Considerada
exemplo de gestão pública, empresa de saneamento de São Paulo agora
será comandada pela iniciativa privada. Berlim também privatizou o seu
saneamento nos anos 90, mas voltou atrás após pressão social.O
governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), acabou de
ganhar uma imagem forte para demonstrar nas eleições de 2026 o seu
compromisso com a redução da máquina pública: a privatização da Sabesp, a
companhia estadual de saneamento básico.
Os números são
superlativos. Com 28,4 milhões de clientes em 375 municípios, a Sabesp é
uma das maiores empresas do mundo do setor. A venda de 32,3% de suas
ações, liquidada nesta segunda-feira (22/07), arrecadou R$ 14,8 bilhões,
e a procura por ações foi superior à da privatização da Petrobras.
A
polêmica também foi grande. Parte da sociedade é contra a privatização
do serviço de água e esgoto, por entender que isso encareceria tarifas e
que o acesso deve ser garantido pelo estado. Outra parte entende que a
privatização pode ampliar os investimentos e a eficiência do setor,
ampliando a cobertura.
A privatização de estatais de saneamento
ganhou força com a aprovação, há quatro anos, do Marco do Saneamento,
que busca elevar investimentos privados no setor e definiu a meta de
levar água encanada a 99% da população e coleta de esgoto a 90% até
2033.
Um
dos argumentos a favor do marco é atrair recursos para construir redes
de esgoto nas regiões mais negligenciadas, que sofrem com as doenças
associadas à falta de saneamento básico.
Mas esse não é o caso da
Sabesp, o que fez da sua privatização um caso particular. A empresa tem
ações negociadas em bolsa desde 1997, e em 2023 registrou lucro líquido
de R$ 3,5 bilhões. Na sua área de cobertura, 98% da população tem
abastecimento de água e 93%, coleta de esgoto. E a companhia desfruta de
boa imagem entre os paulistas: uma pesquisa realizada em abril pela
Quaest apontou que 52% deles eram contra a privatização, e 36%, a favor.
Qual foi o modelo de privatização da Sabesp
Tarcísio
já havia comandado privatizações e concessões como ministro da
Infraestrutura de Jair Bolsonaro, e na campanha a governador de 2022
prometeu privatizar a Sabesp se fosse eleito. “É uma empresa arrumada,
mas empresa privada cobra tarifa mais barata de saneamento”, disse à
época. Um mês após assumir o Palácio dos Bandeirantes, iniciou os
estudos para a privatização, e em dezembro de 2023 a Assembleia
Legislativa aprovou o projeto de lei que autorizou o processo.
O
governo optou por não vender completamente a Sabesp, mas transmitir sua
gestão a uma acionista de referência, que terá 15% das ações, e
pulverizar outros 17,3% das ações no mercado. Com isso, o estado reduz
sua participação de 50,3% para 18%.
Não houve concorrência para
ser acionista de referência: apenas uma empresa manifestou interesse, a
Equador, que tem experiência consolidada no setor de distribuição de
energia. Ela pagou R$ 6,9 bilhões pelas ações, a um preço unitário de R$
67.
No modelo adotado, o mesmo valor por ação pago pelo acionista
de referência foi aplicado na venda pulverizada, que rendeu R$ 7,9
bilhões – a maior parte comprada por fundos nacionais e internacionais. O
valor de R$ 67 por ação foi 18,3% menor do que o preço das ações
negociadas em bolsa na última quinta-feira, quando foi confirmada a
venda pulverizada.
Ao defender a privatização, o governo paulista
ressaltou que ela prevê universalizar o saneamento até 2029, quatro anos
antes do prazo, além de investimentos de R$ 68 bilhões na rede. O
processo também destina 30% do valor líquido arrecadado com a
privatização a um fundo para obras de saneamento e subsídios tarifários.
Vale a pena passar o saneamento para a iniciativa privada?
O
dilema é antigo. Empresas privadas podem ter mais recursos para
investir e incentivos para ampliar a eficiência, mas o objetivo maior
sempre será o lucro. A depender das regras e da fiscalização do Estado,
isso pode significar melhorias, como no caso das telecomunicações, ou
levar a pioras e aumento dos preços.
Paulo Furquim de Azevedo,
professor e coordenador do Centro de Regulação e Democracia do Insper,
avalia à DW que o resultado final depende da estrutura regulatória. No
setor de saneamento, ele conduziu pesquisas que encontraram efeitos
positivos da atuação de empresas privadas, devido a investimentos novos e
à ampliação da rede de esgoto – hoje ausente em quase 40% dos
domicílios do Brasil.
Uma das pesquisas cruzou dados da concessão
privada do saneamento com a taxa de ocorrência de doenças relacionadas à
água, que em crianças de 1 a 5 anos costumam decorrer de falta de
saneamento. O estudo isolou o efeito de outros fatores, como a melhoria
da rede de saúde, e concluiu que a atuação privada no saneamento reduziu
a ocorrência dessas doenças, em especial em municípios pequenos. Outra
pesquisa concluiu que a rede de esgoto aumenta com a concessão à
iniciativa privada.
Já no caso da Sabesp, ele afirma não ver
condições para o mesmo impacto positivo, pois trata-se de um “exemplo de
empresa pública que já funcionava muito bem”.
“Não espero que a
privatização da Sabesp terá os efeitos que verificamos na média dos
municípios. Não significa que vai piorar. O ponto é que ela já tinha um
serviço de saneamento muito bom, então a oportunidade de ganho de uma
concessão privada já se esgotou”, diz. “A empresa pública já era capaz
de fazer investimentos e era bem gerida, com capacidade de fazer
captações de recursos.”
Em outra pesquisa sobre o setor, Azevedo
avaliou os incentivos políticos que levam governantes a decidirem
privatizar ou conceder as empresas de saneamento. Um deles, diz, é o
imenso volume de recursos que entra nos cofres públicos durante a
privatização ou concessão, que em sua maioria irrigam o cofre único do
estado.
No caso de São Paulo, ele aponta também o elemento
ideológico. “A plataforma que venceu a preferência da sociedade na
última eleição foi mais privatizante, voltada à redução do papel do
Estado, e isso se reflete na agenda do governo”, diz.
Críticas ao processo e receio de piora do serviço
A
privatização da Sabesp recebeu oposição de seus funcionários e de
algumas entidades civis e partidos. Francisca Adalgisa,
diretora-presidente da Associação dos Profissionais Universitários da
Sabesp e membra do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao
Saneamento (Ondas), afirma à DW que não havia “nenhuma justificativa”
para a mudança de controle acionário.
Ela cita que a empresa é
lucrativa e já cumpriu as metas de universalização em mais de 300
municípios. Os locais ainda não atendidos, diz, são aqueles com mais
dificuldade de acesso, mas ela projeta que no ritmo atual de
investimento a universalização seria alcançada em 2033 “sem afogadilho”.
Para
Adalgisa, a meta de universalizar o atendimento até 2029, citada pelo
governo Tarcísio, é uma “promessa falsa”, pois não haveria projetos nem
empresas de engenharia disponíveis capazes de concluir essas obras no
prazo. Ela prevê queda de qualidade no atendimento, como resultado da
provável terceirização de atividades que virá na gestão privada. “Demora
para você treinar um funcionário para fazer um bom trabalho, há um
turnover [rotatividade de pessoal] muito alto se você terceiriza, os
salários são muito baixos”, diz.
Ela também critica o processo de
privatização, que resultou em apenas uma proposta de acionista de
referência, e que segundo ela foi conduzido de forma acelerada e
direcionada. “O governo correu com a teoria do fato consumado. Quando
cair a ficha na população, o acionista já botou a pessoa na cadeira”,
diz. A Ondas e o PT moveram ações na Justiça para tentar barrar o
processo, sem sucesso. Na sexta-feira, o ministro Luis Roberto Barroso,
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), negou uma liminar a
respeito.
Em Berlim, privatização e reestatização
Em algumas
cidades do mundo, a experiência de privatizar o serviço de saneamento
deixou a população insatisfeita. Segundo uma pesquisa do Transational
Institute, 364 delas decidiram reverter privatizações de saneamento
desde a virada do século – entre eles, Paris e Berlim.
Na capital
alemã, a empresa de água e esgoto – Berliner Wasserbetriebe (BWB) – foi
parcialmente privatizada em 1999. O governo vendeu 49,9% de suas ações a
duas gigantes do setor, a alemã RWE e a francesa Vivendi, que assumiram
a gestão. Treze anos depois, após pressão social, o poder público
comprou de volta as ações.
À frente da mobilização civil estava a
organização Berliner Wassertisch, que organizou um referendo em 2011 – o
primeiro da história da cidade – no qual a maioria dos votantes optou
para que os contratos da privatização, então secretos, fossem tornados
públicos.
Karl Goebler, membro da Berliner Wassertisch e
cofundador do Berliner Wasserrat, relata à DW que a decisão pela
parceria público-privada no saneamento ocorreu em um momento de crise
fiscal do governo, que buscava recursos extras, e de entusiasmo mundial
com as políticas neoliberais, que valorizam a privatização e a
desregulação.
Os berlinenses, porém, desaprovaram a experiência.
Goebler relata que a tarifa subiu 37% durante o período da privatização,
“fazendo com que o preço da água em Berlim fosse o maior entre as
cidades alemãs”. Ele cita também que os contratos secretos semearam
desconfiança na população e que, uma vez tornado públicos, mostraram que
garantiam lucro mínimo de 8% para os investidores privados – coberto
pelo governo se não fosse obtido por meio das tarifas.
Em 2012, o
governo comprou de volta as ações da RWE e em 2013, as da Vivendi. Com a
reestatização, diz Goebler, “os preços se estabilizaram e em alguns
casos, caíram”. “O controle público levou a maior transparência e
abriu-se espaço para investimentos mais de longo termo.”
Por outro
lado, ele cita que a recompra das ações representou um gasto
significativo para o governo, que teve de fazer empréstimos para isso, e
que a transição da gestão privada para a pública trouxe “desafios
burocráticos” para reconverter a estrutura corporativa de volta para o
regime estatal.