O advogado tributarista analisa as manobras da
União para tributar créditos de ICMS
Por Laura D'Angelo
laura.cauduro@amanha.com.br
Estar em dia com a Receita Federal nunca foi uma tarefa fácil para as empresas. Mas os críticos do sistema tributário brasileiro, um dos mais intrincados do mundo, podem se preparar. Tudo pode piorar ainda mais, especialmente em uma era de crise fiscal sem precedentes, com o governo buscando aumentar sua arrecadação de qualquer maneira.
Em uma iniciativa que torna o sistema tributário um obstáculo ainda maior ao investimento privado, a União resolveu taxar com Imposto de Renda, Cofins e outros impostos federais os incentivos concedidos pelos Estados às empresas – benefícios que sempre foram entendidos como isentos. Calcula-se que a tributação federal possa representar entre 35% e 40% do valor do subsído recebido.
“O empresário acorda num dia sabendo que é devedor de impostos, num valor absurdamente alto, dos últimos cinco anos”, conta o advogado tributarista Bruce Bastos Martins, do escritório catarinense Lobo & Vaz.
Há vários escritórios no país preparando artilharia contra o que consideram uma medida inconstitucional da União. Na entrevista que concedeu a AMANHÃ, Bruce Martins define a ofensiva do governo como uma tentativa de fazer receita a qualquer custo e alerta as empresas para se mobilizarem na proteção dos incentivos – sob pena de sangrarem até fecharem as portas. “É uma espoliação do empresariado pela Receita Federal”, dispara Martins.
Por que a União está tentando tributar os incentivos que os Estados têm dado para atrair investimentos?
Há mais
de três anos que a Receita Federal tem manifestado essa disposição. O governo,
mais do que nunca, precisa de caixa e um modo para fazer isso é tributando os
créditos presumidos de ICMS concedidos pelos Estados às empresas. Ele
quer cobrar sobre esses créditos PIS, Cofins, Imposto de Renda Pessoa Jurídica
(IRPJ) e Contribuição Sobre Lucro Líquido (CSLL). Para uma empresa que está
enquadrada no regime de lucro real, por exemplo, a tributação federal pode
representar entre 35% e 40% do valor econômico do incentivo.
A questão-chave é entender o conceito de crédito presumido de ICMS.
São
renúncias financeiras que o Estado faz para estimular um certo investimento de
uma determinada empresa. Essas renúncias financeiras do Estado são convertidas
nos chamados créditos presumidos de ICMS, com o objetivo de estimular um setor
específico da economia que é do interesse público fomentar. Mas a realidade é
que os créditos presumidos dados à empresa são, na verdade, créditos fictícios.
Eles não decorrem de uma transação realizada, de um fato gerador de imposto. E
também não partem do interesse da iniciativa privada, e sim do interesse do
setor público em viabilizar o investimento privado em um setor de interesse público.
Por essa razão é que os valores dos créditos presumidos não são tributáveis, a
nosso ver, por PIS, Cofins, IRPJ e CSLL, por exemplo. O Estado abre mão de
parte da sua receita para que as empresas recolham menos tributos através dos
créditos presumidos.
O crédito
presumido de ICMS pode ser concedido a qualquer tipo e porte de empresa?
Cada
Estado tem seu próprio regulamento de crédito presumido, mas ele não se limita
somente às grandes companhias. Basta que a empresa esteja ativa no lucro
presumido ou real, ainda que seja de pequeno porte, para poder receber esse
incentivo. O crédito presumido é uma ferramenta incrível para incentivar o
pequeno e médio empresário a competir no mercado nacional e, como consequência,
para promover o empreendedorismo de uma forma geral.
Qual é a
base de argumentação da União para taxar benefícios fiscais dados pelos
Estados?
A União
entende que esses subsídios configuram faturamento das empresas e devem,
portanto, entrar na base de cálculo do PIS e da Cofins. No caso do IRPJ e da
CSLL, ela considera que há duas situações: quando essas subvenções são
destinadas ao investimento da empresa, não há tributação; quando é para o
custeio, há tributação. E o que distinguiria um caso do outro? Essa é uma
discussão que entra em questões tributárias e jurídicas não muito claras, pouco
definidas, o que acaba dando uma brecha para o governo.
Como a
Receita Federal tem buscado esses tributos?
Um fiscal
da Fazenda vai até à sede da empresa pedindo os documentos dos últimos cinco
anos. Reconhecendo que a companhia não recolheu PIS, Cofins, IRPJ e CSLL sobre
os créditos presumidos de ICMS, apresenta um auto de infração, considerando os
valores com juros de mora e multa. Se a empresa não se defender, o auto é
imediatamente lavrado com uma certidão administrativa e vai para execução
fiscal já com os honorários do procurador da Fazenda incluído. A execução
fiscal tem uma forte agressividade contra o patrimônio da empresa e, às vezes,
até mesmo da pessoa física. Hoje, a Receita consegue, muitas vezes de maneira
ilegal, direcionar a dívida da empresa para a pessoa física, como se isso fosse
regra e não exceção. O modo como a União trabalha nesses casos é o mais
agressivo possível.
A
tributação é retroativa?
Sim, pois
leva em conta os últimos cinco anos. Para completar o cenário kafkiano
dos empresários, ele não só acorda num dia sabendo que é devedor de um valor
absurdamente alto como também se descobre devedor dos últimos cinco anos nos
quais ele procedia de uma forma que, tanto por juristas e contadores, era
considerada correta. A política do governo de fazer receita a qualquer custo
tem como primeiro alvo os empresários. Obviamente que isso é o coração da
insegurança jurídica dos empresários, que não sabem exatamente no que suas empresas
são tributadas ou não.
Pode-se
dizer que a crise fiscal é o verdadeiro motivo dessa taxação?
Sem
dúvida. A crise política, que é o grande motor das crises econômicas, faz com
que o governo, num total desespero, aja de forma autofágica. Ele começa a tirar
receita do setor que deveria ser o grande motor da receita do Estado. É o
segmento empresarial que faz circular mercadorias, presta serviços e recolhe
todos os tributos para o Estado. Essa política tributária inibe a atuação das
empresas, que saem do mercado e, assim, acabam diminuindo a receita do governo.
Em que
medida essa disposição da Receita pode inibir as negociações de incentivos
fiscais que as empresas mantêm com os Estados?
Muito.
Quando os Estados concedem um benefício a uma empresa, eles estão agindo em
nome do interesse público de fomentar determinado setor econômico. Eles abrem
mão da sua receita. A União está agindo tanto contra as empresas como contra os
Estados. E nem preciso dizer que não existe melhor cenário para causar uma insegurança
jurídica do que esse. Não se pode confiar na União nem no Estado, porque não se
sabe se o que está fazendo é legal ou não, se é tributável ou não.
A União
alega que inexiste norma prevendo a não tributação do benefício. É um argumento
válido?
É um
argumento de uma perversidade inigualável. O Direito procura regular situações
que ocorrem. Você esperar que o legislador regule situações não ocorridas
é de uma total insanidade. Ele teria de legislar não só as situações que
acontecem como imaginar todas as possibilidades existentes de um caso
específico. E o Direito não funciona assim. No Direito Tributário acontece a
mesma coisa. O legislador coloca ali as situações que são tributáveis. E quais
não são? Todas as demais. A União usa um argumento idêntico para definir quais
empresas inseridas no lucro real têm direito de crédito de PIS e Cofins. Nas
situações que não estão previstas para a concessão de crédito, a Fazenda alega
que a empresa não pode receber. É impossível para o legislador contemplar todos
os casos nos quais se emprega um trabalho que gere direito de crédito. A
criatividade na criação de negócios dentro de uma atividade é ilimitada. O modo
de pensar da União é perverso e é nitidamente uma maneira de fazer com que ela
faça receita, não importando se isso vai ou não estar de acordo com a
Constituição Federal e com as leis em vigor no Brasil, por exemplo.
No seu
modo de ver, querer cobrar tributos sobre os créditos presumidos de ICMS é
inconstitucional?
Sim. Os
créditos presumidos possuem uma natureza não tributável. Se forem tributados,
haverá uma agressão ao princípio de imunidade recíproca. Esse princípio protege
as pessoas jurídicas de direito público, umas das outras, no que se refere à
incidência de impostos. Uma pessoa jurídica de direito público não pode
tributar a outra, nem ser tributada pela outra. Assim, a União não poderia
cobrar tributo de uma receita que é do Estado e da qual ele abriu mão para
estimular um setor da economia.
Como está
o embate jurídico entre as empresas que receberam incentivos estaduais e a
Receita Federal? Como têm decidido os tribunais até aqui?
Com
relação ao PIS e ao Confins, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem
apresentado um bom histórico a favor do contribuinte. Quanto ao IRPJ e à CSLL,
que é uma discussão mais recente, a segunda turma do STJ tem se posicionado
cada vez mais a favor dos contribuintes. Hoje se tem uma divisão entre a
primeira e a segunda turma. A primeira tem se mostrado a favor da União, em
considerar que o IRPJ e a CSLL incidam sobre os créditos presumidos de ICMS. A
segunda, principalmente seguindo o entendimento do ministro Napoleão Maia
Filho, considera o contrário, que os créditos presumidos são meras renúncias
fiscais dos Estados e não poderiam ser considerados receitas nem tampouco
lucros das empresas. Logo não são passíveis de nenhum tributo federal. Ele,
inclusive, elenca o princípio da imunidade recíproca como uma forma de
fortalecer essa tese.
E os
Estados? Acompanham a briga a distância? Afinal, a tributação federal pode
enfraquecer a capacidade que eles têm de oferecer incentivos atraentes às
empresas.
Tenho
acompanhado um movimento muito mais ativo do setor privado, através de
federações e sindicatos patronais. Apesar de os Estados terem todo o interesse
de agir em favor dos seus incentivos, eles não se movimentam de forma alguma. O
setor público, por questões políticas, é mais moroso para compor algum tipo de
força. A gente sabe que as questões políticas acabam se sobrepondo,
principalmente quando a União e os Estados têm outros acordos firmados e
preferem resguardá-los.
Como tem
sido a mobilização do setor privado?
Está
havendo um movimento político por parte dos empresários, de grandes empresas,
para produzir uma lei, num primeiro momento por medida provisória, que
estabeleça que qualquer tipo de subvenção legal não pode ser tributada por PIS,
Cofins, IRPJ e CSLL. É para que haja maior segurança jurídica. Se
será bem-sucedido ou não, só o futuro dirá. O empresariado brasileiro não
deveria utilizar-se disso para poder dizer uma coisa que a Constituição Federal
e as leis já deixam claro: créditos presumidos, enquanto receita dos Estados,
não podem ser tributados. Mas é uma questão de sobrevivência. Se o empresariado
não criar um corpo político para poder combater esse tipo de ação e de
espoliação da Receita Federal, ele só irá sangrar. Sangrar até fechar as portas
ou ter de sair do Brasil.
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