Arquiteto do sistema elétrico, o presidente
da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, trabalha
com o desafio de equacionar o impasse entre crescimento do consumo e
suas consequências socioambientais.
"O que é um ganho do ponto de vista energético, para quem olha a questão socioambiental é um desastre", afirma.
Desenvolvimentista em linha com a presidente Dilma Rousseff - foi um
dos formuladores do programa de energia do PT - sentencia: "eficiência
energética não é suficiente para eliminar as grandes obras".
Atualmente, consumimos uma energia cara e poluente. É uma tendência ou fruto de um erro cometido no passado, no planejamento?O
Brasil possui a matriz energética mais limpa do mundo. Entre 80% e 90%
da geração elétrica vem de fontes renováveis. Quando chove menos, é
preciso usar mais as térmicas. É claro que o ideal é estar sempre com as
renováveis. Mas uma característica de um sistema que tem fontes
variáveis é que, em algum momento, é preciso usar fontes despacháveis,
como as térmicas.
Mas há a perspectiva de entrada de mais térmicas, inclusive a carvão, nos próximos leilões.
Em termos absolutos, as térmicas estão crescendo bem menos do que as
renováveis. A grande modificação é que havia, no passado distante,
hidrelétricas com grandes reservatórios. Agora, há uma grande
dificuldade em conseguir licenciamento, até mesmo para hidrelétricas sem
reservatórios. Hoje, é mais difícil construir - por um lado, devido à
questão socioambiental; por outro, tem a ver com a topologia da região
Norte, onde está o grande potencial a ser explorado. É uma região muito
plana. A construção de reservatórios implicaria num grande alagamento. E
tem um problema a mais. Essas usinas do Norte têm variabilidade
hidrológica muito grande. Belo Monte, por exemplo, em alguns períodos
vai gerar 11 mil megawatts-hora e, em outros, 1 mil megawatts-hora. Isso
também é um complicador no sistema. Então, será necessário operar mais
as termelétricas para poder fazer face a esse sistema. É claro, vai
aumentar um pouco a proporção de térmicas. Mas nada que faça o Brasil
deixar de ser o país com a maior participação de renováveis.
Ainda existe espaço para a construção de hidrelétricas com reservatórios?
Há alguns lugares, mas não são muitos. O rio Xingu é um exemplo.
Poderia fazer a montante (rio acima). Belo Monte passaria a ter água o
ano todo. Mas, pela decisão tomada pelo CNPE (Conselho Nacional de
Política Energética) não serão construídas usinas a montante no Xingu.
Tem outras áreas que poderiam ter reservatórios. Mas são poucas. Do
ponto de vista do setor elétrico, não tenho nenhuma dúvida de que
reservatório é importante, é a poupança do combustível, a água. Uma
usina hidrelétrica sem reservatório é quase uma eólica. Não chega a ser
igual, é um pouco melhor, porque é possível controlar mais do que a
eólica. Mas a hídrica sem reservatório, se tem menos água, gera menos.
Uma usina com reservatório é muito parecida com uma térmica. A diferença
é que o combustível é renovável e é praticamente de graça. Por outro
lado, há outra questão. O reservatório tem mais impacto. Então, o que é
um ganho do ponto de vista energético, para quem olha a questão
socioambiental é um desastre.
É uma decisão de governo não construir reservatório?
Não há nenhuma decisão nesse sentido. Hoje, tem se evidenciado uma
impossibilidade de construir de fato. Não temos conseguido licença,
mesmo para as usinas sem reservatório. Tem São Manoel, por exemplo, que
estamos lutando para conseguir licença. Não tem reservatório, não
impacta indígenas ou unidades de conservação, mesmo assim, está muito
difícil conseguir as licenças. O ótimo seria ter reservatório. Mas mesmo
sem reservatório, está difícil.
Lutar por reservatório é preciosismo?
Não. É importante apontar a perda que significa do ponto de vista
energético, ambiental e econômico. Não ter a água acumulada significa
ter que despachar mais térmicas, que geram emissões e custo. Só
substitui o impacto. Diminui o impacto local sobre a população onde
seria construída a hidrelétrica, mas cria outro onde é instalada a
térmica e há ainda a questão de mudanças climáticas. Ambas
(hidrelétricas e térmicas) têm impacto. É só não ter ilusão. A grande
falha é não raciocinar em termos de alternativas. Geralmente, a pessoa é
contra. Contra hidrelétrica, contra térmica. Mas é a favor do quê?
Dizem ser a favor de eólica e solar. Mas existe algum país abastecido
apenas com solar e eólica?
A proximidade das eleições atrapalha o licenciamento de hidrelétricas?
Qualquer questão polêmica em um ano eleitoral fica potencialmente
mais controversa, mais difícil. Debate, de qualquer jeito, vai haver. Se
esse debate vem junto com a politização, fica ainda mais sensível.
A ponto de atrapalhar o licenciamento?
Espero que não. O Brasil precisa dessas hidrelétricas. É claro que
não vamos poder usar todo nosso potencial. Algumas usinas têm impacto
muito grande. Mas, abrir mão dessa riqueza não é razoável. A
consequência é a queima de mais combustível fóssil, custoso do ponto de
vista econômico e ambiental. Acho que a gente tem ainda hidrelétricas
que trazem benefícios regionais. Temos que tentar fazer de uma maneira
que tenha a menor antropização (influência do homem sobre o ambiente)
possível, como é o caso de Tapajós e Jatobá.
As comunidades indígenas estão mais organizadas. Como lidar com isso?
A questão indígena passa por outras variáveis, por outro tipo de
diálogo, diferente do que estamos acostumados a ter. Com o Ibama
(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis) melhorou
enormemente o relacionamento. Grande parte dos conflitos e impedimentos
está na questão indígena. Tem desde a questão legítima de lidar com
visões diferentes de mundo, até questões menos legítimas, como a questão
de garimpo, de mineração, de interesses econômicos. Tem que saber lidar
com as duas.
Há soluções internacionais, como a canadense (que transforma a
população local em sócia do projeto). É possível replicar no Brasil?Não
exatamente o modelo canadense. Eu tinha feito uma proposta na reunião
do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), depois levada à
presidenta, que se inspira no modelo canadense. A proposta era trazer um
benefício direto para a comunidade afetada. Os índios poderiam tomar a
decisão de uso do recurso. Algo tripartite, envolvendo a Funai, o setor
elétrico e a comunidade indígena. Acabou não evoluindo.
Mas quando você propõe alternativa de compensação aos índios é como se dissesse que o modelo atual não é o melhor ...O
modelo atual analisa e discute com os índios. Claro, isso vai
continuar, mas ali você vai ter um patamar definido para os índios. É
algo a mais que poderia ser feito. Acho que não invalida tudo o que é
feito hoje, mas é um algo a mais.
O que Belo Monte traz de experiência para Tapajós?Belo
Monte e Tapajós são projetos diferentes. No primeiro, a meta era trazer
desenvolvimento regional. Em Tapajós, é preservar. Não que em Belo
Monte a meta seja desenvolver sem preservar. O projeto nos ensinou como
conversar com a população. Acho que hoje, quem é contra a
hidreletricidade é contra em qualquer situação. É ideológico.
O modelo proposto para o pré-sal parece privilegiar a
produção escalonada. Há alguma orientação para evitar a exaustão das
reservas rapidamente?
A discussão maior é sobre o ritmo para a exploração do petróleo no
Brasil. Primeiro, tem a questão do esgotamento do recurso no mundo. Se
você acredita que o recurso vai se esgotar, o melhor é não usar tudo
rapidamente e guardar, porque depois vai valer mais. Se acredita que tem
muito petróleo, que tem fontes alternativas que vão postergar o seu
fim, deve tentar monetizar logo, porque depois pode não valer nada. Mas
no que diz respeito ao petróleo, o principal é saber usar a renda desse
produto. Países produtores de petróleo não são necessariamente países
desenvolvidos. Na verdade, é até o contrário, são grandes os exemplos de
falta de desenvolvimento. Já tivemos experiências de como esse modelo
primário exportador é complicado: o ciclo do ouro, o ciclo da borracha, o
ciclo do café... Acho, inclusive, que o Brasil deu sorte ao descobrir o
petróleo agora. Temos uma base industrial, temos universidade, temos
centro de pesquisa, temos um sistema político estabelecido que respeita
contratos, que é democrático, que tem a vigilância popular. Isso garante
um uso melhor dos recursos. O petróleo é um recurso finito. Então, há
uma questão de justiça intergeracional. Se a nossa geração vai usar esse
petróleo, temos que deixar algo para as gerações futuras. Se usarmos
apenas em consumo, não deixamos nada. Por isso, acho que é importante
essa discussão sobre o que fazer com os recursos.
Isso é uma defesa da destinação dos recursos dos royalties para a educação?
Eu sou totalmente favorável.
Com a destinação de 100% dos recursos?
Sim, 100%. Mas o importante é como o modelo foi concebido. O dinheiro
tanto da partilha como dos royalties da União vai para um fundo que
investe em atividades produtivas, seja no exterior, seja no Brasil, com
um conselho que analisa a rentabilidade. Com o lucro dessas atividades,
tem o fundo social. O recurso do fundo social é que vai para a educação.
Mas não foi o que passou no Senado, que quer destinar toda a receita da União...É.
Eu acho complicado isso. É a questão da galinha dos ovos de ouro. Estão
comendo a galinha. Do jeito que propusemos, usa o rendimento para o
investimento em educação. Agora, se pega o principal, vai acabar com o
fundo em algum momento e não necessariamente da forma mais eficaz. Ao
botar o principal e mais o fundo social, despeja-se uma montanha enorme
de dinheiro de uma vez na educação. Talvez, isso não seja bem aplicado.
Sou a favor de 100% do rendimento do fundo para a educação, mas não do
principal.
O Brasil, com o etanol, estava na vanguarda no
uso de combustíveis renováveis. Mas, nos últimos anos, houve uma
reviravolta, o consumo de etanol hoje é marginal e passamos a importar
gasolina. O que deu errado?
São vários fatores.
Primeiro, o etanol sofreu impacto muito grande com a crise econômica,
que pegou os usineiros endividados. Eles deixaram de fazer investimentos
em modernização dos canaviais, a produtividade despencou. Além disso,
tivemos três anos seguidos de problemas climáticos. E teve ainda um
processo acelerado de mecanização, sem que as plantações tivessem sido
preparadas para isso. Por outro lado, teve a questão do boom de compra
de automóveis. Claro que teve incentivos para isso, mas um fator
fundamental foi o aumento da renda e o baixo nível de desemprego.
Aumentou enormemente o número de automóveis e teve um impacto na
produção de etanol.
O buraco teve que ser coberto pela gasolina, que
passou a ser importada. Outro argumento é a questão do preço da
gasolina, que reduziria a competitividade do etanol. Em parte é
verdadeiro, em parte, falso. Claro, se o preço da gasolina fosse mais
alto, daria mais competitividade ao etanol. Mas todas as projeções
indicam que o preço do petróleo deve cair. Então acho que se o etanol,
para ser competitivo, precisa ter um petróleo a mais de US$ 100, não vai
ser sustentável, porque esse preço não vai durar. O etanol precisa se
sustentar com um petróleo mais baixo. Acho que é necessária uma certa
revolução para melhorar a produtividade e a competitividade do etanol. O
governo tomou algumas medidas com relação a estoques, financiamento
para inovação, mecanização. Agora, vamos ver se há uma reação.
Vocês acreditam em reversão desse quadro?
A gente aposta no etanol. É fundamental para o Brasil. Acho que
nenhum governo vai deixar o etanol. É um segmento importante, uma
conquista do país.
O sr. prevê queda da participação da Eletrobras nos leilões, por conta da redução da receita?
Na transmissão já caiu um pouco. Não posso falar pelo grupo, mas acho
que, na geração, a Eletrobras vai continuar a investir em
hidrelétricas. Nas outras fontes, vejo uma participação, ainda que
menor, em eólica. Mas não acredito que investirá em térmica nem em
biomassa.
Acha que a empresa terá fôlego para investir?
Sim, ela precisa de investimento para aumentar seu caixa (que teve
uma redução de R$ 9 bilhões após a renovação das concessões). É uma
necessidade, tem que recompor seu portfólio em termos de receita.
Há espaço para nova queda nas tarifas de energia, ou chegamos ao limite?
Acho
que está perto do limite. A única coisa que poderia fazer os preços
caírem seria o ICMS. É o único elemento que não foi mexida e é um
componente grande. Mas é difícil imaginar os estados abrindo mão de
ICMS. Já perderam receita com a queda da base de arrecadação. O que pode
acontecer é, quando novas concessões vencerem, haver uma pequena queda.
Mas é marginal. O principal já foi.
O que aconteceu com os dois lotes que não foram arrematados no último leilão de linhas de transmissão?
No caso da linha do Acre, é problema ambiental e o pessoal achou
muito arriscado. No Maranhão, não sei exatamente o que foi. Eu acho que
tem algumas coisas que têm que ser precificadas. Por exemplo, áreas em
que é difícil passar com a linha devido a questões fundiárias. A questão
de meio ambiente tem que ser precificada; no final das contas, é preço.
O investidor acha que é muito arriscado, precifica aquilo e diz: "Com
esse preço, eu não vou".
Pode ter um movimento de revisão de preços, como está acontecendo com outras concessões?Há
linhas importantes para o país que não foram arrematadas em leilões, em
alguns casos por problemas fundiários, porque os proprietários pedem
valores astronômicos para passar. Mas é tão importante que é preciso
pensar em condições mais favoráveis para o investidor.
Qual a alternativa? Rever os preços?
Eventualmente, sim.
Nesse ponto, a Eletrobras faz diferença, porque pegaria a obra independentemente do risco...
É,
mas isso cria distorções. Ao jogar na empresa estatal todos os custos,
cria-se outro tipo de problema. Prefiro que a Eletrobras vá buscar o seu
lucro, concorra com o capital privado em pé de igualdade. E que se
reavalie o preço da concessão. Que seja adequado àquele projeto, que
seja atrativo.
Você planeja o consumo de energia da sua casa?
Não... (risos)
Sabe quanto paga de luz?Tenho uma ideia...
Toda vez que saio na rua ou quando tem algum problema de energia, o
pessoal diz: "Fala com o Maurício". Mas eu não trabalho na Light, nem na
Ampla... (risos)
A eficiência energética não deveria ser mais incentivada?A
eficiência é importante e acho que podemos fazer mais. Mas não devemos
superestimar. Pode-se fazer mais, mas teremos que continuar ampliando a
oferta. Sou contra aquele discurso de que, se tivesse mais eficiência,
poderíamos abrir mão de Belo Monte. Não é verdade. É necessário, a gente
pode fazer mais, mas não existe milagre.
Mas deveria haver mais incentivo à geração descentralizada ou à redução do uso do chuveiro elétrico, por exemplo?
O chuveiro elétrico é o grande terror do setor elétrico. Todo mundo
chega a mesma hora em casa, acende a luz e vai tomar um banho. A
alternativa imediata é o gás, mas poucas cidades têm canalização. Solar é
mais difícil. É claro que é interessante, mas quais são os prédios que
têm condição de colocar? A gente fez uma coisa importante, que foi
colocar coletor solar em todas as casas do Minha Casa Minha Vida. Minha
proposta era para o Sudeste, porque no Nordeste as pessoas não usam água
quente. Mas levei uma bronca, porque tem a questão social. Hoje todas
as casas do Minha Casa Minha Vida têm coletor solar.
É possível incentivar a eficiência na indústria ou ela já está em um patamar elevado?
A indústria eletrointensiva tem equipes para fazer isso, porque
energia pesa muito nos custos. O problema são pequenas e médias
empresas. E as residências. Nossa classe média desperdiça muito. Mas não
podemos generalizar, porque a média do consumo per capita é muito
baixa, o que significa que tem uma grande parte da população que consome
muito pouco. E que vai naturalmente aumentar o seu consumo. O fato de
termos espaço para melhorar a eficiência na classe média não significa
que não vai precisar ampliar a oferta. Tem mais gente querendo consumir e
isso é legítimo. Não é verdade que, se tiver eficiência e botar eólica e
solar, não precisa mais construir hidrelétrica ou termelétrica. E não é
só no Brasil, é no mundo inteiro. Nesse sentido, entra a questão da
hidreletricidade. Entre botar térmica e hidrelétrica, prefiro uma
hidrelétrica. Agora, se não dá para botar, tem que complementar com
térmica. Não pode é deixar sem fornecimento.