constitucional da legalidade. Basicamente, está dizendo que não se pode
prender ninguém ilegalmente. Não simples ilegalidade. Manifesta
ilegalidade. E mesmo assim, Moro quer vetar.
E o pedido de veto parte de um ministro que, enquanto juiz, seria o primeiro a desrespeitar a lei que sugere vetar.
Se
já não fosse assustador por si só, vejamos a justificativa de que falei
ao início desta coluna. Fosse uma prova de teoria do direito, Moro
chumbaria. Vejamos:
O ministro quer o veto, porque o dispositivo (art. 9º.) eliminaria "a discricionariedade do magistrado na exegese normativa", ou seja, “a margem de decisão do juiz na interpretação da norma".
O parecer segue dizendo que “a
evolução do direito, dos costumes e, portanto, a mudança do chamado
standard jurídico cria, ainda, uma zona cinzenta pela qual o magistrado
deve caminhar para viabilizar a compatibilidade entre a norma e a
sociedade. Em última instância, o dispositivo depõe contra a própria
dinâmica e evolução do direito pela via jurisprudencial".
Isso
dá tese doutoral, com o título “Algaravias teóricas sobre interpretação
da lei”. Sub- temas: Pam-discricionariedade do magistrado. Margem na
interpretação da norma. Zona cinzenta pela qual caminha o magistrado.
Compatibilidade entre a norma e a sociedade. Evolução do direito pela
via jurisprudencial. O texto do ministério é bem curtinho. Mas o
suficiente para aquilatarmos a “sofisticação” da fundamentação. Seria
por isso que o Presidente da República deveria vetar a lei? Com esses
argumentos? Mas, se a lei veio exatamente para proibir esse tipo de
coisa, por qual razão os motivos da proibição poderiam servir para
chumbar a própria lei?
Se o
artigo 9º. é uma tautologia, uma obviedade – e já falei e repeti que
estamos em tempos de reafirmação de obviedades –, a sugestão de veto do
Ministro da Justiça é uma ode ao que há de pior e de mais
filosoficamente ultrapassado nas mais ingênuas vertentes de positivismo
jurídico. Na verdade, da vulgata do conceito de positivismo.
Que
não se perca de vista o que diz o artigo de lei. Trocando em miúdos,
diz que não se pode prender ninguém ilegalmente. Repito: para infringir a
lei, o juiz deve decretar a prisão sob manifesta ilegalidade. Ora, uma
prisão ilegal já é um problema. O que dizer se a prisão é MANIFESTAMENTE
ILEGAL, isto é PRISÃO DECRETADA EM MANIFESTA DESCONFORMIDADE com a lei?
É isso que o ministro pede que Bolsonaro vete? (“A pergunta é
retórica”, diz a plaquinha levantada pelo estagiário.)
Mais
do que isso, o veto é solicitado com tudo que há de mais
antidemocrático – anti-hermenêutico – no Direito. Uma concepção baseada
em um modelo de regras, em um sistema hermético, formalista, que exige a
discricionariedade do intérprete quando for incompleto.
Se
isso por si só já não fosse problemático, é ainda pior: na medida em
que o artigo questionado diz tão somente que não se pode prender sem que
configurada hipótese legal para tal (lembremos: manifesta ilegalidade),
sequer haveria que se falar em discricionariedade. Ou seja, nem para o positivismo mais radical seria um caso de poder discricionário: Moro quer trazer a discricionariedade positivista para um easy case, um caso em que a hipótese legal é clara e evidente. Pobre conceito de discricionariedade; pobre conceito de easy case.
Para
além disso tudo, já é de há muito que se sabe – desde Dworkin, lá na
década de 1960 – que, em uma democracia, o Direito tem princípios de
moralidade política institucionalizada que conduzem o raciocínio
judicial. Norma e sociedade já estão “compatibilizadas” por aquilo que é ajustado institucionalmente pelo Direito. É o fit de que fala Dworkin.
A “evolução do direito via jurisprudencial”
(sic), em uma democracia, é a interpretação autêntica do Direito à luz
da própria tradição, em respeito ao elevado grau de autonomia que o
fenômeno exige. Moralizá-lo e corrigi-lo em nome de supostas maiorias
eventuais é ser contrário ao próprio Direito.
Mas, pior: no caso, aqui,
foram as maiorias que falaram...e aprovaram a lei.
Respeitar a sociedade é respeitar o Direito,
não dizer ouvir uma suposta voz das ruas que não se sabe bem o que é.
Em uma democracia, não há espaço para “margem cinzenta” (sic) sobre a
qual se movimenta o magistrado para escolher uma resposta
possível. Prisão preventiva não depende de escolhas, Ministro. Prisão
depende de previsão legal e de prova. Decidir não é escolher na “zona
cinzenta”.
Bastava Moro ter lido Dworkin. Tudo isso está n’O Império do Direito. Um livro considerado fundamental por... Sérgio Moro. Está aqui.
Pois
é. Moro contra Moro. Tivesse o Ministro Moro lido o livro recomendado
pelo Professor Moro, não defenderia esse tipo de tese
(discricionariedade, zona cinzenta, evolução, etc). Pior, não defenderia
uma discricionariedade ainda mais discricionária. Tivesse lido Law's Empire que recomendou, não cometeria esse erro. Tivesse o Ministro Moro seguido o conselho do Professor Moro.
Basicamente,
Moro recorre a uma espécie de “pam-discricionariedade cinzenta” para
pedir que se vete uma lei que diz que só se pode prender de acordo
com...o que diz a lei. É isso. Na justificativa, Moro quer tanta
discricionariedade que até mesmo a manifesta ilegalidade se subsume
na...discricionariedade! Fantástico, não?
É porque chegamos a esse ponto que precisamos de leis tautológicas. Esse é o busílis.
Paradoxalmente, penso que Moro pode ficar tranquilo. Bolsonaro nem precisa vetar nada. Se não se cumpre a lei que diz x, por que seria seguida a lei que diz “é preciso seguir o que diz a lei que diz x”? Melhor deixar assim, pois não? Afinal, o que a dogmática jurídica vem fazendo é, mesmo, próteses para fantasmas.
A
“discricionariedade do magistrado”, a “margem na interpretação da
norma”, a “zona cinzenta pela qual caminha o magistrado”, a
“compatibilidade entre a norma e a sociedade” (isso é bem “novo” –
remonta ao dualismo metodológico de Jelineck e quejandos), a “evolução
do direito pela via jurisprudencial” – ou seja, a vulgata que Moro faz
da obra de Hart; tudo isso já basta para que, quando a lei diga x, e quando a nova lei diz que deve ser obedecida a lei que diz x, o intérprete-juiz diga... y.
Tristes tempos. Tempos em que o Ministério da Justiça pede o veto a uma placa que diz “obedeçam às placas”.
Não, não, esqueçam o que eu disse. Com o que já tem sido feito no trânsito, melhor não dar ideia.
https://www.conjur.com.br/2019-ago-20/lenio-streck-moro-indica-livro-nao-leu-chumbar-lei
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