Tema
de grande relevância no mundo empresarial é a possibilidade de
contratação e de indexação em moeda estrangeira nos negócios jurídicos
que prevejam obrigações a serem executadas no território nacional.
O
Brasil — nação historicamente protecionista — vem há muitos anos
editando normas que limitam a liberdade de as partes contratarem em
moeda estrangeira, atribuindo consequências de suma gravidade, como a
nulidade contratual das avenças que contrariem essas restrições.
Ocorre
que grande parte dessas normas não atentou à devida clareza legislativa
que o cotidiano empresarial necessita, principalmente, com a
intensificação dos negócios internacionais. Como resultado, trouxeram
instabilidade jurídica aos nacionais e estrangeiros que tenham celebrado
contratos contemplando obrigações a serem executadas no território
nacional. Desta forma, muitas demandas foram levadas ao Judiciário, que
tardou em definir um posicionamento sobre esta matéria, como se denota
da análise histórica de reiteradas decisões do Superior Tribunal de
Justiça
[1], que em muito oscilaram de entendimento.
De qualquer forma, é de elogiável clareza e técnica jurídica o recente julgamento do Recurso Especial 1.323.219J
[2],
da relatoria da ministra Nancy Andrighi, que enfrentou de forma precisa
a possibilidade da contratação e da indexação dos negócios jurídicos em
moeda estrangeira e as suas consequências legais, conforme a atual
legislação vigente.
Apanhado histórico sobre o tema
Fazendo um apanhado histórico legislativo sobre o tema, temos o
Decreto 23.501/33 que, em seu artigo 1º, ao tratar sobre os contratos
exequíveis no território nacional, estabelecia a nulidade de qualquer
estipulação de pagamento em ouro ou em determinada espécie de moeda,
assim como por qualquer outro meio tendente a restringir o curso forçado
da moeda na época.
Essa regra restringia a liberdade contratual
das partes de estipular o pagamento em moeda estrangeira, até então
consagrado pelo Código Civil de 1916, no seu artigo 947, parágrafo 1º.
Como justificativa, de acordo com o contexto histórico, buscava-se
evitar, principalmente, a dolarização, sob a alegação de enfraquecimento
da economia interna e tentativa de minimizar os impactos e oscilações
econômicas internacionais na economia brasileira.
Posteriormente,
publicou-se o Decreto-Lei 857, de 11 de setembro de 1969, no afã de
consolidar e alterar toda a legislação até então vigente sobre a moeda
de pagamento de obrigações exequíveis no Brasil. O novo regramento — que
vigora até os dias atuais — revogou as diversas legislações sobre a
matéria e, em especial, o citado Decreto 23.501, além de suspender os
efeitos do
parágrafo 1º do artigo 947 do Código Civil de 1916.
O
Decreto-Lei 857/69, entre outras disposições, manteve a regra de que
seriam nulos os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as
obrigações exequíveis no Brasil que estipulassem pagamento em moeda
estrangeira ou, por alguma forma, restringissem o curso legal da moeda
da época. Pode-se afirmar que o Decreto-Lei 857/69 trouxe avanços no
cenário legal brasileiro. Isso se deve ao fato de ter excepcionado, em
seus artigos 2° e 3º, um extenso universo de negócios jurídicos que
poderiam ser pagos em moeda estrangeira, não se enquadrando, portanto,
nas restrições aplicáveis em caráter geral às obrigações cuja execução
se dariam no território nacional.
Como exemplo, a normativa deixou
claro que não estariam inclusos nestas restrições os: (i) contratos e
títulos referentes à importação ou exportação de mercadorias; (ii)
contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às
operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito
para o exterior; (iii) os contratos de compra e venda de câmbio em
geral; e (iv) empréstimos e quaisquer obrigações cujo credor ou devedor
seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuando-se as
obrigações referentes a locações de imóveis situados no território
nacional.
Reconhecido o avanço legislativo do Decreto-Lei 857/69,
também merece ser avaliado criticamente o seu texto. Isso porque esta
norma previu a nulidade das avenças que estipulassem o pagamento em
moeda estrangeira, mas se omitiu em relação à possibilidade ou não de
indexar as avenças em moeda estrangeira, prática que era comum e
necessária em razão da volatilidade histórica que acompanhou as moedas
no Brasil em períodos anteriores ao Plano Real.
Dessa forma, o
Decreto-Lei 857/69, ainda vigente, ensejou, no contexto jurídico e
empresarial brasileiro, muitas falhas interpretativas pelo fato de haver
vedado apenas o pagamento das obrigações em moeda estrangeira, mas não
havendo vedado ou regulado se as partes contratantes poderiam ou não
indexar as obrigações exequíveis no país em moeda estrangeira
[3].
Essa
simples lacuna — ou carência de precisão legislativa — originou
discussões doutrinárias e jurisprudenciais que até hoje não foram
totalmente superadas. A consequência foi um grande prejuízo, decorrente
da desnecessária insegurança jurídica aos contratantes com obrigações
exequíveis no território nacional.
De outro lado, após praticamente 25 anos de incerteza, a Lei 8.800
[4],
de 27 de maio 1994, brindou-nos com esclarecimento expresso sobre o
tema. De fato, em seu artigo 6º, a referida lei estabeleceu que é nula a
contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando
expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento
mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no país,
com base em captação de recursos provenientes do exterior.
Portanto,
desde 1994 a legislação prevê regras específicas a serem manuseadas
pelos operadores do direito em relação à temática, independente da
discussão econômica e política que envolve a possibilidade de o Estado
tolher a liberdade dos contratantes de avençarem obrigações contratuais
exequíveis no Brasil com pagamento em moeda estrangeira e indexar
reajustes em moeda estrangeira.
Mais adiante, a Lei 10.192/01
[5],
em seu artigo 1º, de forma categórica reforça a impossibilidade da
indexação das obrigações em moeda estrangeira. De fato, esta normativa
estabelece que, em se tratando de obrigações exequíveis no país, é
vedado, sob pena de nulidade, o pagamento expresso ou vinculado à moeda
estrangeira, ressalvado o disposto nos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº
857/69 e na parte final do artigo 6º da Lei 8.880/94.
Ainda no
contexto legislativo, cabe mencionar que o artigo 318 do Código Civil
Brasileiro de 2002, na esteira das regras já citadas, dispôs que são
nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem
como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda
nacional, excetuando os casos previstos na legislação especial, como a
título de exemplo, aquele rol de avenças estabelecidas no artigo 2º do
Decreto-lei 857/69.
Ocorre que tais positivações não foram
suficientes para uma definição do posicionamento da jurisprudência sobre
a matéria, sendo que os contratantes não obtiveram uma resposta exata e
imediata inclusive do Superior Tribunal de Justiça neste sentido. Como
evidência dessa disparidade interpretativa, pode-se mencionar o Agravo
1.043.637
[6],
da relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, julgado em 17 de
fevereiro de 2009, no qual se conclui pela possibilidade de indexação em
moeda estrangeira, desde que haja conversão em moeda nacional na data
do efetivo pagamento.
Importante destacar que, naquele caso,
discutia-se a possibilidade de indexação ao dólar de um contrato de
financiamento para aquisição de bens, de sorte que não se está tratando
de contratos de fornecimento de
commodities ou mesmo daqueles fornecimentos que possuem grande parte do valor atrelado à variação de alguma
commodity,
cujo preço sofra variação de acordo com o mercado internacional. Nessas
situações, o Superior Tribunal de Justiça consagrou o entendimento no
sentido de permitir tal indexação
[7].
Pagamento em moeda estrangeira e exceções
Constata-se que é expressa na legislação a vedação do pagamento
em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no Brasil, sob pena de
nulidade. Tal regra, contida na legislação atualmente vigente,
especialmente, no artigo 318 do Código Civil de 2002, e nas Leis
8.880/94 e 10.192/01 e Decreto-lei 857/69, inclusive norteia a
jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
E
encontram-se fora do escopo dessas restrições, a título de exemplo,
aqueles pagamentos em moeda estrangeira, referentes às hipóteses
previstas nos artigos 2º e 3º do Decreto-lei, tais como, obrigações cujo
credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior,
contratos de importação ou exportação de mercadorias, entre outros
mencionados anteriormente neste artigo.
Indexação e contratação em moeda estrangeira no Brasil
Da mesma forma que o pagamento, é vedada, sob pena de nulidade,
a indexação e vinculação dos negócios jurídicos e obrigações exequíveis
no Brasil, conforme prevê o artigo 318 do Código Civil de 2002 e nas
Leis 8.880/94 e 10.192/01.
Não estão incluídas nessas hipóteses,
conforme o entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, as
avenças que envolvam o fornecimento de
commodities atreladas à variação de preços do mercado internacional ou que tenham grande parte da composição do produto composto por
commodities.
Tais negociações, por sua natureza, podem ser indexadas à variação
cambial, não obstante, a intepretação literal da legislação possa levar à
diversa compreensão.
Superadas as questões em relação à
impossibilidade da indexação, o ponto principal a ser analisado
refere-se às relações jurídicas em que não há qualquer enquadramento nas
exceções legais ou jurisprudenciais e, nada obstante, são objeto de
indexação das obrigações em moeda estrangeira.
A priori,
analisando a letra fria da lei, tais avenças deveriam ser nulas.
Contudo, na prática não parece ser esse o entendimento mais razoável e
eficaz. Por essa razão, de forma acertada, o Superior Tribunal de
Justiça vem entendendo que não é nula a contratação em si, com
estipulação do preço em moeda estrangeira, desde que o pagamento seja
efetuado em moeda corrente nacional
[8].
Esse é o entendimento do recente julgamento do Recurso Especial 1.323.219
[9]
da relatoria da ministra Nancy Andrighi, no qual entendeu que a melhor
solução para essas hipóteses seria de considerar válida a contratação,
tornando ineficaz, no entanto, a indexação, de sorte que os valores
devem ser, na data da quitação, convertidos em reais conforme a cotação
do dia da contratação (e não data do respectivo pagamento). E a partir
desta data, os valores serão atualizados com base em índice oficial de
correção monetária
[10].
Com isso se evita o enriquecimento sem causa, na medida em que a
correção monetária é mero mecanismo de reposição do valor, respeitando a
obrigatoriedade do curso forçado do Real como regra geral às obrigações
exequíveis no território nacional.
Adicionalmente, de forma
exitosa, a decisão do Superior Tribunal de Justiça considerou que sobre o
valor convertido na data da contratação, deve incidir a atualização por
meio do índice de correção oficial aplicável à relação contratual
específica do julgamento
[11].
Dessa
forma, as partes contratantes deverão redobrar a atenção antes de
elegerem os índices de indexação de seus contratos, uma vez que a
liberdade das partes na contratação neste particular não prevalecerá.
Portanto,
recomenda-se uma avaliação prévia muita cautelosa de que tipo de
contratação se está tratando e se é possível a sua vinculação em moeda
estrangeira. Isso porque, se for estabelecida moeda estrangeira em
negócios jurídicos em que não isso não é possível, as partes poderão
encontrar-se vinculadas ao índice oficial de correção, que muitas vezes
pode estar em desacordo com a melhor opção para a contratação
específica, acarretando prejuízos significativos.
[1] Vide REsp 680.543-RJ, REsp 83.752-RS e REsp 402.071-CE.
[2] REsp 1.323.219- RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de agosto de 2013.
[3]
Neste sentido Joaquim de Paiva Muniz discorre que “antes da legislação
que implementou o Plano Real, havia acirrada discussão sobre a
interpretação do Dec.-lei 857/1969, pois essa norma não é clara se veda
apenas o pagamento de obrigações em moeda estrangeira ou também a
indexação de obrigações ao valor da moeda estrangeira. Em outras
palavras, discutia-se a validade das cláusulas que obrigavam o
pagamento, em moeda nacional, do equivalente a certo montante em moeda
estrangeira (“pague-se ao credor, em reais, o equivalente, na data do
vencimento da obrigação, a x dólares), muito comuns na prática
empresarial. MUNIZ, Joaquim de Paiva, Considerações sobre Certos
Institutos de Direito Contratual e seus Potenciais Efeitos Econômicos,
Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais, nº 25, p. 104-122,
julho/ dezembro 2004.
[4]
Lei que dispõe sobre o Programa de Estabilização e o Sistema Monetário
Nacional e institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras
providências.
[5] Lei que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências.
[6] AgRg no Ag nº 1.043.637-MS , STJ, 3º Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 17 de fevereiro de 2009.
[7] REsp 1.212.847-PR, STJ, 3º Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 08 de fevereiro de 2011.
[8]
Vide Resp 194.629/SP, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes
Direito, julgado em 22 de maio de 2000 e REsp 848.424/RJ, 4ª Turma, STJ,
Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 18 de agosto de 2008.
[9] REsp 1.323.219 / RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 27 de agosto de 2013.
[10] A decisão não menciona especificamente qual índice oficial adotado.
[11]
Neste mesmo sentido, o REsp 804.791-MG, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Nancy
Andrighi, julgado em 03 de setembro de 2009, admitiu a contratação de
dívida em moeda estrangeira, vedando a indexação cambial, de sorte que
as dívidas deveriam no ato da quitação ser convertidas para moeda
nacional com base na data da contratação e a partir desta data
atualizado conforme índice de correção monetária previsto na legislação
pátria. Em sentido contrário, denotando a existência de controvérsia, o
REsp 900.680/SP, 4ª Turma, STJ. Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em
14 de abril de 2008, em que foi entendido que o fato da dívida ter sido
contraída em moeda estrangeira, com previsão de para moeda nacional se
fizesse na data do efetivo pagamento permitindo concluir que a dívida
estaria sendo exigida em reais e que, portanto, não agrediria as
disposições do Decreto-lei 857/69 e da Lei nº 8.880/94. Ressalta-se, com
o devido respeito, a minha contrariedade ao entendimento exarado por
este julgamento.