Brasil
espera convencer Ocidente da importância do Sul Global no G20, enquanto
instância de governança. Entretanto reticência de Lula em relação à
Rússia e declarações recentes sobre Israel erodem relações essenciais.O
Brasil, que exerce a presidência rotativa do G20, sediará encontros
importantes do bloco nos próximos dias. Em 21 e 22 de fevereiro, os
ministros do Exterior das maiores economias do mundo se reunirão no Rio
de Janeiro. A reunião antecede a cúpula de chefes de Estado do bloco,
marcada para novembro.
O
encontro do Rio terá no centro da agenda conflitos internacionais como
as guerras na Ucrânia e em Gaza. O secretário de Estado americano,
Antony Blinken, e seu homólogo russo, Sergei Lavrov, estarão presentes.
A
morte de Alexei Navalny, opositor do presidente russo, Vladimir Putin,
numa prisão da Rússia, intensificou o tensionamento entre os dois
países. O presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou na sexta-feira (16/02)
que “não existem dúvidas” sobre a responsabilidade de Putin pelo
episódio.
A expectativa é de que Lavrov tenha uma reunião
bilateral no Rio com o chanceler brasileiro, Mauro Vieira. Blinken, por
sua vez, vai a Brasília antes do encontro para uma visita ao presidente
Luiz Inácio Lula da Silva.
Postura de Lula quanto a Rússia e Israel erode relações
No
domingo, o chefe de Estado brasileiro afirmou ser preciso aguardar o
avanço das investigações sobre a morte de Navalny para se posicionar
sobre o caso. “Se você julga agora que foi alguém que mandou matar, e
não foi, depois você vai [ter que] pedir desculpas”, declarou, durante
viagem à Etiópia.
Desde que Lula retornou à presidência, o governo
brasileiro adota posições geopolíticas incômodas para o Ocidente.
Embora o país tenha condenado a invasão russa nas Nações Unidas, a opção
de não se aliar à Ucrânia gerou suspeitas de leniência com Putin,
parceiro do Brasil no Brics.
Diante do agravamento da violência em
Gaza, Lula endureceu suas críticas às ações militares israelenses, que
classificou como “terrorismo de Estado”. Em janeiro, o Brasil se somou à
iniciativa sul-africana de denunciar Israel pelo crime de genocídio
junto à Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Ao comentar o
conflito, no domingo, o presidente brasileiro acusou Israel de praticar
“genocídio” em Gaza e comparou a situação ao período do Holocausto. O
primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, reagiu de imediato nas
redes sociais e convocou seu embaixador no Brasil para consultas.
Matias
Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio
Vargas, comenta: “A cada vez que isso acontece, o elo do Brasil com
alguns dos seus principais parceiros é erodido. E a troco de quê,
exatamente, não é claro para mim. Existe a crença de que, quanto mais o
Sul Global se aproxima da China, mais os EUA têm que dar ao Sul Global
para impedir que se alinhe à China. Só que essa perspectiva não leva em
conta o enorme atrito que isso gera na relação entre países do Sul
Global com o Ocidente.”
Reforma da governança global
Brasília
considera a presidência do G20 como estratégica para projetar o país
como liderança emergente. “Assim como aconteceu no G20 da Índia, Lula
também vai tentar fazer que o encontro seja um divisor de águas no
sentido de empurrar o Ocidente a fazer um reconhecimento explícito da
importância de trazer o Sul Global para dentro dessa instância de
governança que é o G20”, projeta Spektor.
Junto com o combate à
fome e o enfrentamento das mudanças climáticas, a reforma da governança
global é um dos três eixos prioritários da presidência brasileira no
G20. No encontro do Rio, será o tema central.
“É preciso que tenha
uma nova geopolítica na ONU. É preciso acabar com o direito de veto dos
países e é preciso que os membros do Conselho de Segurança sejam atores
pacifistas, e não atores que fomentem a guerra”, disse Lula no domingo,
em sua passagem pela Etiópia.
As instituições de governança
global atuais foram criadas após a Segunda Guerra Mundial. Em linha com
outros países do Sul Global, o governo brasileiro entende que esses
mecanismos precisam ser oxigenados com a presença de novos atores.
Medo de um retorno de Trump
Em
entrevista ao jornal O Globo, o chanceler Mauro Vieira defendeu que o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial reduzam
“condicionalidades e exigências” para emprestar dinheiro a países em
desenvolvimento. “Não digo que é para não ter regras e entregar todos os
recursos de qualquer forma, mas ter exigências menores. Tem de haver
uma adaptação à necessidade. Não se pode impor uma receita que mata o
doente.”
O professor de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília (UnB ) Antônio Ramalho avalia que a crise do sistema de
governança se deve à negligência dos países responsáveis pela sua
criação. Ele alerta para o possível impacto negativo da eventual vitória
de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos: “Teríamos
um processo bastante significativo na direção de implodir essa ordem. A
China, por sua vez, prefere que continue funcionando mal, porque isso
aumenta os incentivos para os países migrarem para a Rota da Seda.”
Ramalho
lembra que a única reforma importante ocorrida no FMI se deu após a
criação do Brics, quando mudanças na distribuição das cotas abriram
maior espaço para países emergentes: “É preciso caminhar nessa direção,
se quisermos que essas instituições continuem a fazer sentido. Os
governos sentem falta de um espaço em que seja possível estabelecer
regras de jogo para organizar a sociedade internacional. As Nações
Unidas, a OCDE e a Europa não estão sendo capazes de fazer isso.”
Ainda
haverá um novo encontro prévio à cúpula do G20: em 28 e 29 de
fevereiro, os ministros da área econômica e presidentes dos bancos
centrais se reúnem em São Paulo.