Aqui tomamos por base a decisão dos ministros em relação ao réu João
Paulo Cunha — no entanto, tal decisão trata da questão da ocultação de
forma genérica, de forma que pode ser considerada como paradigma nessa
questão.
,
p. 29: “a ocultação de um bem ou de determinada quanta de origem
ilícita, sem a finalidade de inseri-los nos sistemas econômico e
financeiro, não configura lavagem de dinheiro, podendo caracterizar
outro ilícito penal (v.g., receptação ou favorecimento real)”.
Por mais que existam inúmeras definições de lavagem de dinheiro
, a mais precisa é aquela prevista na lei, em especial no
caput do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro: “ocultar ou dissimular” bens direitos ou valores provenientes de infração penal.
A
questão central, portanto, para que se defina a materialidade da
lavagem de dinheiro é identificar no que consiste esse ato de ocultar ou
dissimular bens. Aquele que pratica um crime patrimonial e esconde o
dinheiro em fundo falso de parede, que enterra o bem ou que o coloca na
conta de sua esposa pratica lavagem de dinheiro? Aquele que recebe
dinheiro ilícito em espécie para dificultar seu rastreamento pode ser
punido pelo delito em comento? Qual a complexidade ou sofisticação dessa
ocultação para que seja caracterizado o crime em questão?
Há quem
sustente que a mera ocultação já revela o crime de lavagem de dinheiro,
uma vez que a lei não exige que os valores “sujos” sejam reintroduzidos
na economia com aparência de licitude para a consumação do delito. A
realização da 1ª etapa do ciclo de lavagem, o simples “esconder”, já
seria suficiente para a consumação do tipo penal.
Por outro lado,
há quem afirme o contrário: a mera ocultação não é lavagem de dinheiro
quando desacompanhada de um ato adicional, seja objetivo, seja
subjetivo, que aponte para a busca de reinserir os bens na economia
formal.
Neste último sentido, merecem destaque alguns votos de
ministros integrantes do Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 470
referentes à lavagem de dinheiro
[1], no sentido de que esse crime não se limita a uma simples ocultação de bens
, mas exige algo mais.
Embora
essa tese tenha sido vencedora — após julgamento dos embargos
infringentes interpostos —, a natureza deste “algo mais” que se exige da
ocultação na lavagem de dinheiro não ficou clara.
O ministro Peluso manifestou-se da seguinte forma:
“Em
síntese, creio não se deva confundir o ato de ‘ocultar’ e ‘dissimular’ a
natureza ilícita dos recursos, presente no tipo penal de lavagem de
dinheiro, e o que a doutrina especializada descreve como estratagemas comumente adotados para que o produto do crime antecedente — já obtido — seja progressivamente reintroduzido na economia, agora sob aparência de licitude,
com os atos tendentes a evitar-lhe o confisco ainda durante o iter
criminis do delito antecedente, em outras palavras, para garantir a
própria obtenção do resultado do delito” (fls.53894 da Ap 470).
Com isso, o ministro entendeu que a ocultação
, quando ocorrida durante o
iter criminis —
que termina com a consumação do delito — não caracteriza a lavagem de
dinheiro. Aquele que oculta a forma de recebimento na corrupção, por
exemplo, não comete o crime de lavagem de dinheiro porque tal ato se deu
durante a execução, e não após a consumação do delito.
O ministro Luís Roberto Barroso — ao distinguir o crime de lavagem de dinheiro do crime de corrupção passiva
— assentou que:
“O
recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da
propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção
passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem
de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário
identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida” (fls.31 do Acórdão dos Sextos EI da AP470, sem grifos no original).
Em
outras palavras, o ministro parece ter ido além do voto anteriormente
destacado, exigindo não apenas um ato de simples ocultação posterior ao
iter criminis,
mas um ato “destinado a recolocar na economia formal a vantagem
indevidamente recebida”, ou seja, um ato específico de reciclagem, ou
destinado à reciclagem
.
Já o ministro Teori Zavascki enfrentou o tema nos seguintes termos:
“À
luz dessas premissas teóricas, tem-se que os fatos narrados na denúncia
– o recebimento de quantia pelo denunciado por meio de terceira pessoa –
não se adequam, por si sós, à descrição da figura típica. Em primeiro
lugar porque o mecanismo de utilização da própria esposa não pode ser
considerado como ato idôneo para qualifica-lo como “ocultar”; e ademais,
ainda que assim não fosse, a ação objetiva de ocultar reclama, para
sua tipicidade, a existência de um contexto capaz de evidenciar que o
agente realizou tal ação com a finalidade específica de emprestar
aparência de licitude aos valores. Embora conste da denúncia a
descrição da ocorrência de crimes antecedentes (contra o sistema
financeiro nacional e a administração pública), bem como a afirmação de
que o embargante ‘consciente de que o dinheiro tinha como origem
organização criminosa voltada para a prática’ desses crimes, ‘almejando
ocultar a origem, natureza e o real destinatário do valor pago como
propina enviou sua esposa (...) para sacar no caixa o valor de (..), ela
não descreve qualquer ação ou intenção do réu tendente ao branqueamento
dos valores recebidos” (fls.43 do Acórdão dos 6os Embargos
Infringentes)
Assim, o ministro expõe que a ocultação deve trazer
consigo a finalidade específica de emprestar aparência licita aos
valores decorrentes do crime. Não se trata de um ato objetivo, mas de um
elemento subjetivo especial,, uma intenção implícita no tipo penal,
que deve ser identificada para materializar a lavagem de dinheiro. A
mera intenção de esconder é atípica. Nos parece a posição mais adequada.
Mas,
ainda que os fundamentos e requisitos expostos pelos ministros citados
tenham suas peculiaridades — e até divirjam em certos pontos — parece
haver um denominador comum entre todos: a mera ocultação não basta para a
tipicidade da lavagem de dinheiro. É preciso algo mais, seja um
estratagema para reintroduzir o bem ilícito na economia realizado
após o iter criminis
anterior (ministro Peluso), seja um ato posterior destinado a recolocar
na economia formal a vantagem indevidamente recebida (ministro
Barroso), seja a identificação de um contexto capaz de evidenciar que o
agente realizou a ação com a finalidade específica de emprestar
aparência de licitude aos valores (ministro Teori).
Note-se que
nenhum deles exige a reintrodução dos valores ilícitos na economia, uma
vez que o tipo penal não impõe tal circunstância. Porém, todos destacam a
necessária demonstração desse algo a mais do que a mera ocultação, seja
um ato objetivo, seja uma finalidade específica revelada naquele
contexto.
Portanto, o ato de enterrar o produto do crime, de
escondê-lo em paredes falsas, ou na casa de terceiros — ainda que seja
ocultar
— não parece característico da lavagem de dinheiro, uma
vez que qualquer movimentação desses valores (desenterrar, retirar do
esconderijo, buscar na casa de terceiro) fará com que retornem ao
status quo ante, à natureza original, de produtos sem origem lícita
[2]. Ou seja, não são atos com capacidade potencial de facilitar a reintrodução dos bens na economia formal.
Afinal,
se o mero ocultar caracterizasse a lavagem de dinheiro, a única
diferença entre esse crime e o de favorecimento real (CP, artigo 349)
seria a possibilidade de incriminar o autor do crime antecedente no
primeiro e a inviabilidade dessa operação no último, fato que não
justifica o significativo aumento de pena de 1 a 6 meses de detenção
(favorecimento) para 3 a 10 anos de reclusão (lavagem de dinheiro).
A diferença de penas indica uma distinção qualitativa entre a lavagem de dinheiro e o favorecimento real, um
plus que confere gravidade maior àquela. E esse
plus
é justamente a intenção de lavar, de reciclar, de completar as três
fases necessárias ao branqueamento do capital — para usar a definição do
ministro Teori Zavascki. A lavagem é uma espécie de favorecimento real
qualificado pela intenção de ocultar os bens através de sua reciclagem.
Não se trata mais do simples escamoteamento para tornar seguro o
proveito do crime, mas da ocultação ou dissimulação que indique uma
tentativa — presente ou futura — reintegração do produto do crime à
economia com aparência de licitude.
Por isso, o tipo penal de
lavagem — na forma do caput do artigo 1.º — apresenta-se como
assimétrico, pois o elemento volitivo não recai apenas sobre os
elementos objetivos do tipo (dolo), mas se estende à reinserção do
capital na economia formal. Ainda que tal reintegração não seja
necessária para a consumação tipo, é imprescindível a demonstração da
vontade de alcançá-la, no plano subjetivo. Do contrário, haverá apenas
favorecimento real, desde que o autor da ocultação seja distinto daquele
que cometeu o crime antecedente.
* Trecho de palestra
proferida no Seminário Internacional sobre “Combate à lavagem de
dinheiro e ao crime organizado”, organizado pelo STJ, AMB, CJF e
Instituto Innovare.
[1]
Aqui tomamos por base a decisão dos ministros em relação ao réu João
Paulo Cunha — no entanto, tal decisão trata da questão da ocultação de
forma genérica, de forma que pode ser considerada como paradigma nessa
questão.
[2]Da mesma forma, para Bonfim,
Lavagem de dinheiro,
p. 29: “a ocultação de um bem ou de determinada quanta de origem
ilícita, sem a finalidade de inseri-los nos sistemas econômico e
financeiro, não configura lavagem de dinheiro, podendo caracterizar
outro ilícito penal (v.g., receptação ou favorecimento real)”.
é
advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do
Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.