02 de março de 2014 | 2h 05
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - O Estado de S.Paulo
Domingo de carnaval, convenhamos, não é o melhor dia
para ler artigo sobre política internacional. Mas que fazer? Coincidiu
que o dia de minha coluna fosse hoje e não tenho jeito nem vontade de
escrever sobre as alegrias de Momo. Por mais que nos anestesiemos no
carnaval, o meio circundante não alenta alegrias duráveis.
Comecemos do princípio. Acho que houve um erro estratégico desde o
governo Lula na avaliação das forças que predominariam no mundo e da
posição do Brasil na ordem internacional que se transformava.
Não me
refiro ao que eu gostaria que ocorresse, mas às tendências que
objetivamente se foram configurando. Nossa diplomacia se guiou pela
convicção de que um novo mundo estava nascendo e levou o presidente, em
sua natural busca de protagonismo, a ser o arauto dos novos tempos. A
convicção implícita era a de que pós-Muro de Berlim, depois de breve
período de quase hegemonia dos Estados Unidos, pregada por seus teóricos
do neo conservadorismo, e da corte de equívocos da política externa
desse país (invasão do Iraque, do Afeganistão, isolamento da Rússia,
apoio acrítico a Israel em sua política de assentamentos de colonos,
etc.) e dos desastres provocados por essas atitudes, assistiríamos a uma
correção de rumos.
De fato, houve essa correção de rumos, mas a direção esperada pela
cúpula da diplomacia brasileira e por setores políticos sob influência
de alas antiamericanas do PT era a do "declínio do Ocidente", com a
perda relativa do protagonismo americano e a emergência das forças
novas: a China (o que ocorreu), o mundo árabe, em especial os países
petroleiros, a África e, naturalmente, a América Latina como parte deste
"Terceiro Mundo" renascido. Essa visão encontra raízes em nossa cultura
diplomática desde os tempos da "política externa independente", de
Jânio Quadros, e encontra eco nos sentimentos de boa parte dos
brasileiros, inclusive de quem escreve este artigo. Sempre sonhamos com
um mundo multipolar no qual "os grandes" tivessem de compartilhar poder e
nós, brasileiros, pouco a pouco nos tornássemos parceiros legítimos do
grande jogo de poder global.
Contudo uma coisa é desejar um objetivo, outra é analisar as
condições de sua possibilidade e atuar para que, dentro do possível,
buscando ampliar seus limites, nos aproximemos do que consideramos o
ideal. Nisso é que o governo Lula calculou mal. Se a Europa, sobretudo
depois da crise financeira de 2008, perdeu tempo em tomar decisões e
está até hoje embrulhada na indefinição sobre até que ponto precisará
integrar-se mais (compatibilizando as políticas monetárias com as
fiscais), ou voltar, na linguagem de De Gaulle, a ser a "Europa das
Pátrias", nem a China se perdeu nos devaneios maoistas nem os Estados
Unidos no neoconservadorismo que acreditava que a América poderia agir
como se fosse uma hiperpotência. Ao contrário, a China lançou-se às
reformas para inverter o polo investimento/consumo, diminuindo aquele e
aumentando este, e os americanos deixaram de lado a ortodoxia
monetarista, recalibraram a sua política externa e se jogaram à inovação
das fontes de energia. Hoje propõem uma coexistência competitiva, mas
pacífica, com a China, baseada no comércio, e lançam cordas para que a
Europa saia do marasmo e se incorpore aos Estados Unidos, que
funcionariam como dobradiça entre a China e a Europa, formando um
formidável tripé.
Enquanto isso, o Brasil faz reuniões com os árabes, que não deixam de
ter sua importância, propõe negociações sobre o Irã em coordenação com a
Turquia (imagine-se se os turcos fariam o mesmo, propondo-se a ajudar o
Brasil para resolver o litígio das papeleiras entre Uruguai e
Argentina...), abre embaixadas nas mais remotas ilhas para, com o voto
de países sem peso na mesa das negociações, chegar ao Conselho de
Segurança (da ONU). Por outro lado, comporta-se timidamente quando a
Petrobrás é expropriada pela Bolívia, interfere contra o sentimento
popular em Honduras, abstém-se de entrar em bolas divididas, como no
conflito argentino-uruguaio, além de calar diante de manifestações
antidemocráticas quando elas ocorrem nos países de influência
"bolivariana".
Noutros termos: escolhemos parceiros errados, embora, em si mesma, a
relação Sul-Sul seja desejável, e menosprezamos os atores que estão
saindo da crise como principais condutores da agenda global, exceção
parcial feita à China (neste caso, não há menosprezo, mas falta de
estratégia). Perdemos liderança na América Latina, hoje atravessada pela
cunha bolivariana que parte da Venezuela com apoio de Cuba, estende-se
acima até a Nicarágua, passa pelo Equador e, abaixo, desce direto à
Bolívia e chega à Argentina. No outro polo se consolida o Arco do
Pacífico, englobando Chile, Peru, Colômbia e México, e nós ficamos
encurralados no Mercosul, sem acordos comerciais bilaterais e, pior,
calados diante de tendências antidemocráticas que surgem aqui e ali.
Ainda agora, na crise da Venezuela, é incrível a timidez de nosso
governo em fazer o que deve: não digo apoiar este ou aquele lado em que o
país rachou, mas pelo menos agir como pacificador, restabelecendo o
diálogo entre as partes, salvaguardando os direitos humanos e a
cidadania. O Mercosul desabridamente se põe do lado do governo de
Maduro. O Brasil timidamente se encolhe, enquanto o partido da
presidente apoia o governo venezuelano, sem nenhuma ressalva às mortes,
ao aprisionamento de oposicionistas e às cortinas de fumaça que querem
fazer crer que o perigo vem de fora, e não das péssimas condições em que
vive o povo venezuelano.
Agindo assim, como esperar que, chegada a hora, a comunidade
internacional reconheça os direitos que cremos ter (e de fato poderíamos
ter) de tomar assento nas grandes decisões mundiais? Fomos incapazes de
agir, ficamos paralisados em nossa área de influência direta. A
continuar assim, que contribuição daremos a uma nova ordem global?
Chegou a hora de corrigir o rumo. Que a crise venezuelana nos desperte
da letargia.
SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE
DA REPÚBLICA