O
Brasil enfrenta efetivamente profundas crises (econômica, política,
social, jurídica e, sobretudo, ética). Quando a Corte Máxima de um país é
chamada para julgar três ladrões (um subtraiu 1 par de chinelos de R$
16, outro 15 bombons de R$ 30 e o terceiro 2 sabonetes de R$ 48) e diz
que é impossível não aplicar, nesses casos, a pena de prisão, ainda que
substituindo-a por alternativas penais, é porque chegamos mesmo no fundo
do poço em termos de desproporcionalidade e de racionalidade. Usa-se o
canhão do direito penal para matar pequenos pássaros (Jescheck).
Em
países completamente civilizados, para esse tipo de questão adota-se a
chamada “resolução alternativa de conflitos” (RAC). O problema
(enfrentado por equipes de psicólogos, assistentes sociais etc.) nem
sequer vai ao Judiciário (desjudicialização). Do que é mínimo não deve
se encarregar o juiz (já diziam os romanos, há mais de 2 mil anos). O
fato não deixa de ser ilícito, mas a cultura evoluída se contenta com
esse tipo de solução (que faz parte de um contexto educacional de
qualidade). É exatamente isso o que acontece nas faixas ricas no Brasil.
Muitos filhos de gente rica, nos seus respectivos clubes ou nas
escolas, praticam subtrações de pequenas coisas. Tudo é resolvido
caseiramente (sem se chamar a polícia). A vítima pobre não tem a quem
chamar, salvo o 190. Daí a policialização e judicialização de todos os
conflitos, incluindo os insignificantes. Coisa de paiseco atrasado, de
republiqueta (marcadamente feudalista).
Vivemos
a era da emocionalidade (J. L. Tizón, Psicopatologiía del poder). No
campo penal, por força da oclocracia (governo influenciado pelas massas
rebeladas), dissemina-se (com a intensa ajuda da mídia) o populismo
penal irracional centrado no uso e no abuso da prisão desnecessária. A
explosão do sistema penitenciário é uma tragédia há tempos anunciada.
Agrava-se a cada dia (somente em SP, o saldo dos que entram e dos que
saem chega a 800 novos presos por mês).
A pena de prisão para
fatos insignificantes conflita com o bom senso (com a racionalidade). Os
países desenvolvidos aplicam outros tipos de sanção. Em sistemas
acentuadamente neofeudalistas como o nosso, tenta-se disseminar o
chamado princípio da insignificância, que elimina o crime (evitando a
condenação penal). Mas o legislador brasileiro nunca cuidou desse
assunto (salvo no
Código Penal militar).
Cada caso então fica por conta de cada juiz. O STF tratou do tema em
2004, no HC 84.412-SP. Aí fixou vários critérios, mas todos “abertos”
(sujeitos a juízos de valor de cada juiz). Uma “jabuticabada” (como diz
Rômulo de Andrade Moreira).
O Plenário do STF voltou a enfrentar o
tema em 3/8/15 (nos HCs 123734, 123533 e 123108): réu reincidente pode
ser beneficiado com o princípio da insignificância? Se o furto é
qualificado, pode incidir o citado princípio? O STF fixou algumas
orientações (não vinculantes aos juízes do país). Os três casos
julgados, somados, davam R$ 94. Pobre que furta é ladrão, rico que rouba
é barão.
O min. Luís Roberto Barroso, no princípio, votava pela
incidência do princípio da insignificância. Mudou de posicionamento a
partir do voto-vista do ministro Teori Zavascki, que firmou orientação
no sentido oposto (de não aplicar referido princípio nesses casos). O
Pleno apenas sinalizou o caminho a ser seguido. Não fixou entendimento
vinculante. Porque, em direito penal, cada caso é um caso.
Para o
ministro Zavascki a não aplicação do princípio da insignificância (nos
casos citados) se deve ao seguinte: (a) são crimes com circunstâncias
agravadoras; (b) apenas a reparação civil é insuficiente (para a
prevenção geral); (c) reconhecer a licitude desses fatos é um risco
(risco do justiçamento com as próprias mãos); (d) a imunidade estatal
pode se converter em justiça privada (com consequências graves); (e)
cabe ao juiz em cada caso concreto reconhecer ou não a insignificância
assim como fazer a individualização da pena.
Nos três casos
concretos analisados não houve reconhecimento do princípio da
insignificância, mas, tampouco se admitiu o encarceramento do agente. A
saída para evitar a prisão é a aplicação de penas substitutivas (
CP, art.
43
e ss.) ou a aplicação do regime aberto (que hoje, na quase totalidade
das comarcas, é cumprido em domicílio, em razão da ausência de
estabelecimentos penais adequados). Mesmo em se tratando de reincidente,
nos casos de pouca repercussão social, pode-se aplicar o regime aberto
(para evitar a prisão). Qualquer outro regime seria (mais ainda)
desproporcional. País que não cuida da prevenção (e que conta com
escolaridade média ridícula de apenas 7,2 anos, exatamente a mesma de
Zimbábue) tem que se expor internacionalmente ao ridículo. Chega na sua
Corte Máxima o furto de bombons, de um par de chinelos, dois sabonetes,
um desodorante, duas galinhas etc. O País e os juízes que julgam
penalmente coisas pequenas jamais serão grandes.
Professor
Jurista
e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do
Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de
Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
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