A indústria mundial está diante de uma nova revolução, que será capitaneada por digitalização e cada vez mais automação. E isso vai mudar a relação de forças entre as nações. O Brasil está pronto para essa nova era?
Fábrica da BMW, em Leipzig, na Alemanha: 1 000 robôs trabalham na produção do primeiro carro elétrico da montadora
Leipzig e São Paulo - A fábrica mais moderna da Europa em nada se
parece com as descrições da U.S. Robots and Mechanical Men, a indústria
inventada pelo americano Isaac Asimov, um dos maiores autores de ficção
científica de todos os tempos.
Em vez do prédio sem graça e com paredes cinza dos textos de Asimov, o edifício que abriga a produção de carros da BMW em Leipzig, na Alemanha, tem forma arredondada, é todo envidraçado e lembra um museu de arte moderna.
Pode não produzir robôs, como a imaginária U.S. Robots and Mechanical
Men, mas, na linha de montagem do i3, o primeiro modelo elétrico da BMW,
tudo parece futurista. Não há barulho nem sequer faíscas. Como em uma
dança sincronizada, braços mecânicos levantam carcaças, juntam pedaços e
ali mesmo fazem testes de qualidade.
A indústria automobilística
está entre as mais robotizadas do mundo, mas ainda assim a unidade mais
moderna da BMW, com seus mais de 1 000 robôs, é um caso à parte. Os
funcionários, todos de colete azul, acompanham tudo a distância pelas
telas de computadores.
Os seres humanos só supervisionam o trabalho das máquinas. A unidade de
Leipzig é uma prévia do futuro das fábricas. “Estamos no estágio
inicial de uma mudança tão profunda na manufatura como aquela provocada
pela Revolução Industrial”, afirma Erik Brynjolfsson, professor de
tecnologia da informação do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Junto com Andrew McAfee, também professor do MIT, Brynjolfsson é autor do livro
A Segunda Era das Máquinas, com previsão de lançamento no Brasil para
até o fim do ano e aclamado como a nova bíblia das tendências do setor
industrial.
Para McAfee e Brynjolfsson, que teve uma conversa em junho com o
presidente americano, Barack Obama, para discutir o tema da
competitividade, o setor produtivo mundial está num processo movido por
três forças: o avanço exponencial da capacidade dos computadores, a
imensa quantidade de informação digitalizada e novas estratégias de
inovação.
O progresso computacional fez com que as máquinas ficassem muito mais
potentes, ágeis e, sobretudo, baratas. Em 1985, o computador mais rápido
do mundo era o Cray-2, que custava 30 milhões de dólares. Em seus anos
de glória, foi utilizado para pesquisas em energia atômica.
Hoje, um iPad tem
capacidade de processamento superior à do Cray-2. Na última década, o
preço de alguns modelos de sensores usados nos aparelhos eletrônicos
caiu 85%. Na indústria, em geral, e no caso específico da fábrica da
BMW, em Leipzig, essa tendência pode ser sentida pela forte expansão dos
robôs.
Em 2013, as vendas de robôs
industriais no mundo foram recorde: 179 000 unidades. A popularização é
resultado do preço em queda e das novas habilidades que eles estão
ganhando. De acordo com um estudo da consultoria americana McKinsey, o preço dos robôs vem caindo 10% ao ano nas últimas décadas. E a produtividade deles está aumentando.
Dependendo do tipo de aplicação, os modelos mais novos são 40% mais
rápidos do que os das gerações anteriores. Máquinas de alta destreza que
hoje são vendidas a 150 000 dólares deverão custar metade desse valor
até 2025.
A segunda característica dessa nova era industrial é a imensa
quantidade de informação digital disponível. A concepção dos produtos, o
design, os testes com novos materiais, os protótipos, a arquitetura da
fábrica, a organização da linha de produção, o estoque de materiais, o
manual de um equipamento, tudo é digital.
Isso permitiu criar e operar ambientes fabris virtuais em sincronia com
a unidade física. Os ganhos já são visíveis antes mesmo de os primeiros
produtos ficarem prontos.
Nas montadoras de automóveis Toyota, Fiat e Nissan,
o tempo de desenvolvimento de um novo modelo caiu até 50% a partir do
momento que designers e engenheiros passaram a usar informações
digitalizadas e testes virtuais de peças.
Na fabricante de aviões Embraer,
os operários responsáveis pela produção do jato Legacy 500, em São José
dos Campos, no interior paulista, começaram a treinar, de forma virtual
em 3D, o que fariam no chão de fábrica um ano antes do início da
produção. O projeto teve 12 000 horas de testes antes de a aeronave
fazer a primeira decolagem.
Defeitos que eram detectados somente com o avião no ar foram resolvidos
ainda na fase de preparação. Na linha de montagem, os operários usam
computadores e tablets. Em caso de dúvida, há sempre um vídeo para
explicar como colocar uma peça. Com todos os ganhos da digitalização, o
tempo de montagem já caiu 25%.
“Assim como os smartphones facilitaram a vida das pessoas, o uso de
computadores e tablets está revolucionando o chão de fábrica”, diz Marco
Túlio Pellegrini, presidente do segmento de aviação executiva da
Embraer.
Os computadores mais potentes e a digitalização são tendências já
amplamente visíveis em alguns segmentos da indústria. Mas a nova era das
máquinas também deverá ser movida por avanços na área de inovação que
ainda estão em gestação. Uma das tendências mais promissoras é a
inovação colaborativa.
Pessoas sem nenhum contato com a indústria poderão recombinar
tecnologias existentes e fazer contribuições nas áreas de design, novos
materiais, gestão e produção. Algumas empresas já estão dispostas a
apostar nessa estratégia.
Em novembro, a companhia de tecnologia IBM
criou um fundo de 100 milhões de dólares para impulsionar a inovação
tendo como base a plataforma do supercomputador Watson, famoso por ter
vencido competidores humanos num programa de quiz da TV americana. Pela
primeira vez, a tecnologia de inteligência artificial da IBM ficou
disponível para a criação de novos aplicativos e novos negócios.
O acesso à plataforma do Watson será gradual e começou com startups que
submeteram à IBM projetos de aplicativos focados em diferentes setores.
Em junho, a americana Tesla, fabricante de carros elétricos da
Califórnia e considerada uma das empresas mais inovadoras do mundo,
anunciou que abriu todo o seu portfólio de 160 patentes para outros
inventores.
“Hoje em dia as patentes servem apenas para abafar a inovação”,
escreveu Elon Musk, presidente da Tesla, em seu blog ao comunicar a
decisão. O objetivo de Musk é que, com mais gente usando as tecnologias
criadas pela Tesla, novas ideias surjam e ajudem a criar mais mercado
para o ainda tímido segmento de carros elétricos.
Transformações incrementais fazem parte da história das fábricas desde o
seu nascimento. O que mais impressiona hoje, além da extensão das
mudanças, é o ritmo frenético. A Revolução Industrial, iniciada na
Inglaterra no século 18, demorou mais de 100 anos para ganhar uma escala
global. As máquinas a vapor levaram sete décadas para dobrar sua
produtividade.
Em apenas 15 anos, a popularização dos computadores e da internet já
deixou um rastro de transformação. É essa revolução que agora está
invadindo o chão de fábrica. Embora seja um fenômeno mundial, ele é mais
presente nos Estados Unidos e na Europa — e isso tem uma explicação.
Durante boa parte das duas últimas décadas, a manufatura dos países
ricos se deslocou em direção ao mundo emergente em busca de custos mais
baixos. Foi esse movimento que transformou a China na fábrica do mundo.
O modelo Made in China reinou absoluto enquanto o país tinha uma vasta
reserva de mão de obra qualificada a preços irrisórios. Mas, nos últimos
dez anos, os custos trabalhistas chineses aumentaram quase 190%.
Nesse mesmo período, a pressão política para que as empresas voltassem a
produzir em seu país de origem aumentou devido à crise econômica. No
caso específico dos Estados Unidos, houve ainda a queda do preço da
energia em razão da exploração do gás e do petróleo de xisto.
A China continua tendo um dos mais poderosos parques fabris do mundo,
mas a lista de empresas que estão promovendo o que está sendo chamado de
renascimento da indústria nos países ricos inclui nomes como as
europeias Philips e Zara, e as americanas Apple, GE, Ford e Whirlpool.
“Quando essas companhias voltam para casa, abrem fábricas com a
tecnologia mais avançada que existe para se manter competitivas”, diz
Terry Hannon, vice-presidente de estratégia da fabricante de robôs Adept
Technology, com sede em Pleasanton, na Califórnia. Fábricas
automatizadas e robotizadas significam indústrias com cada vez menos
gente.
Esse dilema é antigo. Quase três décadas de desindustrialização
eliminaram 6 milhões de postos de trabalho industriais nos Estados
Unidos — fazendo com que o emprego nas fábricas atingisse o patamar dos
anos 40. Mesmo com o retorno das indústrias, essa parece ser uma
tendência sem volta.
Há um ano, a Philips construiu uma fábrica de barbeadores elétricos na
Holanda com 126 robôs e algumas dezenas de pessoas. “Os empregos que
envolvem funções repetitivas vão desaparecer rapidamente nos próximos
anos”, diz o economista Michael Spence, ganhador do Prêmio Nobel e
professor da Universidade de Nova York.
Nos países ricos, estima-se que 25% de todas as funções na indústria
deverão ser substituídas por tecnologias de automação até 2025. No
mundo, a estimativa é que 60 milhões de postos de trabalho em fábricas
sejam limados.
Fábricas Inteligentes
Entre os países ricos, a Alemanha aparece como exceção. Primeiro,
porque suas indústrias sempre mantiveram uma presença forte na Europa.
Segundo, porque há uma promissora coalizão entre governo, empresas,
universidades e associações de classe para tentar garantir a
competitividade local.
Criado em 2012, o projeto Indústria 4.0 tem como foco pesquisas sobre o
que se convencionou chamar de fábricas inteligentes. Nelas, linhas de
montagem e produtos “conversam” ao longo do processo de fabricação.
Unidades em diferentes lugares também trocam informações de forma
instantânea sobre compras e estoques.
“Numa fábrica inteligente, trabalhadores, máquinas, produtos e
matérias-primas se comunicam de forma tão natural quanto pessoas numa
rede social”, diz Henning Kagermann, diretor da Academia Alemã de
Ciência e Engenharia, uma das entidades que lideram o projeto Indústria
4.0. A estimativa é que, em 20 anos, boa parte da indústria alemã tenha
adotado esse padrão de produção.
Hoje, o país já conta com alguns exemplos de fábricas inteligentes. Na unidade de equipamentos eletroeletrônicos da Siemens, em Amberg, as linhas de produção não lembram em nada as tradicionais, que repetem continuamente a manufatura da mesma peça.
Sem a interferência de funcionários, máquinas que operam 24 horas por
dia fabricam 950 diferentes componentes que são encomendados pelo
sistema. A automação extrema leva a um baixíssimo índice de defeitos —
um estudo da consultoria americana Gartner em Amberg registrou 15 peças
com defeito a cada 1 milhão produzido.
“Não são apenas a competição e o aumento de custos que estão exigindo
mudanças na manufatura”, diz Siegfried Russwurm, presidente mundial da
divisão industrial da Siemens. “O ciclo de vida da tecnologia está se
reduzindo e as demandas por uma produção sob medida estão aumentando.”
A fábrica inteligente da Siemens é um laboratório para criar
plataformas de automação que depois são vendidas. A empresa forneceu
para a montadora Volkswagen um software que cria um ambiente fabril
virtual. Modernizada, a linha de produção digitalizada aumentou 30% a
produtividade e diminui 40% o consumo de energia.
Nas fábricas inteligentes, os destaques serão cada vez mais os robôs. A
atual sensação no mundo da automação industrial é o Baxter, um robô de
quase 2 metros de altura com dois braços e um monitor que faz as vias de
uma cabeça.
Lançado em 2012 pela americana Rethink Robotics (um dos primeiros
investidores da empresa foi Jeff Bezos, presidente do site de vendas
Amazon), Baxter é um robô que se adapta ao ambiente de trabalho. Ele tem
câmeras que permitem que objetos sejam vistos, sensores que captam a
presença de pessoas e um software que aprende novas funções.
Seu preço inicial é 22 000 dólares. A perspectiva de sucesso do Baxter e
do crescimento desse segmento está atraindo empresas de tecnologia que,
até pouquíssimo tempo atrás, não mantinham conexão nenhuma com o
universo de robôs.
Em 2013, por exemplo, o Google comprou oito empresas de robótica
avançada — a mais famosa é a Boston Dynamics, que desenvolveu o robô com
aplicações militares Big Dog (uma espécie de mula de carga que anda em
terrenos acidentados e íngremes).
Defasagem tecnológica
Enquanto o mundo se prepara para essa nova Revolução Industrial, o
Brasil parece não ter se dado conta dos imensos desafios que o cercam.
Em 2013, o país comprou menos de 1 300 robôs industriais — a Coreia do
Sul adquiriu 21 000, e a China, 37 000.
No Brasil, a idade média de máquinas e equipamentos é 17 anos — ante
sete anos nos Estados Unidos e cinco na Alemanha. Numa era de imensos
ganhos tecnológicos, as empresas brasileiras estão presas a tecnologias
ultrapassadas, o que afeta diretamente a produtividade do país.
Essa defasagem tecnológica tem várias explicações. A primeira é que o
Brasil ainda tem uma economia fechada. Com o mercado doméstico
garantido, as indústrias instaladas aqui têm menos incentivos para
investir em aumento de produtividade.
Não é coincidência que as empresas expostas à competição internacional,
como a Embraer, são justamente as mais avançadas em termos de
tecnologia.
“A indústria brasileira precisa estar inserida nos mercados globais
para poder importar as melhores práticas”, diz Pedro Passos, fundador e
sócio da fabricante de cosméticos Natura e atual presidente do Instituto
de Estudos para o Desenvolvimento Industrial.
Outra razão que inibe o investimento em tecnologia é o custo. Uma
empresa brasileira gasta, em média, 37% mais do que uma companhia
americana na aquisição do mesmo maquinário. A terceira razão é a
burocracia.
Máquinas que trazem uma inovação tecnológica estão livres de impostos
de importação, mas, para conseguir o benefício, a empresa precisa
submeter o pedido ao governo, que, por sua vez, consulta as entidades
patronais. O processo dura cerca de três meses.
Um estudo inédito sobre difusão tecnológica no Brasil produzido pelo
Senai com os nove principais setores da indústria nacional mostra um
quadro desalentador. Na área metal-mecânica, por exemplo, apenas de 10% a
30% do mercado deverá adotar robôs de soldagem e montagem nos próximos
cinco anos.
“O problema é maior nas pequenas e médias empresas”, diz Marcello Pio,
diretor de pesquisas do Senai. “Elas demoram até dez anos para adquirir
uma tecnologia lançada hoje.”
As exceções estão nos setores mais dinâmicos da indústria. A Kepler
Weber, fabricante de silos para armazenagem de grãos, está desenvolvendo
um novo equipamento que responde automaticamente às mudanças de
temperatura e umidade. Amplamente utilizada no exterior, a ferramenta
elimina a necessidade de ter um técnico de plantão em cada armazém.
“Conheço produtores que perderam parte da safra porque o funcionário
mexeu no botão errado e acabou torrando a soja que estava dentro do
silo”, diz Anastácio Fernandes Filho, presidente da Kepler Weber. Outro
canal de inovação no Brasil são as multinacionais, que trazem
plataformas globais de produção.
No setor de gases industriais, a alemã Linde adotou recentemente um
sistema de gerenciamento remoto. De um centro de operações em Jundiaí,
no interior paulista, cerca de 50 engenheiros operam 33 unidades na
América Latina.
Se uma máquina apresenta um comportamento fora do padrão na unidade de
Guayaquil, no Equador, ela é desativada por um clique no computador de
um engenheiro em Jundiaí.
Isso fez com que as unidades da Linde, que antes tinham cada uma cerca
de 20 funcionários, trabalhem agora com equipes de três pessoas. “Ao
concentrar todos os especialistas no centro de operações em Jundiaí,
aumentamos 30% nossa produtividade”, diz Max Amílcar, diretor da Linde.
Hoje, a unidade é referência da multinacional alemã no mundo e não para
de receber visitas de estrangeiros curiosos em conhecer seus detalhes.
A Linde criou seu modelo de inovação e vem recebendo as recompensas por
ele. Se quiser manter a relevância, a indústria brasileira terá de
seguir o mesmo caminho. A competição com a mão de obra chinesa nas
últimas décadas já causou estragos.
Sem preparação, a disputa com máquinas americanas e europeias poderá
ser pior. Abraçar a inovação — seja ela um robô, um sensor ou o que vier
pela frente — pode garantir um futuro para quem está cada vez menos
relevante no presente.
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