Controlada pela família Batista, a Eldorado tornou-se uma das maiores produtoras de celulose do país na base da corrupção.
São Paulo — Os seis conselheiros da fabricante de celulose Eldorado
sabiam que teriam uma reunião tensa na manhã do dia 16 de fevereiro. A
empresa, que é controlada pelo grupo J&F, da família Batista, e tem
como sócios dois dos maiores fundos de pensão do país, a Funcef (da
Caixa Econômica) e a Petros (da Petrobras), estava envolvida em três
operações da Polícia Federal. Para tentar acalmar as autoridades, a
Eldorado havia concordado, meses antes, em permitir uma investigação
independente para avaliar sua contabilidade e suas práticas internas.
O
relatório da investigação, conduzida pelo escritório de advocacia
Veirano e pela consultoria EY, seria apresentado naquela reunião. Quando
a apresentação começou, os dois conselheiros que representavam os
fundos de pensão ficaram atônitos: parecia quase tudo bem, mas faltava
uma explicação para um total de 37,4 milhões de reais em pagamentos
feitos às empresas do doleiro Lúcio Funaro, preso desde julho de 2016 em
meio à Operação Lava-Jato. Àquela altura, o papel de Funaro no submundo
da política brasileira já era de conhecimento público. A recomendação
dos advogados e dos consultores, caso quisessem detalhes, era que uma
nova investigação, mais ampla, fosse feita para explicar quais serviços o
doleiro havia prestado à Eldorado e à holding J&F. Coisa boa,
pensaram alguns dos presentes, não deveria ser.
Os representantes dos fundos de pensão no conselho concordaram, mas
Joesley Batista, presidente do conselho na época, achou desnecessário.
Teve início uma discussão e, no meio da confusão, o representante da
Funcef, Max Pantoja, pediu licença para ir ao banheiro. Discretamente,
levou consigo o relatório de EY e Veirano e foi embora. Dias depois, o
relatório foi parar na mesa do procurador do Ministério Público Federal
Anselmo Lopes, um dos responsáveis pela Operação Greenfield, que
investiga transações fraudulentas em fundos de pensão, incluindo o
investimento feito na Eldorado. Parte do relatório e do depoimento de
Pantoja ao Ministério Público, em que ele especula que os controladores
da Eldorado estavam tentando cobrir irregularidades que ocorriam na
empresa, tornou-se pública. Na época, Joesley Batista classificou a
denúncia de “estapafúrdia e de cunho pessoal”.
Tudo isso aconteceu três meses antes de Batista
fechar um acordo com o Ministério Público e fazer uma delação premiada —
nos depoimentos, em maio, ele não apenas confirmou como também deu
detalhes das irregularidades envolvendo a Eldorado e acrescentou outras à
lista. Segundo o empresário, a J&F
subornou executivos do Funcef e da Petros para que os fundos se
tornassem acionistas e aportassem, cada um, 550 milhões de reais na
empresa — sem esse dinheiro, a operação jamais teria saído do papel.
Ainda de acordo com Batista, houve doações à campanha do PT, a pedido do
ex-ministro Guido Mantega, para conseguir empréstimos em bancos
públicos, e pagou ao doleiro Lúcio Funaro para conseguir dinheiro com o
FI-FGTS, fundo gerido pela Caixa Econômica Federal e que deveria buscar
bons investimentos para o dinheiro dos trabalhadores ali depositado. O
fundo acabou comprando 1 bilhão de reais em títulos da dívida da
companhia, dando o impulso que faltava para concluir as obras da fábrica
da Eldorado inaugurada em 2012. Ficou claro, nas informações prestadas
pelo empresário, que a companhia dificilmente teria chegado aonde chegou
sem as práticas ilegais, que garantiram recursos para erguer uma das
maiores fábricas de celulose do mundo em tempo recorde.
Seria apenas mais um caso de polícia no currículo dos irmãos Batista
não fosse a Eldorado fundamental para a saúde do grupo J&F hoje. Os
Batista decidiram vender a empresa e usar os recursos para ajudar a
pagar parte da multa de 10,3 bilhões de reais estipulada no acordo de
leniência fechado com o Ministério Público
e reduzir o endividamento do grupo, que alcança 70 bilhões de reais
somando a dívida de todas as empresas. Há interessados numa eventual
aquisição. Os principais são as fabricantes de papel e celulose Fibria e
Suzano, do Brasil, e Arauco, do Chile. O problema é que o histórico de
corrupção torna a Eldorado um alvo que, se atrai cobiça, tem um quê de
radioativo. A lista de preocupações dos potenciais compradores é
extensa. Uma delas é o risco de a J&F não pagar o que deve e as
autoridades decidirem buscar dinheiro nas empresas que faziam parte do
grupo, o que está previsto no acordo de leniência. Para limitar o risco
de perdas e conseguir fixar um preço para a Eldorado, segundo executivos
próximos à transação, é preciso negociar em conjunto com o Ministério
Público para não ter susto. Outro receio é a possibilidade de a empresa
ser processada.
O conselheiro Max Pantoja quer processar a Eldorado e
Joesley Batista pelas “declarações ofensivas” (procurado, ele não deu
entrevista). EXAME apurou que o escritório Veirano, que analisou parte
das operações da Eldorado, contratou um criminalista para avaliar o que
fazer — o escritório não comenta, diz apenas que a investigação foi
feita com base nas informações prestadas pela empresa. A consultoria EY
diz que “os trabalhos foram realizados no limite do escopo contratado”.
Por fim, os fundos de pensão tentam reverter as eventuais perdas que
tiveram ao investir na companhia quando ela foi fundada em 2010.
A relação da cúpula da Eldorado com os fundos de
pensão é a pior possível. Quando a Operação Greenfield começou, em
setembro, a J&F, pressionada pelo Ministério Público, fechou um
acordo em que se comprometeu a comprar a participação de Funcef e Petros
na Eldorado por um valor que deveria assegurar o retorno das fundações
sobre o montante investido. A partir daí, começou uma guerra de laudos
de avaliação, com cada lado tentando ganhar em cima do outro. A
consultoria Deloitte havia avaliado a Eldorado em 17,6 bilhões de reais
em 2015, a pedido da J&F, mas o grupo argumentou que o valor havia
diminuído em razão da queda dos preços da celulose. O interesse dos
Batista, claro, é pagar o mínimo aos sócios — que têm 8,5% do capital
cada um. Em 2016, a Funcef contratou a consultoria Baker Tilly Brasil,
que avaliou a empresa em 4,7 bilhões de reais, o que renderia 399
milhões de reais para cada fundo, quase 30% menos do que os 550 milhões
investidos originalmente — um valor que a fundação considerou
inaceitável.
Em janeiro deste ano, a Previc, órgão do Ministério
da Previdência que regula os fundos de pensão, reforçou, num auto de
infração, que a Petros pagou quantias superiores ao que valia a empresa.
Petros e Funcef não comentaram. Executivos próximos às fundações
afirmam que elas podem processar a Eldorado e a holding pedindo
ressarcimento caso a diferença seja maior do que a quantia que elas já
vão receber como parte do acordo de leniência. A EXAME, José Carlos
Grubisich, diretor-presidente da Eldorado, disse que desconhece essa
possibilidade e que a relação com os fundos não mudou. A J&F
acredita, segundo pessoas próximas ao grupo, que deixa de ter a
obrigação de recomprar a fatia dos fundos de pensão
porque vai vender sua participação na Eldorado — o compromisso, então,
passaria a ser dos novos donos (questionado sobre isso, o Ministério
Público não respondeu). Como os fundos têm o direito de receber o mesmo
prêmio pago aos controladores caso a Eldorado seja vendida, decidiram
esperar para negociar com os futuros controladores.
Máquina de captar recursos
A criação da Eldorado, em 2010, surpreendeu Fibria e
Suzano, as maiores fabricantes de celulose do país. Afinal, o plano era
montar do zero a maior e mais moderna fábrica de celulose do mundo — à
base de bilhões e bilhões de reais em financiamento. Não faltaram
especialistas dizendo que o projeto iria naufragar. Diante de
concorrentes atônitos com a “eficiência” da empresa em captar recursos, a
primeira fase da fábrica da Eldorado foi inaugurada na cidade de Três
Lagoas, em Mato Grosso do Sul, em 2012. A construção levou apenas dois
anos, prazo recorde para um projeto desse tamanho.
A festa de inauguração contou com uma apresentação
do tenor italiano Andrea Bocelli e com a presença do então
vice-presidente Michel Temer e do governador do estado, André
Puccinelli. “A Eldorado é um produto de corrupção”, diz o executivo de
um fundo de pensão. “A JBS foi turbinada pelo esquema de propina, mas a
Eldorado foi viabilizada por ele.” A Eldorado passou a preparar uma
possível abertura do capital para reduzir a dívida e expandir a fábrica.
A operação não foi adiante. Primeiro, porque o declínio da economia
brasileira praticamente inviabilizou novas ofertas de ações. Depois,
porque a empresa entrou na mira da Justiça. A primeira vez em que a
Eldorado foi envolvida nas investigações policiais foi em julho de 2016,
quando a PF deflagrou a Operação Sépsis, que apura esquemas de
corrupção envolvendo a Caixa Econômica. Foram apreendidos documentos e
computadores na sede da Eldorado. Dois meses depois, foi deflagrada a
Operação Greenfield, com medidas cautelares contra os irmãos Batista e
Grubisich (os advogados de Grubisich argumentaram à Justiça que ele não
estava no grupo na época do investimento dos fundos de pensão; foi
presidente da geradora de energia ETH, do grupo Odebrecht, até 2012). Em janeiro, a Operação Cui Bono incluiu a empresa nas investigações sobre outras transações com a Caixa.
Endividamento
Além das pendências judiciais, a J&F tem um
enrosco financeiro a resolver na Eldorado. A dívida da empresa é alta,
de 8 bilhões de reais, equivalente a cinco vezes a geração de caixa.
Além disso, 2 bilhões de reais vencem em até um ano, e a empresa tem
cerca de 1 bilhão de reais em caixa. Ou seja, para pagar o que deve,
precisaria captar recursos em bancos ou no mercado de capitais. Sem a
ajuda dos amigos do passado, porém, analistas acreditam que as linhas de
financiamento serão escassas e mais caras. A situação complicada levou a
agência de classificação de risco Fitch a rebaixar a nota da Eldorado,
já que pode ficar difícil honrar todos os pagamentos. Grubisich diz que a
empresa só terá pagamentos relevantes a fazer a partir de setembro e
que sua relação com os bancos continua boa, mantidas as linhas de
crédito, inclusive do BNDES. “A Eldorado está no auge operacional e é a
mais eficiente do setor”, diz ele, destacando a geração de caixa, que
foi de 54% no ano passado (a geração de caixa da Fibria ficou em 43%, e a
da Suzano, em 40%). Os números da Eldorado, no entanto, são rebatidos
por especialistas ouvidos por EXAME.
Fibria e Suzano provisionam créditos de ICMS que têm
a receber — isso significa que consideram baixa a chance de receber de
fato esses recursos e, por isso, não viram automaticamente receita ou
lucro. Já a Eldorado inclui esses valores na geração de caixa. “O
indicador Ebitda serve para medir a eficiência de uma empresa em
produzir bem. Um crédito tributário não atenderia a esse propósito”, diz
Ricardo Almeida, professor de finanças no Insper. O mesmo aconteceria
com os “ativos biológicos”, como a madeira armazenada para produzir
celulose. Esses ativos só terão um valor de mercado no futuro, quando a
celulose for produzida e vendida, mas as empresas fazem estimativas de
quanto valem hoje. A Eldorado também inclui esse valor em seu indicador
de geração de caixa.
“Como a geração de caixa não é um valor contábil,
não é alvo das auditorias”, diz um analista. Se ela seguisse o padrão
dos concorrentes, a margem seria mais parecida com a da Fibria e a da
Suzano, de acordo com os especialistas. A Eldorado diz que “segue o
conceito puro de Ebitda” e tem “números auditados e públicos no
balanço”.
Por que, então, há interessados em comprar a
empresa? Ainda que haja questionamentos sobre o patamar de eficiência e
sobre sua capacidade de se expandir, a Eldorado tem o menor custo do
setor graças a investimentos em tecnologia e gestão. Além disso, cresceu
mais do que o esperado: a meta inicial era que a primeira fase da
fábrica produzisse 1,5 milhão de toneladas de celulose — chegou a 1,6
milhão de toneladas em 12 meses. A empresa conseguiu driblar uma das
dificuldades iniciais, que era não ter florestas próprias em número
suficiente para abastecer a produção ao firmar contratos de longo prazo
de arrendamento nas proximidades da fábrica. EXAME apurou que os bancos
que assessoram Arauco, Fibria e Suzano avaliam a Eldorado em até 11
bilhões de reais, incluindo a dívida de 8 bilhões de reais (as empresas
não deram entrevista, mas confirmam em nota ao mercado seu interesse no
negócio). O valor pedido inicialmente por Wesley Batista, irmão de
Joesley e responsável por conduzir as negociações com os potenciais
compradores, era de 13 bilhões de reais. No preço, os potenciais
compradores incluem o risco de a venda ser embargada pela Justiça, como
aconteceu com a tentativa da empresa de alimentos JBS, também controlada
pela J&F, de vender ativos na América do Sul em junho. No caso da
Eldorado, a expectativa é que compradores e vendedores cheguem a um
acordo em 45 dias. Dessa vez, sem atalhos.
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