O
Direito do Consumidor é uma conquista da sociedade contemporânea, tendo
sido fundamental para promover a proteção do polo mais vulnerável nas
relações de consumo, equilibrando tais relações jurídicas. A promulgação
da Constituição de 1988 marca uma nova etapa do Direito Privado no
ordenamento jurídico brasileiro, de modo que a centralidade do sistema
não estivesse mais no Código Civil e leis especiais, portanto, na
proteção do patrimônio, mas na própria Carta Política, primando pela
defesa da dignidade da pessoa humana — bem maior a ser resguardado pelo
ordenamento e que constitui uma barreira intransponível no que concerne a
atuação dos indivíduos e do próprio Estado em suas relações jurídicas,
pois fundamento da República, nos termos do no artigo 1º, inciso III, da
CF/88.
Com a Constitucionalização do Direito Privado, as relações
jurídicas, sejam elas públicas ou privadas, passam a se pautar pelos
princípios constitucionais, os quais, também incluem “alguns institutos
essenciais do direito privado”
[1].
Não se trata da mera interferência estatal na criação de leis que
abordem assuntos de Direito Privado, mas da leitura constitucional dos
seus institutos e da inclusão constitucional de temas na
tradicionalmente abordados na esfera privada
[2].
E dentre essas regras está a defesa do consumidor, insculpida no artigo
5º, inciso XXXII da CF/88 e, logo, alçada à categoria de norma
fundamental, dever de proteção do Estado, em especial do Estado-juiz.
Nesse
sentido, chama a atenção que o Supremo Tribunal Federal tenha
interpretado o artigo 178 da CF/1988 sem conexão com o mandamento
constitucional do artigo 5,XXXII da CF/1988 e sem sintonia com a ordem
constitucional econômica esculpida no artigo 170 e seu inciso V impondo a
defesa do consumidor.
Sem dúvida, trata-se de mal-entendido, que
embargos de declaração vão esclarecer e superar. Mas é necessário, desde
logo, afirmar três pontos para evitar uma leitura inconstitucional da
Convenção de Montreal (Convenção de Montreal para a Unificação de Certas
Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, promulgada pelo
Decreto 5.910/06): a Convenção de Montreal não trata de danos morais (só
proíbe as perdas e danos punitivos), não trata da responsabilidade por
overbooking/práticas
comerciais/cláusulas abusivas e por recusa de embarque! E a Convenção
de Montreal, ao contrário do que uma leitura apressada do
decisum do STF pode afirmar, é regra imperativa de proteção dos passageiros que permite apenas derrogação
im favorem dos direitos dos passageiros-consumidores
[3].
Assim, por exemplo, em caso de demora ou atraso de voo, o consumidor
europeu pode escolher entre a indenização "taxada" e automática do
Regulamento 261/2004/CE ou da Convenção de Montreal, que procura fixar o
verdadeiro dano em caso de atraso, possuindo apenas máximos
[4].
Como
se vê, a Convenção de Montreal, ao proibir apenas as perdas e danos
punitivas, e não os danos morais (artigo 29), e como ensina a doutrina
internacionalista, deixa ao juiz abertos os critérios para a
responsabilidade por danos morais
[5],
exigindo o diálogo das fontes para a proteção dos consumidores. Em
outras palavras, ao contrário do que parece emergir do resumo da decisão
do STF, a Convenção de Montreal permite o diálogo com outras fontes de
proteção do consumidor e, obviamente, de proteção da pessoa humana em
caso de violação de direitos fundamentais (ou seria uma interpretação
inconstitucional da convenção, inferior à Constituição Federal de 1988,
por exemplo em caso de passageiros com deficiência ou no que se refere à
proteção dos dados sensíveis dos passageiros).
Note-se que a
Convenção de Montreal não deve ser considerada totalmente negativa para
os consumidores. Seu preâmbulo — que deve ser fonte para sua
interpretação em todos os países e inclusive no Brasil — é claro e
determina inclusive que uma de suas premissas é a proteção dos
consumidores
[6].
E enquanto, em caso de morte, a Convenção de Varsóvia (Convenção de
Varsóvia para a Unificação de Certas Regras relativas ao Transporte
Aéreo Internacional, promulgada pelo Decreto 20.704/31) — esta já
considerada inconstitucional por sua taxação pífia da vida humana, na
Itália — valorava o fato em 7 mil euros, a Convenção de Montreal vai até
120 mil euros de indenização, conforme as circunstâncias, isso, porém,
com o mesmo sistema de presunção de culpa e não garantindo a reparação
integral
[7].
Sua aplicação no caso de perdas de bagagens é uniforme, mas não se
aplica para pacotes de viagens. Também o estabelecimento do foro é ainda
pelo CDC e CPC, logo, o consumidor pode acionar em seu domicílio. Aqui
um diálogo forçado entre essas fontes, que permitirá inclusive as
benesses da inversão do ônus da prova, se a presunção de culpa da
convenção não puder ser usada.
Como ensina a doutrina
internacionalista, a convenção permite também a cumulação de ações,
assim é possível pedir a indenização máxima da convenção de Montreal
frente à empresa e acionar na mesma ação o administrador do aeroporto,
em caso de perdas da malas, permitindo uma discussão mais apurada. E,
nesse caso, a segunda parte da ação será totalmente regulada pelo CDC,
sem limites máximos de indenização. Da mesma forma, a convenção não
regula as ações coletivas, pois podem ser danos de massa, nestes surgem
sempre discussões sobre os defeitos dos produtos, turbinas, navegadores
etc. Nesse caso, da cumulação de ações, também a responsabilidade por
defeito dos produtos usados no transporte serão totalmente regulados
pelo CDC, inclusive para a proteção de todas as vítimas (artigo 17 do
CDC).
Mas se o diálogo das fontes entre o CDC e a Convenção de
Montreal é possível no Brasil e no mundo, mister considerar, por fim, se
a decisão que afasta o CDC ao interpretar o artigo 178 da Constituição
não está baseada em uma visão isolada do artigo 178, que obviamente — e a
Adin 2.591 estabeleceu — submete-se ao artigo 170,
caput e
inciso V da Constituição como princípio da ordem econômica e ao
mandamento do artigo 5, XXXII da CF/1988 de proteção do consumidor. Isto
é, se não haveria — no mínimo exagero — ao afirmar que se afasta o CDC
para toda a qualquer tema de responsabilidade civil do transporte de
passageiros forte no artigo 178?
O artigo 178 da CF, após a EC
7/95, afirma que a "lei disporá sobre a ordenação dos transportes
aéreo...., devendo, quanto à ordenação do transporte internacional,
observar os acordos firmados pela União". A redação é muito mais branda
do que a anterior, que determinava em um parágrafo primeiro cumprir os
acordos internacionais (parágrafo 1º. A ordenação do transporte
internacional cumprirá os acordos firmados pela União...), não havendo
motivo, agora que devemos só "observar" esses acordos — que, diga-se de
passagem, são comerciais (tratado-lei) e não devem ou podem afetar
direitos humanos e leis protetivas, "desobservar" leis especiais
nacionais como o CDC.
A inserção da defesa do consumidor na lista
de direitos fundamentais impõe ao Estado o dever de resguardar o
consumidor dos abusos que este poderia sofrer nas relações faticamente
estabelecidas no mercado em função da sua vulnerabilidade, inclusive
como passageiro de um avião, daí porque no mínimo os danos morais
sofridos terão de ser indenizados com base no princípio da reparação
integral do CDC. Enquanto direito fundamental, o direito do consumidor
possui eficácia horizontal e vertical
[8], inclusive no que tange a interpretação de tratados que afetam a proteção dos consumidores.
Ademais,
o direito do consumidor é igualmente um princípio da ordem econômica,
cujo objetivo é estabelecer um modelo econômico que pugne por uma
liberdade de mercado com certa intervenção estatal
[9],
a fim de guiar a sociedade à consecução da justiça social (artigo 3º da
CF/88). Afinal, esse é um preceito fundante da ordem econômica, a qual é
exteriorizada por uma série de princípios previstos no artigo 170 da
Constituição, os quais são entendidos enquanto comandos norteadores da
conduta dos agentes econômicos e insculpem-se nas políticas econômicas
implementadas pelo Estado, de modo a não ver o texto constitucional
esvaziado
[10].
Dentre
esses princípios está a "defesa do consumidor", especificamente no
artigo 170, inciso V, cabendo ao Estado realizar atos ou editar medidas
que não só restrinjam, condicionem ou suprimam a iniciativa privada,
como também promovam condutas específicas, a fim de garanti-lo
[11].
Nesse escopo, pode-se dizer que todas as regras inseridas dentro do
capítulo da ordem econômica devem se guiar por esse princípio, afinal, o
consumidor é o elo entre o mercado e a economia, sem o qual a atividade
econômica não se desenvolve
[12].
Se
em um primeiro momento se pode concluir da leitura da ementa que o STF
fez uma leitura restritiva da própria Carta de 1988, em detrimento da
proteção do consumidor, com base apenas no artigo 178 da Constituição
Federal. Mister lembrar que se a Constituição Federal é uma unidade de
valores, assim dever-se-ia realizar uma leitura harmoniosa e dialogada
entre as diversas prescrições constitucionais
[13],
especialmente no que diz respeito às cláusulas pétreas — como o
artigo 5, inciso XXXII —, as quais, importa lembrar, estão protegidas da
atuação e deliberação do poder constituinte derivado (artigo 60,
parágrafo 4º) por terem o condão de “assegurar a integridade da
Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o
enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade”
[14].
Por
conseguinte, se uma simples modificação não é plausível ao legislador,
não seria ela “alterável” pelo Poder Judiciário, especialmente quando da
realização de uma leitura restrita a um único dispositivo do texto
constitucional ou por qualquer outro ente do poder público — e nem mesmo
nas relações jurídicas entre particulares, haja vista que os direitos
fundamentais no Direito brasileiro produzirem eficácia imediata e
irrestrita
[15].
Ademais,
mesmo se a leitura do texto político se restringisse ao capítulo da
ordem econômica, a regra contida no artigo 178 tampouco prevaleceria,
haja vista confrontar-se diretamente com um princípio norteador da
atividade econômica. Imperioso lembrar que, muito embora regras e
princípios sejam espécies de normas, os princípios são “mandamentos de
otimização”, os quais devem ser cumpridos de acordo com “as
possibilidades jurídicas e fáticas” de cada situação, servindo como um
norte para a aplicação das regras e orientando a sua aplicação
[16].
Por
força disso, não parece admissível que a interpretação mais benéfica ao
consumidor seja ignorada, até mesmo porque esses tratados estariam
hierarquicamente abaixo da Constituição Federal, haja vista que, quando
internalizados, por tratarem de regras de Direito internacional geral,
eles seriam consideradas equiparáveis a leis ordinárias no ordenamento
interno, seguindo o posicionamento do próprio Supremo Tribunal Federal
quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004/SE de 1977. E
mesmo os tratados de direitos humanos, que não é o caso da Convenção de
Montreal, são apenas supralegais, nunca superiores à Constituição.
Assim, apesar de a norma do artigo 178 da Constituição Federal
determinar a observação dos tratados, estes devem e podem ser
observados, seja por suas lacunas naturais, internas e as externas (como
os danos morais, que dependem da
lex fori[17]),
em diálogo com o CDC e todo o sistema de proteção do consumidor, de
clara origem também constitucional (artigo 48 dos ADCT), sob pena de
estarmos aceitando um reducionismo do dever de proteção dos
consumidores, parte integrante e valor fundamental da CF/1988. Temos
certeza de que esse entendimento prevalecerá no Brasil.
[1] BARBOSA, Fernanda Nunes.
Informação: direito e dever nas relações de consumo. São Paulo: RT, 2009, p. 85.
[2] SOUZA NETO, Cláudio P.; SARMENTO, Daniel.
Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 44.
[3] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p. 21.
[4] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p.111.
[5] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p. 107.
[6] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p. 60.
[7] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p. 176 et seq.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 31-33.
[9] SILVA, José Afonso.
Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: ed. Malheiros, 2003, p. 763.
[10] SOUZA, Washington Peluso Albino de.
A experiência brasileira na Constituição econômica. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 102, pp. 29-32, abr./jul., 1989, p. 29.
[11] MIRAGEM, Bruno Barbosa.
Curso de Direito do Consumidor. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 45.
[12] FONSECA, João Bosco Leopoldino da.
Direito Econômico. 7. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 95.
[13]
Cf. MARQUES, Cláudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova
teoria geral do direito: um tributo à Erik Jayme. In: MARQUES, Cláudia
Lima.
Diálogo das Fontes: do conflito à coordenação de normas do Direito brasileiro.
São Paulo: RT, 2012; MARQUES, Claudia Lima. Diálogo entre o Código de
Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do ‘diálogo das fontes’ no
combate às clausulas abusivas.
Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 45, pp. 70-99, jan./mar. 2003.
[14] MENDES, Gilmar Ferreira.
Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1998, p. 92.
[15] SARLET, Ingo Wolfgang.
A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, passim.
[16] ALEXY, Robert.
Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90-91.
[17] CACHARD, Olivier.
Le transport international aérien des passagers. Haye: LPRecueils de Cours, 2015, p. 105.
http://www.conjur.com.br/2017-jun-21/regras-convencao-montreal-dialogo-fontes-cdc