BRASÍLIA - Apesar
de os valores democráticos serem considerados inquestionáveis, como a
liberdade e o respeito às opiniões individuais, pesquisas de diversos
institutos mostram que uma parte considerável da população brasileira
não percebe plenamente os benefícios econômicos e sociais da democracia.
Realizada anualmente em vários países da América Latina, estudo
coordenado pelo Latinobarómetro aponta que o Brasil tem a segunda menor
taxa de apoio à democracia, perdendo apenas para a Guatemala.
Cidadãos de 18 países latino-americanos tiveram de responder com qual
frase mais concordavam: a democracia é preferível a qualquer outra
forma de governo; em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode
ser preferível a um democrático; tanto faz, um regime democrático e um
não democrático dá no mesmo. Na média das pesquisas entre 1995 e 2013,
44% dos brasileiros dizem que a democracia é a melhor escolha. Para 19%,
um governo autoritário pode ser preferível em certas circunstâncias e,
para 24%, não faz diferença. O restante não respondeu.
No Uruguai, país com a maior média de apoio à democracia, 78% dizem
preferir um sistema democrático; 15% defendem o autoritarismo e 10% são
indiferentes. O Brasil perde apenas para a Guatemala, onde apenas 38%
preferem a democracia a qualquer outro tipo de governo.
A democracia foi uma das principais conquistas políticas do
Brasil no século 20. Em 1984, ainda sob regime militar, milhões de
brasileiros participaram de comícios, passeatas e outras manifestações
públicas, em várias capitais, no movimento Diretas Já!, que reivindicava
eleições diretas no Brasil. Em 2013, quase 30 anos depois da
reinstalação do sistema democrático no país, as ruas foram novamente
ocupadas por milhões de manifestantes reivindicando, na avaliação de
diversos especialistas, mais voz e avanço da democracia brasileira.
Para especialistas ouvidos pela Agência Brasil, os brasileiros estão
insatisfeitos com o funcionamento do regime no país. Em outras palavras,
“querem mais democracia”. O cientista político José Álvaro Moisés,
coordenador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPS) da
Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "A Desconfiança
Política e Seus Impactos na Qualidade da Democracia", diz que o grau de
descrença em relação às principais instituições da democracia
representativa é muito elevado.
“No caso dos partidos políticos, nada menos do que 82% da população
desconfiam deles, e, no caso do Congresso Nacional, 79%, pelas minhas
pesquisas”, destaca Moisés. Embora a descrença no Judiciário seja menor,
a sensação de injustiça é alta. “Aproximadamente 90% dos entrevistados
de todos os segmentos sociais, regiões do país, classe, sexo, etnia e
religiosidade, consideram que a lei não trata os cidadãos de maneira
igual, e quase 80% consideram que o acesso dos brasileiros à Justiça é
desigual, que não há oportunidades iguais de acesso.”
O cientista político acredita que as mesmas questões levantadas nas
pesquisas também apareceram, de certa forma, nas manifestações de junho e
julho de 2013, que levaram cerca de 2 milhões de pessoas a protestar
nas ruas. “Muitos manifestantes chamaram a atenção para o vazio dos
partidos políticos e, no caso do Parlamento, não foi à toa que houve
tentativas de invasão às câmaras de Vereadores e assembleias
legislativas em alguns estados e até do Congresso Nacional”.
Segundo o sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB)
Eurico Cursino, o cidadão brasileiro não tem vocação para viver calado,
com medo, e, portanto, não contesta a democracia como valor cultural na
sociedade, como direito de pensar e se expressar livremente. No entanto,
como expressam as pesquisas e as manifestações populares, há uma
crítica clara em relação à democracia como “regra da disputa política,
da luta pelos cargos do Estado e tomada de decisões”.
O diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais
(Ibri), Pio Penna Filho, destaca que o regime democrático é preferível
“mesmo quando pensamos em uma democracia cara e ineficiente como a
brasileira” porque as pessoas podem participar, de alguma forma, das
decisões do Estado. Mas ela, sozinha, não basta. “Vemos um mundo
político muito desvinculado da sociedade, a classe política brasileira
perde a noção do compromisso social e isso desvaloriza a democracia”,
avalia.
O economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) José
Ronaldo Souza acredita que uma democracia equilibrada oferece melhores
condições para que um país receba investimentos. “A democracia é boa
para gerar crescimento econômico à medida que, dado o sistema de pesos e
contrapesos, permite que os investidores tenham segurança maior do que
com um grupo político isolado que se apodera do governo”.
Os especialistas afirmam que a democracia brasileira sofre as
consequências da falta de proatividade das elites políticas em relação à
sociedade e dos cidadãos, eleitores, em relação à classe política.
Cursino defende que alguns fatores históricos fazem com que os
brasileiros não se vejam como cidadãos responsáveis pelo governo do
país, colocando-se em uma posição passiva na maior parte do tempo.
“As fundações da sociedade são de cima para baixo. A sociedade carece
de bases comunitárias que tenham servido de alicerce para a formação de
instituições políticas. As instituições políticas vêm sempre de cima
para baixo e existe uma vida comunitária desconectada das instituições
políticas”, explica Cursino, o que faz com que os cidadãos que se tornam
conscientes de seus direitos estejam, nessa estrutura,
“sociologicamente isolados”.
Os níveis de associativismo da população brasileira em sindicatos,
partidos políticos, conselhos de saúde e orçamento participativo,
associações de moradores e de pais e mestres ficam em torno de 2%. Para o
sociólogo, essas relações representam democracia de baixo para cima e,
na medida em que se tornam densas o suficiente, têm força para
influenciar no jogo democrático, ampliando a participação do povo nas
decisões. “Isso falta brutalmente na nossa sociedade”.
Apesar dessa relativa passividade, Moisés avalia que uma série de
exemplos nas décadas recentes mostram que, quando se abre a estrutura de
oportunidades para a participação das pessoas, elas tendem a
utilizá-la, e cita as mobilizações de trabalhadores na região do ABC
paulista, no final da década de 1970, as Diretas Já!, na década de 1980,
o impeachment presidencial, na década de 1990, e as manifestações do
ano passado.
“Nenhum governo abriu grandes mecanismos de participação para a
população. Todos os presidentes eleitos de 1988 para cá, sem exceção,
mencionaram a reforma política no discurso de posse e nenhum a fez”,
critica o cientista político, destacando que há poucas iniciativas de
baixo para cima, como as leis da Ficha Limpa e da Improbidade
Administrativa, ambas de iniciativa popular, e nenhuma de cima para
baixo.
O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), pontua que é preciso haver movimentos
convergentes, com mudança de comportamento das lideranças políticas e
maior participação dos cidadãos. “Se os eleitores punissem mais os
políticos que se comportam mal, não votando neles, os políticos se
sentiriam pressionados. Mas os políticos também não precisam esperar
isso e poderiam cuidar de punir seus colegas parlamentares que, por
exemplo, usem mal os recurso públicos.”
Apesar de todas as críticas, as manifestações recentes, na maior
parte formada por jovens que não viveram o regime militar no Brasil, não
questionam a importância do regime democrático. Ao contrário, pedem
“mais democracia”. Segundo Moisés, apesar de não estarem perto do
desejado, os indicadores sociais melhoraram muito desde o fim da
ditadura.
Ele destaca ainda que as eleições não bastam para a existência da
democracia e que as manifestações populares devem pautar a campanha
deste ano. “Vai ser inevitável, a meu juízo, que na campanha eleitoral
deste ano esses temas apareçam no debate público. Os candidatos vão ser
forçados a falar sobre isso. Serão tanto mais forçados quanto mais a
mídia, o jornalismo crítico, a comunicação por meio das redes sociais,
cobrarem dos candidatos que se manifestem sobre o que querem fazer e
como.”
(Agência Brasil)