Em 1981, o jurista português
José Luís da Cruz Vilaça
assumiu o cargo de secretário de Estado para a Integração Europeia. No
entanto, foi cinco anos depois que ele participou do órgão que considera
o mais essencial para a real integração do continente: o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias — hoje chamado de Tribunal de Justiça
da União Europeia.
Com 28 Estados-membros e mais de 500 milhões
de habitantes — falando 24 línguas oficiais —, a União Europeia depende
do tribunal para uniformizar a aplicação do Direito. Sua função é
garantir "o respeito do Direito na interpretação e aplicação dos
tratados”, que são regras fundamentais que estão na base de todas as
medidas tomadas pela UE.
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é
acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da União
Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas sobre a
sua interpretação ou até sobre a validade da norma”, explica Vilaça, que
foi o primeiro presidente da corte. Desde outubro de 2012, ele é juiz
do tribunal.
Juiz, professor e árbitro, Vilaça tem doutorado em
Economia Internacional e já foi deputado em Coimbra (1983) e Braga
(1986). Sua vivência na área jurídica, política e econômica dá a ele uma
visão completa sobre a Europa. Para ele, as medidas aprovadas por
Portugal para fugir da crise, em 2011, foram muito severas, mas valeram a
pena. Para a União Europeia funcionar de forma harmoniosa e estável, “é
preciso regras — e respeito a essas regras — de disciplina financeira”,
diz.
Membro do conselho consultivo da Academia de Direito
Europeu, o juiz veio ao Brasil para dar início a um protocolo
preparativo de cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e
o Supremo Tribunal Federal, que pode abrir as portas da academia — que
fica na cidade alemã de Trier — para os profissionais brasileiros. Ele
veio ao Brasil depois de receber os advogados brasileiros Nelson Wilians
e Luiz Roberto Sabbato, junto com o presidente do Tribunal de Justiça
da União Europeia, Koen Lenaerts, em almoço na sede do tribunal, em
Luxemburgo.
Leia a entrevista:
ConJur — Como é a convivência, hoje, da justiça da União Europeia com as justiças dos Estados-membros?
José Luís da Cruz Vilaça — É pacífica e funciona como uma
cooperação. Isso é um suporte indispensável para a estrutura e o
funcionamento da ordem jurídica da União Europeia. Essa ordem, sobretudo
o sistema jurisdicional da União Europeia, baseia-se na cooperação
entre os tribunais de Luxemburgo, em particular o Tribunal de Justiça, e
os tribunais dos Estados-membros. Em virtude do efeito direto das
normas do Direito da União Europeia e do princípio do primado do Direito
da União Europeia sobre o Direito nacional dos Estados-membros, em caso
de contradição, os tribunais dos Estados são os órgãos jurisdicionais
comuns de aplicação do Direito da União Europeia.
Nós somos apenas
um tribunal especializado, criado pelo tratado para aplicar e promover
uniformidade na aplicação do Direito da União em todo o seu território.
Mas não somos a primeira linha de aplicação do Direito da União
Europeia.
ConJur — Onde o Direito da União Europeia é aplicado primeiro, então?
José Luís da Cruz Vilaça — Os cidadãos podem invocar
diretamente o Direito comunitário para fazer valer os direitos que para
eles decorrem das normas da União Europeia, perante os tribunais
nacionais competentes. Só que isso, obviamente, gera problemas em uma
união de 28 Estados e mais de 500 milhões de cidadãos. Como aplicar da
mesma forma em Lisboa, na República Checa, na Polônia ou na Ilha de
Malta? Se não aplicarmos da mesma maneira, os cidadãos acabam por não
ser tratados da mesma maneira. Assim, o Tribunal de Justiça da União
Europeia é acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da
União Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas
sobre a sua interpretação ou até sobre a validade da norma. O tribunal
vai dar, inclusive, elementos de interpretação do Direito que permitam
resolver o problema de forma rápida e eficaz.
ConJur — Os
brasileiros têm uma relação privilegiada com Portugal. O Tribunal já
analisou se o brasileiro tem alguma prerrogativa na Europa, por conta
dessa relação?
José Luís da Cruz Vilaça — O brasileiro é um cidadão de um país
de fora da União, um país terceiro. Em princípio, se aplicam as regras
que se aplicam aos cidadãos de países terceiros. O Brasil tem uma
posição especial, em primeiro lugar, porque há uma ligação não só
afetiva e histórica, mas também econômica e jurídica com Portugal.
Através dessa relação com Portugal, o brasileiro tem algumas facilidades
em penetrar na Europa e no mercado de trabalho europeu. Além disso, a
União Europeia tem acordos especiais com o Brasil, seja com o Brasil
bilateralmente, seja no quadro do Mercosul, que permite conceder aos
brasileiros direitos, eventualmente, obrigações, também, que não são
reconhecidos, necessariamente, a cidadãos de outros países, como
Afeganistão ou Síria.
ConJur — Quais são os limites de atuação do advogado de um Estado-membro em outro Estado-membro? Ele pode fazer qualquer coisa?
José Luís da Cruz Vilaça — Uma das liberdades fundamentais do
tratado é que os profissionais de um Estado têm livre acesso ao mercado
do outro. É um mercado interno com liberdade de circulação. E tem livre
acesso para exercer uma profissão como trabalhador assalariado ou como
trabalhador independente. Para certas profissões, não vai haver grandes
problemas, porque os diplomas podem ser facilmente reconhecidos. Em
Direito, é diferente. Pela diferença do ensino do Direito em cada país, é
preciso fazer algumas exigências suplementares. Para evitar que cada
Estado-membro imponha as suas próprias regras, a comunidade europeia,
primeiro, e a União Europeia, depois, votaram regras para harmonizar ou
mesmo uniformizar as condições de acesso ao mercado da prestação de
serviços jurídicos nos vários Estados.
ConJur — O Reino
Unido ficou famoso como muito independente e apresentou ressalvas para o
seu ingresso na União Europeia. É no ano que vem que vencem aquelas
concessões que a União Europeia fez para viabilizar o ingresso do Reino
Unido?
José Luís da Cruz Vilaça — O Reino Unido sempre teve uma
posição ambígua em relação à comunidade europeia. Eu acho que é a
presença do Reino Unido na União Europeia é fundamental, por razões de
caráter econômico, relacionadas ao dinamismo da economia britânica e com
o dinamismo do seu setor financeiro. Do ponto de vista jurídico, o
funcionamento do Tribunal de Justiça beneficiou muito a entrada da Grã
Bretanha, em 1972, e devo dizer que os advogados britânicos são dos
melhores que vêm apresentar alegações, com um profissionalismo,
savoir-faire e
know-how
fantásticos. Além disso, têm uma grande criatividade na maneira de
apresentar os seus argumentos. O primeiro-ministro britânico, David
Cameron, fez uma aposta arriscada, organizar um referendo sobre a
participação da União Europeia, a manutenção, a continuação ou não da
Grã Bretanha na União Europeia. E o referendo vai ter lugar em 2017, mas
para convencer o povo britânico a dizer que sim, porque ele percebe,
inteligentemente, que é importante para o Reino Unido e a Grã Bretanha
estar dentro da União Europeia e influenciar o que se passa lá dentro.
ConJur — Caso a Irlanda do Norte se qualifique como um Estado autônomo, ele pode vir a requisitar o ingresso na União Europeia?
José Luís da Cruz Vilaça — Não há um problema, neste momento,
com a hipotética independência da Irlanda do Norte. Essas coisas estão
pacificadas com os acordos que foram feitos ainda no tempo do ministro
[Tony] Blair. Há um problema mais imediato com a Escócia, que fez um
referendo no qual escoceses e o governo regional da Escócia fizeram
campanha a favor da saída do Reino Unido. O resultado foi, “não vamos
sair do Reino Unido, queremos continuar”, mas com margem muito pequena.
Se houver no futuro sua independência do Reino Unido, ela será
reconhecida pela comunidade internacional. Assim, torna-se um país
independente, mas que não é membro da União Europeia. Se os escoceses,
cidadãos escoceses quiserem continuar a beneficiar do estatuto de
cidadãos europeus, a Escócia tem que pedir adesão, negociar a adesão e
ser admitida por todos os outros membros, por unanimidade. Isto é
aplicável a qualquer região autônoma de um Estado membro que venha,
eventualmente, a declarar a independência.
ConJur — A
relação privilegiada a advogado e cliente tem sido flexibilizada.
Recentemente, alterou-se a questão da confidencialidade. Em alguns
países, se o advogado souber que o cliente pratica atividades como
lavagem de dinheiro ou atos relacionados a terrorismo, a tráfico ou
crimes conexos, deve informar às autoridades. Como está isso, hoje, na
Europa?
José Luís da Cruz Vilaça — A Europa tem uma diretiva que se
aplica especificamente a essa situação. No início, não abrangia os
advogados, nas relações com seus clientes, depois passou a abranger os
advogados nas relações com seus clientes, mas salvaguarda os deveres de
lealdade e de confidencialidade do advogado nas relações de defesa dos
seus clientes. Na defesa dos seus clientes, o advogado tem de beneficiar
aquilo que os ingleses chamam de
legal privilege. Tudo aquilo
que o cliente diga para assegurar a sua defesa está coberto por essa
confidencialidade. Mas isto se aplica quando o advogado é chamado a
defender um cliente que é acusado de atividades delituosas. Não se
aplica quando o advogado é chamado, solicitado por um cliente a
colaborar nas suas atividades delituosas e aplica-se, como falamos, na
defesa do cliente em juízo ou preparação da defesa do cliente em juízo.
Essa garantia não abrange quando o advogado é, por exemplo, solicitado a
assessorar o cliente em certas operações financeiras ou caráter
imobiliário entre as quais ele possa suspeitar ou ter conhecimento de
que há atividades de caráter ilícito, designadamente de branqueamento de
capitais ou de financiamento do terrorismo.
A diretiva não
resolve tudo, não diz exatamente como é que essa comunicação deve ser
feita e a quem. O legislador buscou um equilíbrio, mas deixou de fora
dúvidas de interpretação, que, quando houver um pleito num tribunal, o
Tribunal de Justiça poderá ser chamado a clarificar e a dar a
interpretação conveniente.
ConJur — Já houve algum caso de
advogado enquadrado junto com o cliente, pelo crime que o cliente
praticou, já que o advogado não comunicou a ninguém?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. Em vários Estados-membros. A
própria diretiva resulta da interpretação que o Tribunal de Justiça fez
dos deveres profissionais dos advogados que, neste ponto, entram, de
certa maneira, em conflito. O conflito da prevenção da criminalidade
grave e séria, por um lado, e, por outro, os deveres antológicos dos
advogados, de segredo profissional e de colaboração na defesa dos seus
clientes.
ConJur — Há poucos anos, para sair de uma crise
parecida com a que o Brasil vive hoje, o governo português chegou a
reduzir a remuneração dos servidores públicos, assim como cortou pensões
e aposentadorias, o que foi convalidado pela Corte Constitucional
Portuguesa. O sacrifício valeu a pena?
José Luís da Cruz Vilaça — Eu digo não como juiz, mas como
cidadão português, afirmo que valeu a pena. De fato, estávamos numa
situação muito delicada, muito difícil, ainda em 2011, com nível de
endividamento interno e externo do Estado brutal. Com déficit orçamental
enorme, que ultrapassava os limites fixados no quadro da criação da
União Econômica e Monetária da introdução do euro. Para uma zona destas
funcionar de forma harmoniosa e estável, é preciso regras — e respeito a
essas regras — de disciplina financeira. E foi preciso, portanto,
reequilibrar, reestruturar e fazer resgates. A Alemanha tem sido um
exemplo, a meu ver, de equilíbrio, às vezes parece mesmo um pouco
demasiado rígida, mas a solidariedade que a Alemanha tem praticado
também tem de andar lado a lado com a responsabilidade. Portugal aceitou
suas responsabilidades de maneira rigorosa, custosa para o cidadão,
sobretudo para aqueles que têm mais dificuldades e ganham menos, mas o
cidadão aceitou essa aposta e deu provas de grande sentido de
responsabilidade cívica. E, em Portugal, funcionou também porque os
sindicatos, em geral, deram provas da mesmo sentido de responsabilidade
cívica, não houve desacatos.
ConJur — Nem greve geral?
José Luís da Cruz Vilaça — Não houve greve geral, motins
populares ou violência, e ultrapassamos o mais difícil da crise.
Estamos, agora, em uma reta ascendente, em Portugal. Essa reta
ascendente faz com que, nos últimos tempos, tenhamos crescido
economicamente, as exportações estão aumentando, temos uma moeda estável
e, portanto, grande esperança para o futuro. Eu desejo, como português,
que saia uma solução de governo estável, responsável, respeitadora das
disciplinas orçamentárias e da União Europeia. E que continuemos uma
política de crescimento da economia, de apoio aos mais necessitados,
dentro dos limites dos recursos de que dispomos. Nós não somos um país
rico e não podemos ignorar isso.
ConJur — O Tribunal de Justiça tutela as chamadas cinco liberdades fundamentais. Como é isso?
José Luís da Cruz Vilaça — São os pilares do funcionamento do
mercado interno, que se chamava mercado comum. As cinco liberdades
fundamentais são: liberdade de circulação de mercadorias; de pessoas; de
capitais; de estabelecimento; e de prestação de serviços. No princípio,
quando a comunidade europeia era, sobretudo, uma comunidade de natureza
econômica e comercial, era livre circulação de trabalhadores, as
pessoas enquanto trabalhadores. Hoje em dia, essa noção foi se
ampliando, sobretudo após a introdução da cidadania europeia. Portanto, o
grande princípio é livre circulação de pessoas que estejam em situação
regular.
ConJur — Que tipo de cooperação pode haver entre a União Europeia e o Brasil, em matéria jurídica e judicial?
José Luís da Cruz Vilaça — Há um campo largo para relações de
cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o sistema
judicial da União Europeia e o Judiciário brasileiro. Em primeiro lugar,
há o interesse dos dois lados de conhecer a experiência do outro. O
Brasil é um grande Estado Federal, com uma dimensão continental. A União
Europeia não é um Estado Federal, mas é uma União com elementos de tipo
federal, hoje em dia com 28 Estados-membros. É muito importante que
possamos intercambiar informações, experiências, para podermos buscar
soluções para problemas que também são semelhantes.
ConJur
— Existe a possibilidade de brasileiros advogados, juízes ou promotores
fazerem curso na Academia Europeia de Direito de Trier?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. A Academia de Trier não está
vinculada ao Tribunal de Justiça. É apoiada pelo governo da República
Federal da Alemanha, mas é uma instituição de Direito privado. Há outras
em vários Estados membros, mas essa tem uma vantagem por ficar muito
próxima do Tribunal de Justiça e, portanto, há um intercâmbio natural
entre a Academia de Direito Europeu de Trier e o Tribunal de Justiça.
Ela presta apoio e cooperação na generalidade dos países da União
Europeia e, sobretudo, para a formação de juristas, advogados e juízes.
Todos são chamados a aplicar o Direito da União Europeia.