segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O jeitinho brasileiro de não resolver problemas





 



 
É um momento grave na história do Brasil. O modelo econômico e o arranjo institucional que sustentam há décadas o poder político estão esgotados. O povo toma as ruas em manifestações expressivas. A violência não raro se torna o último recurso ao alcance de quem não consegue se fazer ouvir por canais convencionais. A repressão é dura, implacável. Artistas e intelectuais se envolvem na disputa. Um inflamado debate de ideias toma conta dos meios de comunicação. Propagandistas tentam conquistar adeptos por meio de espetáculos, panfletos, associações e comícios. O centro do poder, incapaz de atender aos apelos mais óbvios, fica a cada dia mais distante da sociedade.

 “Nas grandes crises políticas, movimentos de contestação em curva ascendente encontram o governo enfraquecido. A coalizão política no poder se esfacela, e declina a capacidade repressiva do Estado, ao passo que a mobilização ganha a adesão de facções da elite política, de grupos sociais antes desengajados e se espalha por vários setores, desorganizando a rotina social e a vida cotidiana. Cresce a fluidez política, distinções esmaecem, adversários se convertem em apoiadores e vice-versa. O desfecho depende.

Decisiva é a habilidade de persuadir a parte da sociedade de fora do conflito. No caso extremo, se todos pendessem para o lado desafiante, haveria revolução; se empatassem, guerra civil. A conjuntura de reforma é aquela na qual o movimento desequilibra a balança de poder em seu favor, mas sem anular o adversário.”


Brasil tem dificuldade para lidar com suas questões mais essenciais


Eis o cenário não da crise atual. É a “cena brasileira na virada de 1887 para 1888”, às vésperas da abolição da escravidão, nas palavras da socióloga Angela Alonso, professora da USP e presidente do Cebrap, em Flores, votos e balas. O livro conta a história daquele que Angela define como primeiro “movimento social” digno do nome no Brasil – o abolicionismo. A narrativa está amarrada em torno da personalidade de seus principais líderes: André Rebouças, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luís Gama e Abílio Borges. Angela descreve como, ao longo de duas décadas, os abolicionistas souberam combinar, de acordo com suas convicções ou a conveniência, três tipos de ação. Primeiro, a propaganda na imprensa, em anúncios e atos públicos – camélias (as “flores” do título) se tornaram o símbolo abolicionista, lançadas pela plateia de conferências-espetáculo, as precursoras dos “showmícios”. Segundo, a luta política (os “votos”) e jurídica para fazer avançar a causa legalmente – o ativismo nos tribunais por alforrias, a criação de territórios livres no Ceará, no Amazonas e em cidades como Santos, o lobby nos bastidores pelas leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. Terceiro, os meios ilegais (as “balas”) – incitação à fuga, redes subterrâneas de proteção e confrontos com soldados, como o resultante no massacre de 150 foragidos na Serra do Mar, em 1887. Apesar dos inevitáveis (e inofensivos) cacoetes acadêmicos – Angela insiste em chamar americanos de “estadunidenses”, mas volta e meia usa o anglicismo “massivo”… –, a obra tem uma qualidade rara na produção intelectual brasileira: é legível, acessível a um público leigo. Ela sabe contar uma história. Preciso e elucidativo, o livro demonstra a dificuldade do Brasil para lidar com suas questões mais essenciais.


Estado brasileiro continua distante da sociedade
 
 
A Lei Áurea, enfim proclamada em 13 de maio de 1888, é tão simples que pode ser citada aqui na íntegra: “Artigo 1º – É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil; Artigo 2º – Revogam-se disposições em contrário”. Evidente que ela não acabou com o racismo nem com a desigualdade, que perduram até hoje. Mas acabou com a sanção legal a uma barbárie: a propriedade sobre seres humanos. Se era questão há muito consensual, como pudemos conviver por tanto tempo com tamanha excrescência? Por que fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão? 
 
O motivo, depreende-se da narrativa de Angela, é um vício recorrente no Brasil: sabemos o que precisa ser feito, mas demoramos a fazer. Falta-nos a noção de urgência. O tempo passa, o problema se agrava, enquanto os políticos se perdem em debates inócuos, preocupados apenas em defender os próprios interesses. Na prática política, pouco mudou do Barão de Cotegipe a Renan Calheiros, de Paulino Soares de Sousa a Eduardo Cosentino da Cunha. 
 
O Estado brasileiro continua distante da sociedade, incapaz de arcar com seu custo e de se fazer ouvir. A elite política conhece a necessidade e a urgência de reformas profundas, mas prefere postergá-las, como se o país pudesse esperar imune. O livro de Angela serve de alerta: a “conjuntura de reformas” não é o único desfecho possível para um conflito tão essencial. O Brasil nada ganha se seguir iludido pela possibilidade de conciliar o inconciliável, escravo de seus medos, refém de uma mesma história que parece não ter fim.
 
Fonte: “Época”, 11/09/2016.

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