Peña Nieto mostrou a perplexidade dos mexicanos com a cruzada contra o comércio lançada pelo novo presidente americano
A história do México é, em grande medida, a história de sua
luta pela independência — primeiro dos espanhóis, depois dos americanos.
Passadas duas décadas de livre comércio com os Estados Unidos, que trouxe prosperidade e industrialização ao México, a presidência de Donald Trump
lhe impõe um novo desafio existencial. Mais uma vez, trata-se de ser
capaz de caminhar com os próprios pés — e de buscar novos parceiros.
O centenário da Constituição mexicana, celebrado no domingo 5, foi
marcado por essa reflexão, em um discurso do presidente Enrique Peña
Nieto. “Hoje nossa nação, como poucas vezes em sua história recente,
está à prova. Vivemos momentos cruciais em que se juntaram desafios
externos e internos”, disse o presidente, no Teatro de la República, em
Querétaro, no centro do país.
Em uma frase, Peña Nieto sintetizou a perplexidade dos mexicanos com a
cruzada contra o comércio lançada pelo novo presidente americano,
depois do monumental esforço do México em se ajustar às exigências de
competitividade e às cadeias de produção criadas pelo Acordo de Livre
Comércio da América do Norte (Nafta), em vigor desde 1994: “Os
paradigmas sociais, econômicos e políticos, em escala internacional,
estão mudando aceleradamente”.
Em seguida, o presidente demonstrou sua preocupação com a exploração
política interna da espada colocada por Trump na cabeça de seu governo:
“São tempos que chamam à unidade, não em torno de uma pessoa ou de um
governo, mas dos valores da Constituição — soberania, liberdade,
justiça, democracia e igualdade”.
O México realizará eleições para presidente, Senado e Câmara dos
Deputados em junho de 2018. A grande dúvida é como a pressão de Trump
repercutirá sobre a disputa interna, por exemplo sobre as chances do
eterno candidato populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador, do
Movimento Regeneração Nacional (Morena). Ex-governador do Distrito
Federal (2000-2005), ele não aceitou a derrota (por 0,56% dos votos) na
eleição presidencial de 2006, ocupando o Zócalo, o centro histórico da
Cidade do México, com seus militantes.
“É cedo para prever o que acontecerá
nas eleições de 2018”, avalia Andrés Rozental, ex-vice-chanceler e
presidente do Conselho Mexicano de Assuntos Internacionais, um centro de
estudos na Cidade do México. “Mas é evidente a tendência não só nos EUA
mas também na Europa de os populistas chegarem ao poder, porque as
pessoas estão muito cansadas da classe política tradicional.”
Ele diz que uma eventual “decomposição” das relações com os EUA pode
ter um efeito político interno, ainda mais somado à impopularidade do
atual governo do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que
governou o México quase todo o tempo desde a Constituição de 1917.
Rozental diz que os índices de aprovação de Peña Nieto estão “no mesmo
nível de Dilma (Rousseff) no final de sua gestão”. “A economia não tem
tido melhor resultado, a inflação está começando a se incrementar e o
câmbio se deteriorou. É um caldo de cultura propício para o populismo”,
diz ele.
“Temos o populista López Obrador, que, assim como Lula, fracassou em
várias tentativas de se eleger (em 2006 e 2012)”, compara o analista. “O
que vai acontecer em 2018 depende da economia e da política.” Ele
classifica de “absurda” a ideia que foi ventilada na imprensa de o
bilionário Carlos Slim se lançar à presidência para se contrapor a
Trump: “Ele não tem o menor interesse”. Nas pesquisas, tem se destacado o
nome do secretário de Governo, Miguel Ángel Osorio, pelo PRI, mas ainda
não há candidatos oficiais.
A economia mexicana cresceu 2,3%, um índice respeitável em tempos de
vacas magras. Mas o último trimestre indicou desaceleração, já como
resultado das expectativas negativas em relação ao governo Trump: 0,6%
em relação ao trimestre anterior. Em 28 de novembro, depois da eleição
de Trump, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE) reduziu a previsão de crescimento do PIB mexicano em 2017 de 3%
para 2,3%.
Antes mesmo de assumir, em janeiro, um tuíte de Trump criticando a
produção de automóveis da GM no México levou a Ford a cancelar a
construção de uma fábrica de 1,6 bilhão de dólares no país, e a anunciar
um investimento de 700 milhões de dólares em uma planta já existente no
Michigan, que segundo a montadora gerará 700 novos empregos.
Pesquisa realizada pelo Banco de México (banco central) com analistas
de empresas privadas mostra que o governo Trump se tornou a principal
fonte de preocupação do mercado. A “instabilidade política
internacional” (leia-se Donald Trump) ficou em primeiro lugar em janeiro
como maior preocupação dos agentes econômicos, com 17% das respostas.
Há um ano, esse item foi escolhido por apenas 2% dos entrevistados. Já o
item “debilidade do mercado externo e a economia mundial” caiu de 23%,
em janeiro de 2016, para 15% no mês passado.
A situação do México, escolhido por Trump como bode expiatório dos
problemas dos EUA, desperta a solidariedade de liberais (no sentido
americano) como Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001.
“Donald Trump quer que o México se divida. Mostrem-lhe que ele não vai
trazer a discórdia ao México”, aconselhou Stiglitz, em palestra para
estudantes e egressos mexicanos de universidades americanas. “Será muito
importante que o México construa a solidariedade. O presidente é só uma
pessoa que esperamos que fique no cargo somente por quatro anos.
Continuaremos depois de Trump e temos que mostrar o que realmente
importa. O que está acontecendo com Trump não é normal.”
O economista relativizou a capacidade do presidente de cumprir suas
ameaças: “Trump não pôde convencer o Congresso. Acho difícil acreditar
que o Congresso vá sair (do Nafta). Pode-se renegociar, mas Trump não
pode rompê-lo.” Stiglitz sugeriu no entanto que o México deixe de
depender dos EUA e faça acordos comerciais com a América Latina, Europa,
China e África.
É mais um capítulo na saga mexicana em busca da independência.
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