Como a AEL Sistemas desbancou a Whirlpool e se tornou a empresa mais criativa do sul do país
Por Andreas MüllerÉ quase meio-dia quando
o alarme de incêndio começa a soar no interior dos prédios da AEL
Sistemas, em Porto Alegre. Felizmente, não há qualquer sinal de fogo na
casa – trata-se apenas de um exercício de treinamento. De qualquer
forma, o ritual é seguido à risca: um a um, os funcionários do prédio
largam seus afazeres e se encaminham para as rotas preestabelecidas de
saída. Fora do prédio, são levados a uma área segura sob as orientações
dos brigadistas de incêndio. Tudo sem sobressaltos e na mais perfeita
normalidade, a não ser por um detalhe curioso: dos cerca de 300
funcionários em fuga, mais de metade veste impecáveis jalecos brancos.
Nem todos são doutores, mestres ou laboratoristas. Mas todos eles têm
em comum o fato de lidarem com um negócio de alta intensidade
tecnológica e importância estratégica para o país. Fundada em 1983, a
AEL é uma das poucas empresas brasileiras que atuam no mercado de
sistemas eletrônicos militares e espaciais. De suas linhas de
desenvolvimento e produção saem equipamentos e softwares que ajudam a
controlar aeronaves, drones, navios e até tanques de guerra. São
soluções como displays de combate, radares, computadores de bordo,
simuladores de guerra e sistemas optrônicos e eletro-ópticos, usados em
redes de vigilância e monitoramento de fronteiras. Com um detalhe: cada
produto é resultado de um projeto de longa maturação, que envolve a
construção de tecnologias e soluções verdadeiramente únicas. “Para nós,
não existe mercado de varejo”, resume Sérgio Horta, presidente da AEL.
“O que fazemos aqui são inovações customizadas, que se aplicam a
demandas muito específicas de cada cliente.”
Trata-se de um
trabalho de alta complexidade, que exige conhecimento especializado,
habilidade técnica e destreza manual – além de uma equipe com
qualificação rara. Em uma conta rápida, Horta estima que 40% dos
funcionários da AEL são engenheiros, 30% são técnicos e o restante atua
nas áreas de administração e apoio. Os de jaleco, acrescenta ele, são
aqueles que literalmente põem a mão na montagem de cada sistema, em
áreas que envolvem desde o manuseio de placas de microeletrônica até a
operação de simuladores de guerra e salas limpas. Juntos, eles formam
uma verdadeira usina de inovações, com produtos que equipam alguns dos
mais avançados veículos e equipamentos das forças armadas dentro e fora
do Brasil.
O Super Tucano A-29, por exemplo, usado na supervisão
das fronteiras e da Amazônia, conta com sistemas e serviços de
manutenção da AEL. O caça F-5M da Força Aérea Brasileira (FAB) carrega
um painel de acionamento de aviônicos, um display multifuncional, um
computador de missão e um gravador de vídeo, entre outros equipamentos
desenvolvidos pela empresa. Para treinar os pilotos do tanque Guarani, o
exército brasileiro está em busca de fornecedores para um novo tipo de
simulador – e, se vencer o pleito, a companhia já tem toda tecnologia
necessária para desenvolvê-lo em sua sede, em um terreno contíguo ao do
Aeroporto Salgado Filho, na zona norte de Porto Alegre. Isso sem contar o
novo cargueiro KC-390, que traz diferentes equipamentos de navegação e
processamento de dados desenhados pela AEL – entre eles, um computador
de missão com alta capacidade de processamento, além de instrumentos que
ampliam a chamada “consciência situacional” do piloto.
E não só
isso. Quem bate à porta do prédio de engenharia da AEL – onde atua a
maior parte da equipe dos jalecos – se depara com um ambiente propício à
criatividade. Em uma das salas, é possível ver esboços feitos à mão de
aviões e radares em quadros colocados na parede. Na entrada, há a
réplica de uma bomba de gravidade, conhecida no setor de defesa como
“bomba burra”. Tradicionalmente, a precisão desse tipo de artilharia era
baixíssima: cabia ao piloto, enclausurado na cabine da aeronave,
escolher o momento certo para soltar a carga, na esperança de que ela
caísse o mais próximo possível do alvo. A AEL, porém, fabrica um
acessório com pequenas asas direcionais e um computador de bordo que
pode ser acoplado à bomba e corrigir sua trajetória até o destino. A
solução aumenta consideravelmente a precisão do tiro – a um custo que,
segundo Horta, representa apenas uma fração do que seria necessário no
desenvolvimento de um míssil. “Basicamente, estamos transformando uma
bomba burra em uma bomba inteligente”, resume. Muitos desses projetos
ficam à vista de qualquer pessoa que ande pelo interior do departamento
de engenharia da AEL. Mesmo assim, a reportagem de AMANHÃ foi impedida
de fotografá-los devido aos contratos de confidencialidade mantidos
entre a empresa e seus clientes.
Resultados na mira
O
vice-presidente de operações da AEL, Vitor Neves, faz questão de
ressaltar que nada está ali por acaso. “Não somos um instituto de
desenvolvimento e nem um centro de pesquisas. Somos uma empresa e
estamos buscando oportunidades para gerar resultados”, ressalta ele.
Neves é o mais antigo funcionário da casa. Começou em 1976, como
estagiário de engenharia da Aeromot, a precursora da AEL. De lá para cá,
viu a companhia se transformar radicalmente. Em 1983, lembra ele, o
quadro de funcionários tinha apenas 15 pessoas. Hoje, são cerca de 300 –
20 vezes mais. Com o tempo, o negócio foi ganhando corpo e conquistando
projetos promissores, como o fornecimento de sistemas para o Tucano
T-27 e para o caça ítalo-brasileiro AM-X. Até que, em 2001, depois de um
período de baixo crescimento, a AEL teve parte do capital adquirido
pelo grupo israelense Elbit.
A operação abriu espaço para a empresa se consolidar em um
patamar mais elevado de competitividade. Isso ficou claro a partir de
2007, quando a AEL enviou um grupo de engenheiros a Israel com o
objetivo de participar da elaboração de um projeto na matriz da Elbit.
Com 12 profissionais, a equipe passou cerca de dois anos na cidade de
Haifa, onde fica o centro de engenharia do grupo israelense,
acompanhando de perto o que havia de mais moderno em tecnologias de
defesa militar. “Paralelamente, a nossa equipe de marketing foi buscando
novas oportunidades aqui no Brasil. E a primeira oportunidade apareceu
quando a FAB decidiu modernizar uma de suas aeronaves, o Bandeirante. Aí
chamamos os nossos engenheiros de volta”, recorda Neves. No retorno a
Porto Alegre, eles formaram uma equipe maior e mais qualificada para dar
conta das demandas do governo brasileiro. “Foi uma forma de aprender
fazendo”, conta o vice-presidente.
Uma nova oportunidade surgiu
em 2011, quando a Embraer decidiu ampliar suas atividades na área de
defesa e segurança – e se aliou à AEL para acelerar o plano. Nascia,
ali, a Harpia Sistemas, a primeira empresa brasileira focada no
desenvolvimento de aeronaves pilotadas remotamente (ARPs), popularmente
conhecidas como drones. Na constituição do negócio, 25% do capital da
AEL foi parar nas mãos da Embraer e os 75% restantes ficaram em poder da
Elbit. Segundo Sérgio Horta, essa composição foi fundamental para
ampliar a envergadura dos negócios. “Hoje, nós exportamos muita coisa
através das aeronaves que a Embraer comercializa lá fora”, ressalta ele.
A Elbit exerce papel semelhante. Os israelenses têm o hábito de
promover uma concorrência interna para decidir qual de suas subsidiárias
no mundo terá a primazia de desenvolver determinados projetos
internacionais. Em duas ocasiões, a AEL foi a vencedora dessa disputa.
“E isso acaba se transformando em exportação também”, destaca Vitor
Neves.
Os resultados vêm a reboque. Em média, o faturamento da
AEL tem crescido cerca de 20% ao ano – para 2014, a meta é fechar em
aproximadamente US$ 100 milhões. Para completar, a companhia se
consagrou, neste ano, como a mais inovadora do sul do país, segundo o
ranking Campeãs de Inovação, elaborado por AMANHÃ e Edusys com o aval
técnico da Fundação Dom Cabral. Não deixa de ser uma conquista
surpreendente. Até 2013, a AEL sequer aparecia no levantamento. Neste
ano, estreou logo na primeira posição, quebrando uma hegemonia de três
anos da toda-poderosa Whirlpool, dona das marcas Cônsul e Brastemp.
“Dois atributos chancelam as iniciativas da AEL. O primeiro deles é o
tratamento e a orientação dados à inovação. O segundo é o conjunto de
resultados que ela obtém a partir desse esforço”, analisa Mauro
Anderlini, sócio-diretor da Edusys.
Radar de negócios
Na
maioria das empresas, o departamento de marketing entra em cena somente
no final dos processos de inovação, quando o produto já está pronto
para ser testado e lançado no mercado. Na AEL, é exatamente o contrário:
o desenvolvimento de novos produtos, serviços e tecnologias começa
justamente pela equipe de marketing, que emprega cerca de 15
profissionais em Porto Alegre. Em um mercado fechado, repleto de
restrições e extremamente técnico como o de segurança e defesa militar,
seu papel é atuar como um radar de oportunidades. Ou seja: firmar
relacionamentos duradouros, entender as necessidades dos clientes e
identificar onde há espaço para o desenvolvimento de novas soluções. “A
inovação na AEL nasce com o marketing, que tem a função de verificar
essas necessidades do mercado e trazê-las para dentro da empresa”,
resume Vitor Neves.
As
oportunidades identificadas pelo marketing são compartilhadas com toda a
empresa. A partir daí, cada departamento tem liberdade para propor
caminhos na busca de uma solução. “A ideia pode vir da área de
tecnologia, de produção ou de engenharia. Uma vez que a alta
administração aprova o projeto, o desenvolvimento é feito lá”, detalha
Neves. A elaboração da ideia respeita uma sequência predefinida de
etapas. Primeiro, faz-se o projeto e as respectivas especificações.
Depois, é construído um “modelo de engenharia”, uma espécie de
pré-protótipo que permite à AEL testar as funcionalidades da ideia.
“Normalmente, é uma coisa muito feia, cheia de fios soltos sobre a
mesa”, conta Neves. A etapa seguinte é a do “modelo de qualificação”,
quando o produto adquire contornos quase definitivos e é submetido a
inúmeros testes de qualidade. O formato final do produto é conhecido
como “modelo de voo”. “Esse, sim, é o que vai ser efetivamente colocado
para voar”, completa Sérgio Horta.
Como uma metralhadora
Para garantir que tudo funcione perfeitamente, a AEL opera avançados
sistemas de testes e simulações. Um dos destaques é a sala de simulações
ambientais, com câmaras que submetem os produtos a situações críticas
de operação. Uma delas faz a temperatura oscilar de -40 para +80 graus
Celsius em poucos segundos. Outra vem equipada com um shaker, que
reproduz as trepidações de uma metralhadora em ação. “Nossos produtos
precisam ser muito bem feitos. Se há algum problema, é essencial que ele
seja detectado aqui, e não na aeronave. Estamos falando de sistemas de
defesa, e não produtos de prateleira”, ressalta Horta. O cerco contra as
falhas se torna ainda mais evidente na divisão de sistemas para o setor
espacial, que envolve o desenvolvimento de micro e nanossatélites.
“Depois que lança para o espaço, acabou. Aí você não tem mais margem
para reparo ou manutenção. Os equipamentos têm de funcionar bem por
décadas sem que ninguém toque neles”, diz o presidente da AEL Um dos
possíveis frutos desse trabalho é o projeto do primeiro microssatélite
com tecnologia 100% brasileira, o MMM-1 (leia mais no Box "Fora de
órbita").
Por trás das
inovações há uma necessidade vital para a AEL: alcançar a
autossustentação em um país que ainda carece de tradição no
desenvolvimento de tecnologias, especialmente nas áreas de defesa e
segurança. Nos Estados Unidos, as empresas que atuam no setor têm o
governo como um cliente cativo – e generoso. Só em 2013, os gastos
militares norte-americanos chegaram a US$ 682 bilhões, cerca de 20 vezes
o orçamento do Brasil, que foi de US$ 33,1 bilhões, segundo um
levantamento do Stockholm International Peace Research Institute. Como
não há tantos recursos aqui, o próprio governo brasileiro incentiva as
companhias do setor a ser duais. “Ou seja: que tenham capacidade de
atender às necessidades das Forças Armadas e que, ao mesmo tempo,
desenvolvam negócios complementares para crescer e sobreviver por conta
própria”, explica Horta. No caso da AEL, a “dualidade” já está
plenamente atendida. Cada vez mais, a empresa desenvolve soluções para
as áreas de segurança pública, como câmeras de vigilância com longa
distância. O próximo passo é expandir as exportações, um desafio que, de
certa forma, implica vender mais também no Brasil. “No mercado de
defesa, se você não consegue vender um produto no seu próprio país, fica
muito difícil exportá-lo”, descreve Sérgio Horta.
Resta
saber como a AEL deverá se sair nas próximas edições do especial
Campeãs de Inovação. Mauro Anderlini, da Edusys, ressalta que a empresa
tem qualidades únicas. “O desenvolvimento de inovação sob demanda é uma
das competências mais sofisticadas das companhias voltadas para
inovação”, explica ele. Ao mesmo tempo, porém, organizações como
Braskem, Grendene e a própria Whirlpool vêm aprimorando seus métodos de
governança. Afinal, elas também têm armas poderosas para se sobressair
no ranking das mais inovadoras do sul do Brasil.
Fora de órbita
Um impasse político pode atrasar o sonho do polo espacial gaúcho, liderado pela AEL
Em
abril de 2013, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, firmou
um protocolo de intenções com a AEL Sistemas para a concretização de um
projeto ambicioso: o primeiro Polo Espacial Gaúcho – um consórcio entre
empresas, universidades e órgãos de fomento (no caso, a Finep) para
inserir o Brasil na área de tecnologias aeroespaciais. Pelo protocolo, a
AEL seria a empresa-âncora do polo e buscaria sinergias com os demais
participantes para desenvolver equipamentos orbitais, veículos aéreos
não tripulados e outros aparelhos de pilotagem remota. Um dos frutos
dessa parceria seria o Microssatélite Militar Multimissão (MMM1), cujo
lançamento estava previsto para 2015. Do tamanho de uma caixa de sapatos
e pesando menos de dez quilos, o equipamento poderia representar um
salto tecnológico para a economia gaúcha. “O potencial do segmento é
enorme. Os Estados Unidos estão utilizando cada vez mais microssatélites
para observação e controle. Embora ainda não seja um polo tecnológico
como São Paulo, o Rio Grande do Sul tem na sua mão de obra qualificada
uma grande vantagem”, exaltava Vitor Neves, vice-presidente de operações
da AEL, em uma reportagem publicada por AMANHÃ no final de 2013.
Os
movimentos mais recentes, porém, revelam que o Polo Espacial Gaúcho vai
demorar para se tornar realidade. No início de dezembro, o governador
Tarso Genro publicou uma carta afirmando que os recursos liberados pela
Finep eram insuficientes para a materialização do projeto. E que, nesse
cenário, o protocolo de intenções firmado com a AEL havia ficado “sem
objeto”. Na prática, foi um cancelamento do acordo, em um ato reforçado
por um detalhe diplomático: a carta era diretamente endereçada à
Federação Palestina do Rio Grande do Sul – que vinha criticando o
governo gaúcho por estabelecer uma parceria desse tipo com a subsidiária
de um grupo israelense.
Na AEL, a expectativa é de que o
projeto ainda seja retomado mais cedo ou mais tarde. Se for
concretizado, o Polo Espacial poderá dar origem a pelo menos mais dois
modelos de microssatélites, um deles com sistemas de propulsão para
controle orbital. Além das quatro maiores universidades do Estado, o
projeto deverá abranger empresas como Digicon, TSM e GetNet.
O que faz a AEL
Conheça alguns dos projetos que ajudam a entender a alma do negócio da empresa mais inovadora do sul do país
EGI
- Atualmente, a AEL trabalha em um sistema de navegação inercial. A
tecnologia é estratégica para o país, na medida em que permite às Forças
Armadas guiar veículos e aeronaves sem depender de um único sistema de
geolocalização – como o GPS, de propriedade dos Estados Unidos. O
segredo está na combinação de diferentes tipos de geolocalização.
Programa OBC
- Depois de dois anos de trabalho, a AEL entregou ao Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe) o primeiro computador brasileiro de bordo
capaz de controlar o posicionamento de satélites de baixa órbita. O
OBC, como é conhecido, será interligado a equipamentos como GPS, sensor
de estrelas, rodas de reação, giroscópios e magnetômetros.
Vigilância de fronteiras
- A AEL é responsável por fornecer os equipamentos eletro-óticos que o
Exército Brasileiro deverá usar no Sistema Integrado de Monitoramento de
Fronteiras (Sisfron). Lançada em novembro, no Mato Grosso, a iniciativa
vai monitorar toda a fronteira oeste do Brasil. Algo semelhante deverá
ocorrer com o SisGAAZ, que monitora a “Amazônia Azul”.
Displays para navegação
- Uma das vocações da AEL é a concepção de displays que facilitam a
operação de aeronaves e outros veículos. Em Porto Alegre, a empresa vem
testando um modelo conhecido como WAD, em formato widescreen. O display
aceita comandos com toque na tela e ainda mescla as informações de
navegação, sobrepondo-as umas às outras – o que dá mais agilidade ao
piloto.
“Acessórios” - Imagine um capacete
inteligente munido de visores que dão ao piloto a oportunidade de
enxergar tudo que acontece do lado de fora da aeronave, em tempo real.
Agora adicione a isso um sistema de leitura ocular que permite mirar no
alvo apenas com o ato de olhar. Eis aí uma pequena amostra das soluções
que a AEL vem testando em seus simuladores.
Optrônicos
- São sistemas eletro-óticos utilizados em atividades de vigilância. Um
exemplo são as supercâmeras Atena, utilizadas em helicópteros,
planadores e em outras plataformas aéreas, marítimas ou terrestres.
Superpotentes e com imagens em altíssima resolução, permitem a
observação detalhada de alvos a quilômetros de distância.