Com maior acesso a capital de risco, empreendedores mais maduros e um mercado repleto de ineficiências, o Brasil começa a se tornar um novo polo de unicórnios
Não foram poucos os caminhos trilhados pelo francês Fabien Mendez
antes de empreender. Em 2009, já formado em economia e direito, o aluno
do mestrado em finanças e estratégias da Universidade Sciences Po, de
Paris, iniciou a carreira como analista do JP Morgan. Passados apenas
sete meses, desembarcou no Brasil. Não era o seu primeiro contato com o
País. Dois anos antes, havia feito um intercâmbio na Fundação Getulio
Vargas (FGV), em São Paulo. Na segunda visita, veio para ficar.
Trabalhou nas operações locais do banco BNP Paribas e da Ernst &
Young (EY).
Em 2012, decidiu que era o momento de dar asas à sua vocação
empreendedora e fundou a GoJames, aplicativo de transporte de
passageiros, nos moldes do Uber. “Esbarramos na regulação e foi um
fracasso total em termos de negócios”, diz Mendez sobre a ideia, que
teve vida curta. “Mas foram os oito meses de maior aprendizado em toda a
minha trajetória.” A bagagem adquirida trouxe o fôlego para seguir em
frente. E a inspiração para um novo percurso veio enquanto caminhava
pela Avenida 9 de Julho, na capital paulista, ainda desolado pelo
insucesso recente. O vaivém de motoboys, em suas palavras, “um a cada
dois segundos”, despertou a curiosidade de pesquisar mais sobre os
famosos gargalos logísticos brasileiros. Alguns meses depois, nascia a
Loggi, startup de serviços de entrega.
Em seis anos de operação, a Loggi acumulou bem mais que os
quilômetros percorridos pelas motos, vans e carros disponíveis no seu
serviço. No período, a empresa reforçou seu caixa com seis rodadas de
investimento, que totalizaram US$ 295 milhões e incluíram fundos como
Monashees, IFC Venture e Kaszek Ventures. Anunciado em junho, o aporte
mais recente, de US$ 150 milhões, fez com que a companhia alcançasse um
destino até pouco tempo distante para uma startup brasileira: o estágio
unicórnio, jargão usado no mercado para batizar as novatas avaliadas em
US$ 1 bilhão ou mais. “Nosso objetivo não é ser unicórnio ou qualquer
que seja o termo. Essa etapa só é simbólica por validar que estamos no
caminho certo”, afirma Mendez, que aponta o desafio de não deixar que o
novo patamar suba à cabeça. “A responsabilidade é maior. Temos plena
consciência de que existe um cemitério repleto de empresas que atingiram
esse status.”
A Loggi não é a única novata brasileira a cumprir esse roteiro
bilionário. O aplicativo de mobilidade 99 foi o pioneiro, em janeiro de
2018, ao ser comprado pela chinesa Didi Chuxing. De lá para cá, outras
oito startups locais ganharam o mesmo status: a fintech Nubank; a
holding de aplicativos Movile e sua investida iFood, de delivery de
restaurantes; a PagSeguro e a Stone, de pagamentos; e a Arco Educação,
de sistemas de ensino. As três últimas superaram a marca por meio da
abertura de capital nos Estados Unidos. O nome mais recente a entrar
nesse clube tão seleto que sequer chega a uma dezena de integrantes é a
Gympass, plataforma de benefícios de saúde e bem-estar que dá acesso a
academias de ginástica. Depois de ganhar musculatura e chegar a 14
países, a companhia fundada em 2012 anunciou, em meados de junho, um
aporte de US$ 300 milhões.
Liderada pelo fundo japonês Softbank, a rodada avaliou o negócio em
US$ 1,1 bilhão. “Acreditamos que esse investimento nos permitirá levar a
nossa solução a mais organizações globalmente”, afirmou, em nota, César
Carvalho, cofundador e CEO da Gympass. “O Brasil chegou a um momento de
inflexão e a história da Gympass é prova disso: uma startup latina com
modelo de negócios inovador, operação escalável e os atributos para se
tornar um líder global”, ressaltou Scott Sobel, sócio-fundador do Valor
Capital Group. Além de participar da última rodada, o fundo de venture
capital com sedes no Brasil e nos Estados Unidos investe na operação
desde os seus estágios iniciais.
MATURIDADE
Fundadora da americana Cowboy Ventures,
Ailen Lee foi a primeira pessoa a usar o termo unicórnio para designar
as startups desse porte, em 2013. Na época, a maioria das representantes
da safra local de novatas bilionárias já dava seus primeiros passos no
mercado. A definição ganhou popularidade nos anos seguintes. Entre boa
parte dos empreendedores, porém, a alcunha não é vista como um norte a
ser perseguido e sim como uma etapa e uma consequência natural de
projetos consistentes. É inegável, no entanto, que o surgimento dos
primeiros casos de sucesso no Brasil mereça atenção. “É um marco da
maturidade desse ecossistema local.
Hoje, temos mais investidores, aceleradoras, espaços de coinovação e
casos de sucesso que inspiram outras startups”, diz Marcelo Nakagawa,
professor de empreendedorismo do Insper. Luis Franco, líder de
aceleração da Endeavor, aponta outros fatores. “Já existe uma massa
crítica de empreendedores mais preparados e com carreiras sólidas, além
de muito capital externo de risco entrando e de fundos locais recém
captados”, ressalta. “As outras regiões já estão saturadas. Por isso, há
superfundos olhando para a América Latina e, em especial, para o
Brasil”, acrescenta Nakagawa. O ano passado serve como um termômetro
desse aquecimento no País e na região. A América Latina alcançou um
recorde de US$ 2 bilhões em investimentos de venture capital. O Brasil
foi o destino de US$ 1,3 bilhão desses aportes, ou 65% do total, por
meio de 259 acordos, segundo a Associação Latino-Americana de Capital de
Risco e Privado (Lavca).
Na ponta dos investimentos recentes na Loggi e na Gympass, e com um
histórico de rodadas em empresas como Uber, Didi Chuxing e WeWork, o
Softbank é o maior símbolo desse contexto. Em março, a companhia lançou
um fundo de US$ 5 bilhões focado exclusivamente na América Latina. “Há
muitas inovações e disrupções na região. As oportunidades de negócios
nunca foram tão fortes”, afirmou Marcelo Claure, CEO do Softbank na
região, em comunicado divulgado na época. No mercado, o desembarque é
visto como um fator que já começa a impulsionar a capitalização e os
aportes de fundos dedicados às etapas anteriores de desenvolvimento de
uma startup. Muitos deles de olho na perspectiva da elevada valorização
de um ativo com uma eventual entrada do Softbank mais à frente.
Muitos dos empreendedores no comando dos primeiros unicórnios
brasileiros encontraram um cenário bem menos favorável quando iniciaram e
desenvolveram seus respectivos projetos. Um dos principais desafios
eram as oscilações na oferta de capital ou mesmo a escassez de recursos
em determinados estágios de investimento. Mendez, da Loggi, conta que
depois de 2015, com a recessão, era quase impossível levantar dinheiro. A
fonte secou justamente quando a startup lançou as entregas para o
e-commerce, o que demandava muito caixa. “Chegamos a ficar a poucos dias
da falência. Passamos a ser muito mais conservadores financeiramente”,
observa. O respiro veio em outubro do ano passado, quando o Softbank e a
Kaszek Ventures injetaram US$ 110 milhões na operação. “Muitos pensam
que as histórias de sucessos são sempre lineares, em evolução, mas
tivemos que insistir muito para criar a nossa sorte.”
Para Amure Pinho, presidente da Associação Brasileira de Startups
(Abstartups), apesar das dificuldades, que não se restringiam ao
financiamento, as nuances de um mercado que ainda estava em processo de
maturação ajudaram a forjar empreendedores e novatas com um perfil
diferenciado, distante do clichê comumente associado a essas empresas em
países como os Estados Unidos, onde o capital é farto e muitas startups
são conhecidas pela cultura de “queimar dinheiro”. “Esses
empreendedores entenderam que não adiantava ter uma boa ideia se não
conseguissem andar com as próprias pernas”, diz. “Isso possibilitou a
criação de negócios orientados a resultado.”
REINVENÇÃO
Inicialmente centrada em serviços de
mensagens de texto (SMS) para empresas, a Movile é uma das pioneiras no
ecossistema brasileiro – e um bom exemplo da mentalidade que pontua a
trajetória dessa geração de unicórnios. A startup é fruto da fusão entre
quatro empresas fundadas por estudantes universitários cujas histórias
começaram a se cruzar a partir de 1999. “Naquela época não existia
mercado, muito menos fundos de venture capital. Nós nos preocupamos em
ter um modelo viável financeiramente desde o dia zero”, conta Eduardo
Henrique, cofundador da companhia. No caminho, a companhia encontrou
outras barreiras.
Instalada em uma incubadora em Campinas (SP), a novata teve todos os
seus computadores e servidores roubados. Mas ninguém desistiu. Além da
resiliência, a Movile ilustra bem mais uma fórmula presente nessa safra
de empreendedores: a capacidade de se reinventar. A partir de 2007, com o
lançamento do iPhone, os smartphones passaram a ocupar o espaço dos
celulares básicos, os chamados feature phones, o que ameaçava seriamente
a sobrevivência da empresa. A solução veio em duas frentes. De um lado,
a companhia investiu na aquisição de uma série de aplicativos. Em outra
ponta, Henrique foi morar no Vale do Silício, berço das inovações
tecnológicas. E de lá trouxe um mantra que foi incorporado ao dia a dia e
à cultura da startup: errar rápido, barato e aprender com esses erros.
Na época, a Movile contabilizou 20 projetos fracassados, em um curto
espaço de tempo.
Da ideia seguinte, no entanto, nasceu o PlayKids, aplicativo de
streaming de vídeos e conteúdos para crianças que ganhou escala global e
tornou-se um dos mais populares entre os usuários mirins dos
dispositivos da Apple. Hoje, da mescla de aquisições e do
desenvolvimento próprio, o portfólio do grupo inclui negócios como a
Sympla, plataforma digital de gestão de eventos e de venda de ingressos,
e o iFood, mais um unicórnio brasileiro. “O que a Movile mais aportou
no iFood não foi dinheiro. Mas sim, modelo de gestão e pessoas”, diz
Carlos Eduardo Moysés, CEO do iFood. “Nós mais erramos que acertamos.
Mas muitas vezes aquele único acerto é o sucesso do negócio.”
A mudança no modelo e a rápida transição para um novo mundo são
outras características valorizadas pelos investidores. “Um dos segredos
para um empreendedor é se apaixonar pelo problema e não pela solução.
Resiliência é diferente de teimosia. O ideal é tentar resolver o mesmo
problema de formas diferentes”, diz Romero Rodrigues, sócio do fundo de
investimentos Redpoint eventures e outro pioneiro do empreendedorismo
digital no País. Com apenas R$ 300, ele fundou o comparador de preços
Buscapé, em 1998. Um ano depois, o negócio recebeu seu primeiro aporte,
de US$ 1 milhão.
Outras duas rodadas vieram até que a operação fosse vendida, em 2009,
por US$ 374 milhões. Desde então, Rodrigues dedica parte de sua rotina
aos investimentos e à mentoria para startups, replicando um modelo comum
em mercados como o Vale do Silício. Além do talento das pessoas à
frente das novatas e de seus respectivos times, o que classifica como o
ativo mais valioso de uma empresa desse porte, ele destaca que é sempre
interessante o empreendedor ter um pouco de narcisismo, até mesmo para
liderar e atrair bons profissionais. “Mas é preciso saber ouvir. Quando
quem está no comando é o senhor da razão, é um péssimo indicativo.”
A Gympass seguiu esse conselho. Criada com o foco no consumidor
final, a empresa do portfólio da Redpoint eventures redirecionou seu
modelo para o mercado corporativo. A ideia é que as companhias possam
oferecer um leque amplo de academias para seus funcionários, com
descontos e benefícios. Em contrapartida, esse formato traz vantagens em
termos de redução de custos com planos de saúde e absenteísmo, entre
outras questões. Em entrevista concedida à DINHEIRO há três anos, o
fundador César Carvalho atribuiu boa parte dessa guinada aos conselhos
de Rodrigues e de outros investidores, como Kees Koolen, cofundador e
ex-CEO da agência de viagens on-line Booking.com. “Não tínhamos
referências e a experiência deles está sendo essencial na construção do
negócio”, afirmou, na época.Outros aspectos unem as startups bilionárias brasileiras “Todas elas
resolvem problemas em mercados grandes, que ninguém quis peitar, como os
bancos e a logística, de forma mais rápida, eficiente e com tecnologias
escaláveis”, diz Nakagawa, do Insper. Para as fontes ouvidas pela
DINHEIRO, além de seu porte, o mercado brasileiro é um verdadeiro
laboratório vivo, com diversas ineficiências que são um convite para a
inovação. “É preciso pensar com ambição, em transformar uma indústria,
cortar intermediários. Todas as unicórnios brasileiras contestaram algo
grandioso”, observa Pinho, da Abstartups.
CANDIDATAS
Depois de produzir seus primeiros
unicórnios, a perspectiva é de que o mercado brasileiro entre em um
círculo virtuoso. “O que estamos vendo é o resultado do que foi plantado
há dez anos”, afirma Rodrigues. “Vamos começar a ver mais casos, pois
temos pela frente as safras de 2014 em diante.” Não faltam candidatas a
romper a barreira do bilhão. A lista inclui nomes como QuintoAndar, Dr.
Consulta, Grow, Creditas, VivaReal, Neoway, Contabilizei, Conta Azul e
MaxMilhas, entre outras, em um universo de mais de 10 mil startups no
País.
As fichas também recaem em “veteranas”. É o caso do GuiaBolso,
fundada em 2012 e dona de um aplicativo de controle de finanças
pessoais. A empresa já captou US$ 80 milhões e é mais um exemplo de
persistência. “Recebemos mais de 60 nãos em um período de quatro meses. O
mercado era formado por investidores tradicionais, que não viam que era
possível fazer algo diferente em um mercado tão consolidado como o
bancário”, afirma Thiago Alvarez, CEO e cofundador do GuiaBolso, ao lado
de Benjamin Gleason. Para colocar o negócio em pé, o empreendedor
vendeu um apartamento que estava terminando de pagar, o único bem que
possuía na época. “Acho que ainda era um pouco cedo para o mercado e
precisamos dar voltas a mais. Tivemos que provar que era possível.”
Hoje, com 5,3 milhões de usuários, a startup está diversificando seu
negócio com a oferta de curadoria de produtos financeiros, a começar
pelo empréstimo pessoal. Além de ajudar o usuário a gerenciar suas
finanças, o plano é indicar os melhores investimentos de acordo com o
seu perfil.
Apesar do cenário favorável, há um consenso de que o mercado ainda
tem desafios pela frente. “Temos bastante a melhorar em capital para os
estágios semente e Série B”, diz Itali Collini, diretora de operações no
Brasil do 500 Startups, fundo americano de venture capital que possui
43 brasileiras em seu portfólio, entre elas, a Conta Azul e a Viva Real.
“E ainda existe uma certa aversão dos investidores ao risco. Há uma
mentalidade retrógrada de que, necessariamente, todas as startups
investidas têm que vingar.”
Outra questão é a dúvida sobre a capacidade de produzir talentos em
um volume condizente com a demanda do setor. A perspectiva é de que essa
carência intensifique e encareça a disputa por bons profissionais. Uma
das alternativas é garimpar pessoas capacitadas em boas universidades e
centros de pesquisa e desenvolvimento. É o caso da Loggi, que planeja
usar parte dos US$ 150 milhões aportados para contratar mais de mil
engenheiros no “padrão do Vale do Silício” até 2020. O iFood, por sua
vez, está investindo mais de US$ 20 milhões em uma academia de
inteligência artificial que vai treinar profissionais e produzir
pesquisas, além de trocar informações com universidades para incentivar o
desenvolvimento do conceito no País. “É preciso fomentar essa discussão
para que as pessoas se interessem por novas tecnologias”, diz Moysés,
do iFood. “O Brasil é um mercado gigantesco para explorar e tem um
potencial enorme para gerar empresas de mais de US$ 100 bilhões. Estamos
apenas no começo.”
https://www.istoedinheiro.com.br/a-corrida-do-bilhao/
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