Como o nome da coluna é Senso Incomum,
hoje o assunto é não-jurídico, embora metaforicamente tudo se encaixe.
Então, vamos lá. Trata-se do simbólico. Isso que vou contar simboliza o
mal estar da civilização pindoramense.
Então, mãos à obra. Li no ano passado o livro de Alan Riding, Paris, a Festa Continuou,
que trata da vida cultural de Paris durante a ocupação nazista. Há uma
bela passagem, que fala de uma canção popular do ano de 1936,
interpretada por Ray Ventura, chamada Tout va très bien, Madame La Marquise (“tudo vai bem, Madame La Marquise”).
A
canção denunciava o que a França fingia não ver: o cataclismo que se
aproximava. Na canção, os empregados de uma aristocrata continuavam a
assegurar-lhe de que tudo estava bem, embora um incêndio tenha tomado
conta de seu castelo, destruindo os estábulos e matando a sua égua
favorita.
Além disso, o marido de Madame cometera suicídio, mas, ainda
assim, não havia com que se preocupar, porque, afinal, “tout va très bien, Madame La Marquise”.
Já
havia feito esta paródia para criticar o mundo jurídico. Agora o faço
com a maior empresa de Pindorama, a Petrobras. Além do livro Paris, A Festa Continuou, há também o filme italiano Stanno tutti bene (1990),
com Marcelo Mastroianni (os filhos estavam todos “bem”: por exemplo, o
que era maestro, na verdade apenas tocava um tambor!).
O que quero
dizer? Simples. Penso que é possível fazer uma alegoria da canção e da
situação nela apresentada com a situação da “Madame Petrobras”. Tout va très bien, Madame Petrobras.
O governo vai mal, a economia vai mal, o ensino jurídico vai mal, Elvis
morreu, Deus morreu... (eu mesmo não estou me sentindo muito bem) e o
novo ministro da ciência e tecnologia foi acusado por um doleiro de ser
um pau mandado de Eduardo Cunha... Vamos ganhar um Nobel de Ciência e
Tecnologia.
Sigo. Madame La Marquise Petrobras compra uma
usina que representou o segundo pior negócio já feito no mundo. O
primeiro tinha sido feito na pré-história, quando houve a troca de um
barril de óleo de mamute por um cacho de banana nanica. Mas Madame Pê
(vejam a minha intimidade) continua afirmando que tudo vai bem, que vai
passar... Bom, o cavalo já morreu. E o castelo está em chamas. Mas Madame Pê não toma providências. Parte dos cavalariços e nobres do Castelo estão presos.
Quer dizer... Madame Pê toma, sim, providência. Segundo o jornal Folha de S.Paulo,
em 2009 a Petrobras já tinha 650 advogados próprios. Pelo edital do
último concurso (28/5/2015), um advogado júnior entra ganhando R$ 8,8
mil nessa empresa. Há edital para concurso de mais de 150 novos
causídicos. Considerando vantagens e tudo, vai pra quanto? Fazendo uma
média salarial por baixo, bem por baixo, a folha anual, sem encargos,
passa de R$ 120 milhões. Mas tem mais: Para se ter uma ideia, no RESP
735.698 o STJ reduziu os honorários dos advogados de Madame de R$ 300 milhões para R$ 1 milhão, o que quer dizer — sem entrar no mérito da decisão — que os advogados de Madame Pê
recebem (também) honorários. Bom para eles. Gosto que todo mundo se dê
bem na vida. Entretanto, mesmo com tudo isso — com um quadro de
causídicos excelência e bem pago — Madame gastou mais R$ 180 milhões entre 1998 e 2009 na contratação de escritórios de advocacia ad hoc.
E sem licitação. E gastou lá seus R$ 3,5 milhões patrocinando eventos
de advogados, juízes e promotores... Mais R$ 1 milhão em festas juninas
na Bahia em apenas uma ano...
E agora a grande notícia:
Madame Pê vai gastar mais de R$ 200 milhões em contratação de escritórios de advocacia, para, segundo o mesmo jornal (
ler aqui), investigar e cuidar para que a
Madame
não cometa novos erros e não mais permita novas falcatruas como as que
estão escancaradas na operação "lava jato". Bingo. A contratação foi sem
licitação. Em um país com um milhão de advogados, de fato não é
necessário licitação.... (o estagiário levanta a placa, dizendo
“ironia”!) Afinal,
Madame La Marquise Pê é uma empresa privada (outra placa levantada pelo estagiário que sonha em ser contratado por
Madame!).
Pelo menos foi tratada até hoje como se fosse, nesses últimos anos, de
algumas pessoas. Ah, como Sérgio Buarque de Hollanda tinha razão, quando
disse que no Brasil fizemos a opção errada, ao ficarmos do lado de
Antígona e desprezarmos Creonte (
ler aqui).
Bom, parece que tudo vai bem com Bardahl (lembram da
propaganda?)
O futuro de Madame Pê ou quando a ré não se ajuda
O que me intriga? Com mais de um meio milhar de causídicos, como isso
tudo acontece(u)? E como esses causídicos se comportam em relação a essa
exogenia advocatícia? Eles concordam? A sociedade quer saber. Quer
dizer, pelo menos eu quero saber. Esta coluna Senso Incomum quer saber. E acho que Marcos Pintar, Sergio Niemeyer e tantos outros comentaristas aqui da ConJur,
sempre fiéis escudeiros, também estão curiosos. Aliás, falo sem
procuração dos advogados-leitores-comentaristas, mas como já me afeiçoei
a eles na coluna das quintas-feiras, permito-me falar por eles e dizer
que eles, eu e tantos outros advogados gostaríamos de colaborar com
Madame, pois não?
Pindorama é um país curioso. No meio da maior
crise de Madame (diretores que afundaram os dois pés na jaca, dinheiro a
rodo na Suíça, eteceterá), ela resolve gastar uma fortuna
exatamente naquilo que seus quadros jurídicos deveriam ter evitado. Bom,
alguém dirá: porta arrombada, tranca de ferro... A moda agora é uma
coisa chamada compliance. OK. Não vou discutir a necessidade disso.
Afinal,
compliance é uma coisa complexa, certo? Quem não tem ou não faz
compliance está
out, certo? Pra que discutir com a
Madame (lembrando João Gilberto -
ouvir aqui)?
Talvez essa seja a explicação para a cara contratação de escritórios
famosos. Bom para eles. De todo modo, um milhão de advogados de
Pindorama nem sabe o que significa esse ervanário. Num país em que a
renda média de um causídico oscila entre R$ 3 mil e R$ 10 mil, esses
valores são de filme. Mas para
Madame Pê, o que são R$ 200 milhões? Para termos uma ideia do volume com que
Madame Pê lida, R$ 100 milhões só um diretor devolveu fruto de corrupção, portanto, um pingo d’água no meio do oceano de
Madame. Enfim, que bobagem a minha. Não devemos nos preocupar:
Tout va trés bien, Madame La Marquise.
A outra Madame, a presidente de la Republique, já disse uma frase célebre: Même les vaches viennent à la maison
(nem que a vaca tussa). É: tudo vai bem... afinal, quem quer morrer por
Danzig?, perguntava o jornalista Marcel Déat, no artigo intitulado To die for Danzig (Morrer por Danzig), publicado em L’Oeuvre em maio de 1939. Bobagem minha falar da Petrobras. Como no tal artigo de 1939 — retratado no livro Paris — a festa continua,
objeto desta paródia epistêmica —, em que se dizia “começar uma guerra
na Europa por causa de Danzig seria um certo exagero” e que “não
morreremos por Danzig”, alguém me censurará e dirá: quem quer se
preocupar com esse tipo de assunto? Quem quer morrer por Madame? Começar uma guerra por causa de Madame?
Esqueçam(os). Foi apenas uma coluna de quem não tem mais o que dizer
acerca do que acontece no castelo de Madame (ou nos castelos das duas
Madames, se me entendem).
Afinal, tudo vai trés bien.
Post scriptum 1. Mas que o novo ministro da Ciência e Tecnologia me lembra o cara do tambor do
filme Stanno tutti bene, ah, isso lembra. Isso não me sai da cabeça.
Post scriptum 2: Não é por mim. Mas os leitores da coluna e da
ConJur
não acham que o Poder Judiciário e o Ministério Público do Rio de
Janeiro estão devendo uma explicação acerca do episódio da busca do
Habeas Corpus
falado aqui na semana passada? Será que também
tout vas très bien? Ou as atitudes das doutoras juíza e promotora são consideradas normais?