Brasil quer limitar a entrada de imigrantes com pouca
qualificação. Mas, ao mesmo tempo, não consegue atrair profissionais
altamente qualificados. O país segue sem política migratória nem
objetivos claramente definidos. Atraso, burocracia, desrespeito aos
direitos humanso e até à Constituição continuam a regra na questão
migratória.
Em meio à crise recente causada pela entrada maciça de estrangeiros
no Brasil pela fronteira com a Bolívia, no Acre e à discussão sobre a
necessidade de atrair mão de obra qualificada de estrangeiros para
suprir a demanda do mercado, a criação de uma política migratória – que
ainda não existe no Brasil – está parada.
Atualmente, a lei 6.815, de 1980, conhecida como Estatuto do
Estrangeiro, estabelece as condições de entrada e permanência de
estrangeiros no País. Criada durante o governo militar, a lei é
considerada defasada pelos setores do governo responsáveis pela
regularização dos migrantes.
Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça, afirmou em recente
declaração à BBC Brasil que o “atual Estatuto do Estrangeiro não atende
sequer aos dispositivos presentes na Constituição de 1988″, que prevê
acesso universal à educação e à saúde. “Ele possui uma lógica repressiva
que é a doutrina da segurança nacional.”
O estatuto afirma que a “segurança nacional” é considerada prioridade
ao analisar a concessão de visto e permanência a um estrangeiro. Por
isso, vistos não devem ser concedidos ao cidadão considerado “nocivo à
ordem pública ou aos interesses nacionais”.
A lei também proíbe que estrangeiros realizem atividades políticas
(punidas com prisão e expulsão do País) e permite que o Ministério da
Justiça impeça a realização de conferências, congressos e “atividades
culturais e folclóricas” de estrangeiros, “sempre que considerar
conveniente aos interesses nacionais”.
“A legislação vigente faz com que algumas instituições tenham uma
postura muito dura em relação ao tema migratório”, avalia Paulo Sérgio
de Almeida, presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg, órgão do
Ministério do Trabalho).
“Hoje você tem a situação de que os imigrantes chegam ao País e
precisam se registrar junto à Polícia Federal, que tem um viés muito
forte de fazer verificações sobre a pessoa e pode ser muito dura”,
acrescenta. “Isso é feito em obediência à lei, mas quando você faz uma
política, determinadas posturas talvez muito duras de servidores que
estão cumprindo a lei podem melhorar.”
Atraso
O projeto de lei que deveria reformular e atualizar o Estatuto,
elaborado em 2005, tramita na Câmara dos Deputados desde 2009 e ainda
não há previsão de quando irá para a votação no plenário.
“Quanto mais o tema ganha relevância no cenário nacional, mais
premente fica a modificação e aprovação desse projeto, então já estamos
com alguns anos de atraso”, afirmou o presidente do CNIg à BBC Brasil.
Para o secretário nacional de Justiça, no entanto, o projeto
apresenta avanços na garantia de direitos aos migrantes, mas já está
desatualizado em relação ao atual cenário da migração no Brasil.
Abrão diz que um grupo composto por representantes do Ministério da
Justiça, do Itamaraty, do Ministério do Trabalho e da Secretaria de
Assuntos Estratégicos (SAE) prepara um novo plano de reformulação do
Estatuto do Estrangeiro, que ainda não tem data para ser apresentado.
O atual projeto de lei incorpora pela primeira vez a garantia de
direitos à saúde, à educação e a benefícios trabalhistas aos
estrangeiros no Brasil. No entanto, o texto ainda não contempla acordos
para facilitar a migração de cidadãos dos países do Mercosul e de outros
países sul-americanos, a maioria ratificados pelo Brasil a partir de
2008 e já em vigor.
Burocracia
Outras resoluções do CNIg, criadas para diminuir a burocracia na
concessão de vistos temporários e permanentes de trabalho, também estão
ausentes do projeto, apesar de já serem colocadas em prática.
Um segundo problema, segundo Paulo Abrão, é que a nova lei, se
aprovada, manteria o atual mecanismo de gestão da migração no Brasil.
Atualmente, os ministérios do Trabalho, das Relações Exteriores e da
Justiça – em parceria com a Polícia Federal – cuidam de diferentes
aspectos do processo, o que aumenta a burocracia e a lentidão dos
trâmites.
O secretário nacional de Justiça e o presidente do CNIg acreditam que
o novo projeto também falha ao não incorporar a convenção internacional
da ONU sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes e suas
famílias, que foi assinada pelo Brasil, mas ainda não foi aprovada pelo
Congresso.
A convenção garante a proteção dos trabalhadores estrangeiros contra o
trabalho escravo e contra o risco de prisão por não cumprir obrigações
de contrato. O documento da ONU, criado em 1990, também estabelece que
os trabalhadores migrantes e suas famílias devem ter direitos
trabalhistas e acesso a cuidados médicos urgentes, mesmo que estejam em
situação irregular no País.
A aprovação da convenção começou a tramitar na Câmara dos Deputados
em 2010, mas aguarda até hoje a criação de uma comissão especial para
agilizar sua votação.
Proposta engavetada
A política nacional de migração – que estabelece diretrizes para a
atuação de todos os órgãos do governo sobre o tema – é prevista no
projeto de lei que está na Câmara, mas nunca foi adotada oficialmente
pelo Brasil.
Um documento chegou a ser elaborado e aprovado pelo CNIg em 2010,
mas, segundo Paulo Sérgio de Almeida, “está em tramitação até hoje,
porque não teve a concordância de todos os órgãos para que pudesse ser
promulgado”.
A proposta do CNIg considera os acordos internacionais mais recentes
assinados pelo Brasil e garante direitos aos trabalhadores migrantes. O
presidente do órgão afirma, no entanto, que a mudança na legislação
atual é essencial para que a política, se aprovada, tenha efeito.
“O foco da política é considerar os direitos humanos e sociais dos
migrantes como direitos que devem ser respeitados”, diz. “Ela também
prevê a concessão de vistos rápida, simples, com menos burocracia e
custos razoáveis, e a legislação de hoje cria diversos entraves.”
Em dezembro de 2012, o projeto de lei elaborado em 2005 chegou à
Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional, onde deve ser
analisado até agosto, de acordo com a deputada Perpétua Almeida (PCdoB
-AC), relatora da comissão. Depois disso, o texto ainda precisará passar
pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça antes de ser
encaminhado para a votação.
Imigrantes pouco qualificados dividem governo
Enquanto isso, setores do governo brasileiro concordam sobre a
necessidade de atrair estrangeiros altamente qualificados em caráter
temporário e permanente para o país, mas divergem quando se trata da mão
de obra pouco qualificada.
De acordo com o governo, as autorizações de trabalho para
estrangeiros com baixa escolaridade aumentaram 246% nos primeiros nove
meses de 2012 em relação ao mesmo período em 2011.
O aumento expressivo do número de refugiados que entrou no país nos
últimos anos, muitos com pouca ou nenhuma qualificação profissional
formal, também gerou debates sobre a absorção dessa mão de obra pelo
mercado de trabalho brasileiro.
Em levantamento divulgado no fim de abril, o Conare (Comitê Nacional
para Refugiados), do Ministério da Justiça, afirmou que o número de
estrangeiros que solicitam refúgio no Brasil mais que triplicou nos
últimos três anos. Em 2012, mais de 2 mil pessoas pediram refúgio no
país, contra 566 em 2010 e 1,1 mil em 2011.
‘Embora haja um aumento substancial de pedidos, percebemos que muitos
estrangeiros têm buscado o refúgio para imigrar por novas oportunidades
de vida. No entanto, o refúgio é aplicado apenas para casos de
perseguições’, afirmou o presidente do Conare e secretário nacional de
Justiça, Paulo Abrão. Se as condições para a entrada e permanência no
Brasil fossem mais simples, como em outors países, teria menos
solicitações de refugio.
O secretário de Ações Estratégicas do governo,
Ricardo Paes de Barros, defende a criação de limites para a admissão de
estrangeiros pouco qualificados e refugiados no país. ‘Acho que o Brasil
tinha que ter uma cota humanitária – e o Canadá tem, por exemplo’,
disse à BBC Brasil.
Para os imigrantes menos qualificados, segundo Barros, um processo
seletivo deveria ser adotado – para garantir que o Brasil receba somente
‘as pessoas que estão realmente em uma situação ruim’.
A SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
República) está elaborando um diagnóstico da migração no Brasil, além de
propostas específicas para a atração de imigrantes qualificados e para
admissões ‘humanitárias’.
‘Estamos falando do humanitário no sentido amplo da palavra. Não é só
o refugiado, pode ser um trabalhador não qualificado ou pouco
qualificado que está disposto a vir para o Brasil, apesar de o Brasil
não estar precisando daquela mão de obra’, disse à BBC Brasil.
O secretário ressalta, no entanto, que o principal foco é a
elaboração de propostas para uma política de atração de profissionais de
alta qualificação – cujas especialidades não possam ser encontradas no
Brasil.
‘É para esse tipo de mão de obra que nós queremos eliminar todos os
entraves possíveis. Queremos que eles possam vir a qualquer hora,
carregá-los no colo.’
Absorção pelo mercado
Abrão, do Conare, defende que é preciso dar mais atenção à
importância da mão de obra pouco qualificada que entra no país ao
elaborar leis e políticas migratórias.
‘O que a SAE está fazendo é um trabalho importante para o país, que é
a averiguação de lacunas de mão de obra de altíssima qualificação e que
hoje atravancam o desenvolvimento de diversos setores econômicos. Mas
isso por si não é a política migratória do país, esse é apenas um
aspecto’, disse à BBC Brasil.
Para Paulo Abrão, setores econômicos importantes para o país estão absorvendo mão de obra pouco qualificada ‘com naturalidade.’
Ele cita o exemplo dos haitianos que têm entrado no Brasil pela
fronteira com o Acre e têm sido, desde o início de 2012, recrutados por
empresas de todo o país – em especial nos Estados de Santa Catarina,
Paraná, Mato Grosso e Rondônia.
‘Isso tem feito com que cada vez mais os empresários aproveitem essa
mão de obra, que é animada, são pessoas com muita disposição ao
trabalho, que querem contribuir para o desenvolvimento do país’, afirma.
A força tarefa do governo federal no Acre, que dá documentos aos
estrangeiros, também intermediou o recrutamento de mão de obra haitiana
para frigoríficos, obras da construção civil, serviços de instalação
elétrica e outros.
Dos cerca de 6,5 mil haitianos que entraram no país por Brasileia, o
governo do Acre estima que 4,3 mil deixaram a cidade já contratados. Os
haitianos, no entanto, tiveram a possibilidade de deixar o Acre mais
rapidamente para trabalhar do que migrantes de outras nacionalidades.
‘Para todas as nacionalidades, há essa intermediação de mão de obra,
mas para os haitianos o processo de regularização é simplificado, porque
uma resolução prévia do CNIg (Conselho Nacional de Imigração) já os
considera com um visto humanitário, que dá a eles uma condição imediata
de residência permanente. Para as demais nacionalidades, se aplica a lei
ordinária’, afirma o secretário.
Segundo o Conare, o Brasil tinha até março 4.262 refugiados
reconhecidos, a maioria angolanos, colombianos e congoleses. Até o
momento, cerca de 9 mil haitianos foram regularizados.