O executivo que comanda o maior investimento privado no extremo Sul
do brasil cobra uma nova postura do setor privado no debate sobre as
ineficiências do país, com menos formalismos e mais mobilização
Por Eugênio Esber
Há quase 40 anos no setor de papel e celulose, o
engenheiro mecânico Walter Lídio Nunes se notabilizou por liderar a
construção de fábricas exercitando duas habilidades.
Uma delas é a de planejador,
requisito natural para a missão. A outra, nem tão usual no meio executivo e
particularmente incomum entre engenheiros, é a de articulador.
Apreciador de uma boa conversa,
com interesse em literatura e sobretudo na composição psicológica dos
personagens de Machado de Assis, Walter Lídio passa boa parte do seu tempo
fora de Guaíba, cidade próxima a Porto Alegre onde comanda um investimento de
quase R$ 5 bilhões do grupo chileno CMPC na expansão da Celulose
Riograndense.
E é como um embaixador de
indústria que Lídio costura entendimentos com gente de governo, órgãos
reguladores, parlamentares – e também com outras empresas que fazem parte da
cadeia do setor. Aos 64 anos, Walter Lídio demonstra na entrevista a seguir alguma impaciência com a falta do que chama de
“visão sistêmica de competitividade”, e distribui críticas contundentes
não apenas a políticas públicas mas também ao próprio empresariado brasileiro
e sua propensão a produzir meras pautas de reivindicações.
O que trava, no Brasil, a agenda de
reformas?
O Brasil não enfrenta o desafio da competitividade de uma forma estruturada.
E precisaria, porque este é um tema fragmentado, multifacetado, que exige uma
sinergia muito forte de ações e uma liderança forte, uma governança pública
muito efetiva, somada a uma participação também muito firme do setor privado.
Não temos nada disso, infelizmente. E então o país acaba fazendo opções
equivocadas.
Por exemplo?
Há várias. Uma delas é nossa política de relações exteriores, contaminada por
ideologia. Veja, o Paraguai derrubou um presidente dentro da lei e da constituição.
O que faz o Brasil?
Apoia a manobra para excluir o
Paraguai do Mercosul. Quando, no entanto, Chávez rasgou a constituição do seu
país, porque lá diz claramente que ele não poderia assumir, o Brasil o
apoiou.
É a ideologia comandando nossas
relações exteriores. Não praticamos uma diplomacia comercial, apenas uma
diplomacia política. Então eu pergunto: sob o ponto de vista de uma
competitividade sistêmica, em quem o Brasil deve ter interesse: na Venezuela
ou nos Estados Unidos? A sociedade brasileira não discute isso. Deixa isso lá
com os homens do Itamaraty.
O que deveria estar no topo da agenda do
país?
Há muitas questões que são urgentes. A começar pela carga tributária, que
além de imensa é injusta em vários aspectos. No Brasil se paga imposto até
para abrir uma empresa. E não é pouco: 10% ou mais, se não houver
planejamento tributário. Aqui perto, no Uruguai, é 1%. Quer dizer, o
governo é sócio de qualquer coisa que eu faça, e um sócio ingrato, porque
quer tomar a parte dele no empreendimento antes que eu ponha o negócio para
rodar. Tudo isso para custear uma máquina pública que sustenta coisas como a
previdência privada de servidores públicos, mas não devolve o que o país mais
precisa, infraestrutura para crescer. Os investimentos em infraestrutura no
Brasil são ridículos.
O governo, em seu esforço para destravar a
economia, substituiu a fórmula de estimular o consumo pelo incentivo a
investimentos em infraestrutura. É um bom começo?
Não vejo as coisas acontecendo, nesta área, em sintonia com uma visão de
competitividade sistêmica. A corrupção e a ineficiência levam os governos a
fazer obras fora de prazo e fora de custo, em relação ao que a iniciativa
privada consegue fazer. O setor público é incompetente para gastar.
Mas no Brasil temos tanta
carência em infraestrutura que qualquer coisa que se fizer é bem-vinda. Houve
algumas medidas mexendo em portos, desoneração de folha de pagamento...
O governo está colocando dinheiro em alguma coisa, mas são medidas do tipo
“Melhoral”, que ajudam, mas não são suficientes. Para resolver, o país
precisa de reformas, e a primeira delas é a tributária.
Qualquer reforma terá de passar pelo
Congresso Nacional. Conhecendo a composição das duas casas, há alguma
esperança de mudanças mais profundas em temas como a ordem tributária?
Aí entramos em uma questão básica. Jabuti, se aparece em árvore, não é porque
ele tem essa capacidade, é porque alguém pôs ele lá. Então, vamos discutir
por que os jabutis estão lá.
A questão da composição do Congresso?
É. Como é que esse pessoal chegou lá? São vários fatores que levam a isso aí.
Primeiro, um povo despreparado para a cidadania moderna, e com uma facilidade
de vender seu voto. Mas quando nós mesmos, da elite, fazemos coisas que
beneficiam os maus políticos, estamos descaracterizando a função política.
Nós deveríamos estar contribuindo para pensar e discutir este país.
Deveríamos nos articular, e
botar no jogo as melhores inteligências, aquelas que possam contribuir
para o debate. Mas ficamos distantes do jogo político, porque não queremos
“nos misturar” com uma atividade que tem um conceito muito ruim. Essa atitude
é nefasta para o país. Essa é a grande armadilha que favorece a ineficiência
no Brasil: a atividade política se desenvolvendo sem controle social.
Mas há segmentos que atuam junto ao
Congresso, pressionam. Quem está ausente especificamente?
O omisso nesse jogo é o empresário, porque ele tem uma visão de mundo, uma
capacidade de transformação, de formular propostas, de levar conhecimento.
Não falo isso no sentido de que o setor empresarial deveria impor a sua
verdade. Não acredito nisso, em imposição. Eu acredito que o mundo moderno
tem de ser construído pela convergência. E o segmento empreendedor não pode
estar ausente.
Na minha opinião, nós,
empresários, entregamos muito pouco em relação à responsabilidade
sociopolítica de que nós temos de assumir dentro da sociedade. Se formos
olhar o jogo político, quem mais reclama somos nós. Agora, quem mais tem se
omitido somos nós.
Entidades empresariais costumam levar
propostas ao Congresso. O que está faltando para que essa participação dê
resultado?
Não basta levar um documento, um estudo. É preciso interagir com a governança
pública, é preciso se mobilizar e se articular para exercer um controle
social efetivo da atividade política.
Nós apenas chegamos lá e
entregamos uma pauta de reivindicações. E as ONGS vão lá e atingem o
Congresso inteiro, algumas vezes com discussões desqualificadas. A relação
dos parlamentares é com as bases clientelistas que eles têm. E nós não temos
articulação. E se não tivermos, não vamos obter resultado político melhor.
A dificuldade para negociar reformas no
âmbito do Congresso valida a ideia de uma assembleia constituinte com fins
exclusivos?
Constituinte é outro problema, como se viu. É um grupo de pessoas que se
isola. A grande discussão social não é feita. Em 1988, pequenas organizações
foram lá e incluíram na constituinte coisas de tudo quanto foi jeito. Quando
eu cito para alguém do exterior que turno de 36 horas semanais está na
constituição nacional do Brasil, os caras riem de nós.
Como é que algo como o turno de
36 horas, que é matéria típica para uma lei ordinária, foi parar na
constituição do país? Isso aconteceu porque tinha um grupinho lá dentro. E o
setor empresarial estava onde? Dormindo em casa. Olha, antes de uma
constituinte precisamos de uma mobilização social. Precisamos ter movimentos
sociais qualificados para uma discussão sobre o que temos de mudar no país.
Esse artificialismo de fazer
uma constituinte não muda o país. Nós já temos o exemplo da última
constituição. Sem mobilização social, sem essa articulação, sem construir
essa nova representatividade para discutir os temas de interesse nacional, a
gente não faz mudanças.
A Celulose Riograndense está realizando no
sul um investimento de cerca de R$ 5 bilhões e, entre os desafios do
empreendimento, está a oferta de mão de obra capacitada. Que dimensão tem
este problema no Brasil, atualmente?
O Brasil tem bons profissionais, gente com ótima formação. Mas não temos uma
oferta massificada de mão de obra especializada. E isso é preocupante.
Acho necessário, em primeiro lugar, uma adequação dos currículos. A
atualização dos cursos no Brasil é muito lenta, e precisa ser muito mais
ágil, tanto no âmbito do ensino técnico como do ensino superior – inclusive
na formação de engenheiros, mas não somente neste curso.
Falando especificamente sobre
curso universitário, o que me preocupa é que, além de haver falta de
qualidade, estamos introduzindo no Brasil um sistema de cotas que cria
fatores de redução de competitividade. A preparação dada aos universitários
já é ruim, como sabemos. E nós ainda facilitamos a entrada de pessoas com
notas mais baixas no processo de seleção. Esta é apenas uma das
distorções na área do ensino, entre várias outras.
Quais?
Eu me preocupo com este contexto de rebaixamento do nível de exigência, algo
que não se vê em outros países. No meu tempo de estudante de engenharia,
havia um sistema voltado para a disciplina e para uma avaliação rigorosa, que
trazia consequências para o aluno. Em Cálculo, por exemplo, 30% passavam de
cara e 70% tomavam pau porque já naquele tempo a base matemática que traziam
do ensino médio não era tão sólida. Hoje, o que acontece?
Baixa-se o nível de exigência e
o cara passa naquela matéria. Retirou-se da educação um elemento importante,
que é a repetência. A repetência é um instrumento de educação para a vida.
No meu tempo, quando a gente
repetia, sentia vergonha diante da família, dos vizinhos, ficava no quarto,
nem saía muito de casa. Isso, lá pelos 10, 11 anos de idade, era uma tremenda
lição social. Hoje, essa lição social foi subvertida.
Qual é a consequência deste novo quadro?
A consequência é que o jovem, na idade das drogas, é jogado na vida com pouca
disciplina, com pouco entendimento das consequências do que deixou de fazer,
sabendo que pode levar as coisas até o último ano, quando tudo se corrige de
algum modo é ele jogado para a frente.
Ele chega à universidade com
pouca base, com pouca disciplina de estudo... e ali também vai encontrar um
sistema que flexibiliza, porque as universidades não querem ficar com a
faculdade cheia de gente repetindo o ano...
Ou seja, as consequências são minimizadas até o momento em
que esse jovem começará a enfrentar a vida. E aí
o que é
que tem acontecido, historicamente? Nós,
lá nas empresas, vamos ter de reciclar esse pessoal. E isso é preocupante.
Que peso essa situação tem nas carências
de mão de obra das empresas?
O problema é significativo e está ligado a esta e a outras situações. Existe
uma série de mecanismos de proteção que fazem com que, às vezes, a pessoa não
queira entrar no mercado de trabalho formal. Vejamos o caso do programa bolsa
família. O bolsa família foi criado sem mecanismo de saída, o que é um erro.
Não só a bolsa família.
O seguro desemprego também. Só
recentemente, o seguro desemprego passou a exigir como contrapartida que o
trabalhador passe por alguma formação, reciclagem... Na Finlândia, há muito
tempo é assim. Se eu vou para o seguro desemprego, eu não fico em casa.
Tenho de ir para um curso de formação, pois já que o
Estado está me pagando para não trabalhar, eu tenho de estudar e me preparar com outras
competências para que o mercado possa
me absorver.
O que deve mudar nos critérios do bolsa
família?
O bolsa família tinha de ser repensada de maneira a adotar um mecanismo de
saída. Eu acho esse tipo de programa social perfeitamente justo, quero deixar
bem claro. Mas apenas enquanto situação temporária. Afinal, esse tipo de
programa dá sobrevivência a uma pessoa, a uma família, mas não estabelece a
cidadania moderna que nós queremos.
É aí que está a importância de criarmos mecanismos que
estimulem a saída. Com isso, o programa seria
aprimorado no sentido de levar essas pessoas para a
cidadania plena, porque ninguém que
vive de assistência pode ser considerado um cidadão na plenitude do termo.
A inovação é um tema assíduo no discurso
empresarial brasileiro e mesmo no âmbito do governo e das universidades. O
país está fazendo avanços reais neste campo?
Inovação é a coisa mais mal-entendida do Brasil. Eu falo que o que temos aqui
é a mística da inovação. Vejamos o que fez a Finlândia, um país que
está no topo da lista da inovação. Eles tinham caminhos tradicionais, como o
próprio setor florestal, base da economia.
Mas decidiram praticar a
transversalidade da inovação. Inovaram no desenvolvimento de equipamentos
para o setor, em toda a cadeia. A universidade se envolveu fortemente para
apoiar o processo. Inovação é isso, é aplicar na ponta, é buscar resultado.
Aqui, a universidade desenvolve teses, teses e teses. E quantas são
aplicáveis?
Temos de seguir o caminho de
países como Suécia e Finlândia, onde as universidades estão consorciadas aos
negócios, à economia e onde há centros de desenvolvimento de tecnologia discutindo
formas de potencializar a inovação nas cadeias produtivas.
No Brasil, com algumas exceções
notáveis como a TecnoPUC, predomina uma visão ideológica entre as
universidades. Lembro que há uns 15 anos nós tínhamos conseguido estabelecer
convênio com 27 universidades no mundo e eu tive de ouvir de um acadêmico no
Espírito Santo que a universidade não podia se contaminar com o interesse
privado, porque a função dela era desenvolver o conhecimento. Muitas de
nossas universidades continuam assim: geram conhecimento pela pureza do
conhecimento, sem preocupação com a aplicação prática de suas pesquisas.
Explique melhor o que é a transversalidade
da inovação.
Se eu quero gerar um produto, um processo, e entregar isso à sociedade, eu
tenho de mapear o caminho que vou trabalhar. Há tecnologias de foco e há
tecnologias transversais que se combinam, e é preciso desenhar todo esse
processo – que não é isolacionista, e sim cooperativista, integrador. Agimos
assim aqui na empresa para desenvolver uma nova madeira. Integramos todos os
elementos da cadeia, o que envolveu universidades de outros países.
Algumas coisas, nós
desenvolvíamos – o material genético inicial era nosso, por exemplo. Mas
outras coisas nós buscávamos, em consórcio com alemães, com chineses... Esta
é a diferença: no exterior, a universidade trabalha com cronograma, com
planejamento e com compromisso com o resultado. Os caras lá são
pragmáticos.
Não quer dizer que não possa
haver renegociação de prazo, mas há objetivos de prazo. Aqui, como o conhecimento
é purista, e o conhecimento purista é algo que não se pode materializar, é
intangível, não se valoriza cronograma, ou resultado, e sim o pensamento
livre. O Brasil tem todos os ingredientes – ótimas empresas, universidades,
financiamento... Mas ainda não temos uma política estruturada de inovação. De
novo, aqui, a solução do problema é uma questão de articulação.
As leis e a atuação dos órgãos reguladores
favorecem o investimento privado no Brasil?
O que eu vejo é que o Brasil,
diferentemente de países desenvolvidos, baseia-se no direito romano. E o
nosso sistema regulatório reflete esta realidade, esta opção por regrar tudo,
por criar regras e mais regras todos os dias. Agora, por exemplo, depois
dessa tragédia em Santa Maria, nós vamos criar um monte de regras a mais. E
assim somos nós.
A cada crise, introduzimos mais
leis. E todo aperfeiçoamento do sistema regulatório que nós promovemos é
sempre por adicionalidade, e não por uma atitude de repensar modelos. O
resultado é que as empresas enfrentam, no Brasil, uma burocracia imensa. O
Brasil é, absolutamente, um dos piores ambientes do mundo para se fazer
negócios, do ponto de vista do sistema regulatório.
O que deveria ser revisto no modelo
regulatório brasileiro?
Em primeiro lugar, reduzir a produção de leis, que é uma coisa imensa no
Brasil. Em outros países, não se entende um sistema como o nosso, em que um
vereador faz leis. Nesses países, o que há em cidades pequenas é um conselho
comunitário que estabelece regras locais. Esse excesso de leis no Brasil
torna complexa a fiscalização do comportamento social e a aplicação da norma
legal.
Em conseqüência dessa
abundância de leis, o sistema brasileiro não consegue punir com presteza. E
isso beneficia quem? Quem faz as coisas erradas. Então nós temos todo um
sistema regulatório que está ficando impossível de ser cumprido, e de ser
fiscalizado. Além do mais, há sobreposição de órgãos reguladores, falta de
sintonia entre eles, dúvidas sobre competência legal entre União, Estados e
municípios... É um quadro que paralisa os negócios. Por isso o Brasil é
apontado internacionalmente como um país altamente burocrático. E tudo é
agravado pela politização das instituições de governança pública.
Em outros países, um órgão ambiental não dá posições ideológicas sobre
qualquer assunto. Dá posições técnicas. Porque quem está atuando ali é
profissional de carreira, e não alguém que ocupa cargo em comissão e que foi
nomeado por critérios políticos. É impossível o Estado ser eficiente com
cargos de alta importância técnica sendo politizados dessa maneira.
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