Mesmo sofrendo o impacto da turbulência política e da crise econômica nos últimos anos, cooperativas se fortaleceram
Por Marcos Graciani
graciani@amanha.com.br
Verdadeiros motores do setor
primário, as cooperativas foram as principais impulsionadoras da
economia no duro período recessivo que se desencadeou a partir de 2015.
No quadriênio 2014-2017, por exemplo, o cooperativismo catarinense
avançou 36,5%, o equivalente a mais de 9% ao ano. O mesmo fenômeno se
repete em toda a região Sul. “Não há empreendimento do mundo com tanta
resiliência quanto o cooperativismo”, garante Vergílio Perius,
presidente do Sistema Ocergs/Sescoop, que reúne as cooperativas
agropecuárias do Rio Grande do Sul. Perius se apoia em um número
robusto. O cooperativismo gaúcho obteve um crescimento de receita que
chegou a 38% nos últimos três anos. Se esse desempenho foi possível em
meio à crise, cabe especular até onde essa expansão teria chegado se
nesse período o país tivesse vivido um movimento de normalidade no
comportamento da economia.
O
que faz as cooperativas resistentes diante de cenários tão
desanimadores, como o que impôs pesados prejuízos à indústria e
estagnação de vendas ao comércio? Uma das respostas pode estar na
configuração legal do sistema, acredita Claudio Post, presidente da
Federação das Cooperativas Agropecuárias de Santa Catarina
(Fecoagro-SC). “Um dos princípios que conferem perenidade mesmo em
tempos difíceis é o uso de fundos compostos pelas sobras [como se chama o lucro distribuído entre os associados ao final de cada ano fiscal] das nossas operações”, afiança.
Com
essa filosofia, as cooperativas conseguiram, nos últimos anos,
aproveitar os bons momentos para planejar e investir – especialmente em
projetos que permitem adicionar valor à produção e libertar as
organizações do mero papel de produtoras de commodities. Hoje, quase
metade (48%) da receita das cooperativas agropecuárias advém da
industrialização, o que dá a elas musculatura e flexibilidade para
ultrapassar tempos bicudos. “Os cooperados precisam ter boas opções de
renda e acesso aos mercados. As cooperativas buscaram isso com projetos
de diversificação da produção e com a agroindustrialização. Em síntese, a
opção do cooperativismo é pelo desenvolvimento”, sentencia José Roberto
Ricken, presidente do Sistema Ocepar, que congrega as cooperativas do
Paraná.
Exemplo notório
dessa postura é a transformação da soja e do milho em carnes e leite. A
C.Vale (foto), de Palotina (PR), é apenas um case que demonstra como
essa estratégia transformou o cooperativismo. Apostando as fichas na
indústria, desde 1995, a cooperativa viu o faturamento saltar de R$ 128
milhões, duas décadas atrás, para R$ 6,9 bilhões no ano passado. O
investimento também foi o principal responsável pela grande oferta de
novos postos de trabalho: a C.Vale tinha 540 funcionários em meados dos
anos 1990 e agora são 9 mil. “A rentabilidade melhorou, as receitas
cresceram de maneira sustentável e reduzimos nossa exposição ao risco
climático. Isso nos deu maior previsibilidade, o que é fundamental para
quem quer investir”, analisa Alfredo Lang, presidente da C.Vale.
E
como o plano da C.Vale se revelou vitorioso, a fórmula será aplicada na
abertura de novas frentes. Recentemente, a cooperativa inaugurou um
frigorífico para peixes, com investimento de R$ 110 milhões. A planta
tem capacidade de abate de 150 mil tilápias, mas a produção pode ser
ampliada para 600 mil peixes. A C.Vale estima que a industrialização
responderá por metade do faturamento no longo prazo. Hoje, ela se
encontra na faixa de 25%. A cooperativa também ambiciona fortalecer sua
posição no Rio Grande do Sul. A C.Vale começou a operar com os gaúchos
em 2015 e acredita que há espaços para incrementar os negócios,
principalmente para expandir o recebimento de grãos e comercializar
máquinas e implementos.
O
desejo da C.Vale revela a necessidade da chamada intercooperação,
movimento que representará um novo ganho de competitividade para o
sistema cooperativista. Trata-se de um planejamento de negócios feito em
conjunto por duas ou mais cooperativas. Em novembro de 2017, três das
maiores cooperativas paranaenses anunciaram a união de suas marcas.
Frísia, Castrolanda e Capal, de Castro, lançaram a marca Unium. A nova
grife, resultado da fusão das palavras “união” e “um”, substituiu os
selos das cooperativas em produtos como carnes, leite e farinha de
trigo.
A marca Unium é
resultado de um modelo de negócios que concilia os interesses de
diferentes cooperativas, embora elas sigam gestões independentes e
continuem com cooperados próprios. “É o que chamamos de intercooperação.
Estávamos buscando uma identidade para nossas marcas, que já trabalham e
têm desenvolvimento conjunto”, revela o presidente da Castrolanda,
Frans Borg. “A Unium surgiu da necessidade de dar empoderamento às
cooperativas. E permite irmos para o mercado de forma conjunta”,
complementa Renato Greidanus, que preside a Frísia. Apesar de não haver
uma sede administrativa própria, os diretores não descartam uma futura
fusão completa de suas grifes. Cada cooperativa tem uma participação nas
diversas divisões da empresa, compartilhando algumas marcas no mercado.
No segmento de lácteos, a atuação é com os produtos Colaso, Colônia
Holandesa e Naturalle. Juntas, as três cooperativas somam R$ 7 bilhões
de faturamento anual.
Coincidentemente,
a espinha dorsal do Plano Paraná Cooperativo 100 (PRC 100) – que tem a
meta de fazer com que o faturamento das cooperativas do Estado chegue a
R$ 100 bilhões em 2021 – é justamente a cooperação. O Comitê Parcerias e
Alianças do PRC 100 reúne representantes de cooperativas de vários
ramos que buscam ampliar as possibilidades de intercooperação. “As
alianças entre cooperativas no Sul podem ser intensificadas, mas é
preciso encontrar o modelo adequado para cada caso específico de
intercooperação, respeitando a cultura, a autonomia e a identidade das
parceiras”, avalia Ricken, da Ocepar.
A
cultura disseminada pela entidade ganha adeptos em toda a região. A
Santa Clara, de Carlos Barbosa (RS), costuma fazer trabalhos de operação
integrada com outras cooperativas. A Cotrisoja, de Tapera (RS), por
exemplo, produz ração para a Santa Clara, que paga uma taxa pela
industrialização do grão. A CCGL, de Encantado, fabrica leite em pó em
troca de leite UHT da Santa Clara, o que faz com que os custos
logísticos com matéria-prima diminuam. Agora, a Santa Clara está focada
na construção da sua nova unidade de achocolatado que será sediada em
Casca (RS), investimento de R$ 115 milhões que deve entrar em operação
até dezembro. A cooperativa que faturou R$ 1,1 bilhão e distribuiu R$ 9
milhões aos seus mais de 5,5 mil associados no ano passado é dona de
lojas e supermercados e tem se adaptado ao momento de baixa do varejo.
“Notamos que até maio os preços estiveram 8% inferiores aos que eram
praticados em igual período de 2017. O ramo de alimentos está vendendo
mais itens de menor valor, mas o mercado é soberano”, conforma-se
Alexandre Guerra, diretor administrativo e financeiro da Santa Clara.
Adaptar-se
às circunstâncias e manejar com destreza as ferramentas de negociação
com fornecedores e clientes é a especialidade das cooperativas de
excelência, caso da paranaense Coamo. José Aroldo Gallassini, que
preside há 43 anos a maior cooperativa da América Latina, costuma
utilizar a metáfora da toalha molhada. “Em um negócio, não queremos
simplesmente comprar e vender, mas comprar e vender bem. Então, os
negociantes da Coamo têm de tirar o máximo. É como se fosse uma toalha
molhada: você vai torcendo, torcendo, até a última gota. Nós queremos a
última gota. Nesse sentido, falamos para negociar bem. Se o cooperado
fixou R$ 100, vendemos a alguém que paga o máximo possível, a última
gota, R$ 105, R$ 107”, exemplifica.
Fica
no passado a noção de que cooperativas dispensam instrumentos de gestão
profissional ou relativizam sua importância. No Sul e em outras regiões
em que o cooperativismo se desenvolveu com ímpeto, exporta-se
conhecimento. O “Encadeamento Produtivo Cooperativa Central Aurora
Alimentos – Sebrae/SC: suínos, aves e leite”, por exemplo, surgiu em
Santa Catarina e transformou-se em um programa nacional desde junho de
2018. Agora, também contempla o Paraná, o Rio Grande do Sul e o Mato
Grosso do Sul. O Encadeamento Produtivo do agronegócio tem o objetivo de
contribuir para a melhoria dos índices de produtividade e
competitividade, promovendo a inserção de pequenos negócios em cadeias
de valor de grandes empresas por meio de relacionamentos cooperativos.
“A expectativa é muito grande com a nacionalização desse projeto no qual
a propriedade rural é vista como uma empresa, levando aos empresários
técnicas de gestão, inteligência em negócios e trabalho em rede, tendo
em vista a melhoria do desempenho em toda a cadeia”, observa Renato
Perlingeiro Salles Junior, coordenador do Programa Nacional de
Encadeamento Produtivo do Sebrae Nacional.
Entre
os resultados do programa está o fornecimento de produtos com maior
qualidade ao consumidor final. Para 48% dos produtores rurais e das
empresas encadeadas, houve aumento de receitas. O vice-presidente Neivor
Canton lembra que as duas décadas do relacionamento entre a Aurora e o
Sebrae foram essenciais para manter produtivas e competitivas as
famílias rurais que formam a base produtiva da Cooperativa Central,
sediada em Chapecó. “Graças a isso nos mantivemos no mercado nacional e
internacional”, reconhece, ao anotar que as regiões onde atua a Aurora
concentram a maior densidade populacional rural do Brasil.
Barreiras
Ainda
que tenham muito a comemorar, especialistas acreditam que o
cooperativismo pode dar um passo à frente colocando em prática o
gerenciamento de riscos, conceito que tem começado a ganhar corpo no
Brasil, recentemente. “As cooperativas podem se antecipar a riscos como
clima ou falta de mão de obra qualificada no campo, por exemplo. Há um
movimento no Sul nesse sentido por meio das OCEs (Ocepar, Ocesc e
Ocergs), que dialogam entre si e trabalham um ambiente propício para
essas melhores práticas”, conta Adriano Machado, sócio da PwC Brasil e
especialista em agronegócio.
Na
visão de quem acompanha o setor há muito tempo, o cooperativismo
nacional tem, ainda, algumas barreiras a vencer – a principal delas de
natureza cultural, ligada ao modo como o sistema se vê e é visto pelos
brasileiros. A desinformação sobre o que é e como atua uma cooperativa
ainda preocupa o Sistema OCB, que lançou em novembro de 2017 o movimento
SomosCoop – uma campanha nacional de valorização das cooperativas
brasileiras, de seus cooperados e empregados. A campanha tem divulgado
uma webserie sobre como as cooperativas colaboram com o desenvolvimento
das comunidades onde estão instaladas. As cooperativas também enviam
sugestões de histórias, cases, palestras e iniciativas capazes de
promover a valorização e o pleno reconhecimento do cooperativismo no
Brasil. O Paraná foi o primeiro Estado do país a aderir ao movimento
SomosCoop, ainda em dezembro.
Para
o presidente da OCB, Márcio Lopes de Freitas, a campanha veio para
ficar. “Precisamos difundir melhor o modelo e mostrar a dignidade que é
ser cooperativista no país para que todos percebam isso. Até mesmo os
cooperados às vezes deixam de valorizar”, reconhece. Para ele, será
preciso ao menos uma década para fazer com que o cooperativismo seja
mais bem reconhecido pelos brasileiros. “No país, existe uma barreira
para perceber o associativismo como uma grande ideia. É que dificilmente
há disposição de abrir mão de um privilégio em nome do cooperativismo,
pois corporações e pessoas colocam seus interesses acima de tudo”,
evidencia Paulo Pires, presidente da Federação das Cooperativas
Agropecuárias do Estado do Rio Grande do Sul (Fecoagro-RS). Dilvo
Grolli, presidente da Coopavel, de Cascavel (PR), lembra ainda outra
virtude do sistema cooperativo: o seu papel social. “No Sul, 80% dos
associados são pequenos produtores. Com isso, o cooperativismo também
presta um serviço à sociedade”, ressalta Grolli. Somente no ano
passsado, a cooperativa do oeste paranaense distribuiu R$ 50 milhões em
sobras e antecipações e faturou R$ 2,1 bilhões.
Para
além do embate cultural, cujos resultados são lentos, existem
obstáculos mais tangíveis e emergenciais. O ramo agropecuário, que
representa 63% das receitas do cooperativismo, enfrenta dois problemas
crônicos: a escassez de insumos e as deficiências infraestruturais. Para
manter a imensa cadeia agroindustrial da avicultura, da suinocultura e
da bovinocultura de leite, Santa Catarina precisa importar todos os anos
entre 2,5 milhões e 3 milhões de toneladas de milho do Brasil Central
ou do exterior. Essa operação impacta a competitividade do produto
catarinense, afetando os criadores (na maioria, produtores integrados e
associados às cooperativas) e as agroindústrias. “Também é urgente
melhorar a logística de transporte com investimentos em rodovias,
ferrovias, portos, aeroportos e armazéns. O oeste catarinense, berço das
principais empresas e cooperativas, reivindica uma ferrovia
interestadual ligando Chapecó ao Centro-Oeste e uma ferrovia
intraestadual unindo o extremo-oeste ao litoral”, clama Luiz Vicente
Suzin, presidente da Organização das Cooperativas do Estado de Santa
Catarina (Ocesc).
No ramo
da saúde, há necessidade de linhas de crédito para que as cooperativas
de trabalho médico possam tomar financiamento para a construção de
hospitais e aquisição de equipamentos de tecnologia de ponta. É uma
situação análoga à de cooperativas do ramo de infraestrutura, que
precisam de aportes para o sistema de distribuição de energia elétrica e
internet. “Ao se dirigirem ao mercado financeiro, as cooperativas não
possuem taxas de juros diferenciadas para captação de crédito. Isso nos
leva a profissionalizar cada vez mais a gestão”, entende Jeferson
Smaniotto, presidente da cooperativa de laticínios Piá. A marca tem sede
em Nova Petrópolis (RS), a Capital Nacional do Cooperativismo, em
virtude de ser o berço do cooperativismo de crédito da América Latina.
Foi ali que surgiu, em 1902, a Caixa de Economias e Empréstimos Amstad
(atual Sicredi Pioneira RS), primeira cooperativa de crédito.
Na visão
de Smaniotto, um modo de enfrentar os grandes players é apostar em
agregação de valor dos produtos comercializados. Nos últimos sete anos, a
Piá investiu R$ 90 milhões na modernização de seus processos
produtivos. Com 75% do faturamento concentrado em solo gaúcho, a
cooperativa pretende expandir negócios na direção do Paraná, de Santa
Catarina e de São Paulo, que juntos respondem pelos 25% restantes.
Dentro de cinco anos, a Piá prevê dobrar essa fatia. Para alcançar o
objetivo, a média de crescimento das receitas deve se manter em torno de
8% a 10% ao ano. Em 2018, a previsão é de um faturamento de R$ 650
milhões, justamente 8% a mais do que no ano passado. Na base da
estratégia está a comercialização de itens com maior valor agregado,
receita seguida por um número cada vez maior de cooperativas. Somente
em junho de 2018, pelo menos dois produtos de cooperativas foram
anunciados no mercado. A Cotripal, de Panambi (RS), apresentou uma carne
de hambúrguer para sua linha Angus Supreme, já temperada e rica em
Ômega 3. E a Cotrirosa, de Santa Rosa (RS), passou a ter no seu mix uma
linha de feijão premium selecionado criteriosamente e com grãos nobres.
Ótima reputação
O
vice-presidente da Central Sicredi Sul/Sudeste, Márcio Port, gosta de
comparar o cooperativismo em geral com o modo com que opera a Lojas
Renner no mercado de capitais. A rede de lojas, como é sabido, foi a
primeira corporation brasileira. Isso significa que a empresa não
pertence a uma única pessoa, mas sim a muitas – espalhadas ao redor de
todo o mundo, inclusive. “Quando os correntistas são os próprios donos
do negócio, não existe caráter especulativo”, destaca o executivo. Essa é
apenas uma das razões para que os juros cobrados pelas cooperativas de
crédito sejam menores do que as taxas estipuladas pelos bancos
tradicionais. Do mesmo modo, o índice de inadimplência também é
proporcionalmente menor no sistema cooperativista.
Na visão de Port, o
Banco Central (BC) foi determinante para o desenvolvimento do
cooperativismo de crédito no país. Segundo ele, o Brasil tem a melhor
legislação para instituições financeiras cooperativas, e elas retribuem a
confiança. “Temos ótima reputação com o BC”, afirma Port. A autoridade
monetária tem se preocupado em colocar em pauta a agenda BC+, que busca,
entre outros objetivos, a desburocratização e a inclusão financeira.
Presente em muitos municípios pequenos, o Sicredi consegue ajudar o BC a
cumprir parte da tarefa. No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde dois
terços das cidades têm menos de 10 mil habitantes, há muitos lugares em
que 60% da população é sócia do Sicredi. “Pergunte a um morador de
localidades menores quanto a alta do dólar impacta a vida dele. Ele vai
responder que não, pois os efeitos demoram mais a chegar. Eles baixam a
cabeça, trabalham e fazem acontecer”, entusiasma-se Port.
Hoje,
Sicredi e Sicoob respondem juntos por 80% do cooperativismo de crédito
no Brasil. No que depender do Sicredi, essa fatia poderá crescer ainda
mais. Até 2019, o banco cooperativo – que já está presente em 21 Estados
– prepara uma grande expansão em Minas Gerais. O foco é mirar o
crescimento não apenas nas capitais, mas também em grandes cidades do
interior. “Muita gente liga o nome do Sicredi ao meio rural, mas nada
menos que 80% de nossos associados vivem no meio urbano”, revela Port.
Enfim, mais uma conquista do cooperativismo, que multiplica sua força –
até mesmo nas crises, ou quem sabe como a melhor resposta para elas.
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