segunda-feira, 3 de outubro de 2016

"Acordo de leniência é entre Administração e empresa e ninguém mais, nem o MP"






O ministro Gilson Dipp, aposentado do Superior Tribunal de Justiça, anda oferecendo cafezinhos de graça em suas palestras. Para ganhar um, diz ele, basta apontar, na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), “uma linha” que trate da participação do Tribunal de Contas da União e do Ministério Público nos acordos de leniência. No caso do TCU, o café sai ainda mais caro, já que a lei sequer cita o órgão.

Na opinião do ministro, o acordo de leniência só pode ser celebrado pelo ente lesado e pela empresa que causou o dano. Ninguém mais. “A participação do Ministério Público e do TCU dá mais garantias, mas, ao mesmo tempo, complica. As exigências passam a ser tão grandes, que acaba prejudicando qualquer acordo”, diz, em entrevista à ConJur.

Dipp está lançando um livro, junto com o desembargador Manoel Lauro Volkmer de Castilho, aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sobre o assunto. Intitulada Comentários sobre a Lei Anticorrupção, a obra é justamente o que promete: textos sobre cada linha da lei, da ementa à data da entrada em vigor, passando pela exposição de motivos da Presidência da República, autora do projeto, e pela tramitação legislativa. E depois de pronto o livro, o ministro conclui: “A lei veio furada”.

A intenção da norma, lembra Dipp, era atender a exigências da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre combate a lavagem de dinheiro e a corrupção empresarial internacional. Tanto que o projeto foi enviado ao Congresso ainda pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que deixou a o cargo em 2009 e dizia que provaria que a OCDE não era “um clube de ricos”.

O projeto dormiu na Câmara até 2013, quando a classe política foi pega de surpresa pelas manifestações de junho daquele ano, quando milhões de pessoas foram às ruas, em São Paulo, protestar contra o preço da passagem de ônibus e aproveitaram para reclamar das autoridades públicas do país. Aí a tramitação foi acelerada, e o texto foi aprovado em dois meses, para entrar em vigor em 180 dias.

Esse cronograma coincidiu com a deflagração da operação “lava jato”, que naquela época começava a descobrir contratos superfaturados entre empreiteiras e a Petrobras. Portanto, a lei que criou o acordo de leniência nasceu sob a égide de uma investigação policial, e o resultado, afirma Dipp, foi uma lei penal travestida de lei administrativa.

Desde o início, os textos da exposição de motivos e das relatorias no Congresso falavam em combate ao suborno, à corrupção, à lavagem de dinheiro etc. “Com toda essa linguagem explícita, desde a mensagem presidencial até as relatorias na Câmara e no Senado, se alguém encontrar uma linha da lei que fale em corrupção e suborno, eu pago um cafezinho “, desafia Dipp.

O ministro aposentou-se do STJ em 2014, no mesmo dia que o ministro Ari Pargendler, seu colega de faculdade. Foi corregedor nacional de Justiça e colaborou com a OCDE para a implantação de medidas de combate à lavagem de dinheiro. Entre elas, a especialização de varas na Justiça Federal e a criação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla). Hoje, é sócio do escritório Carneiros e Dipp, do advogado Rafael Araripe Carneiro.


Leia a entrevista:


ConJur — O livro se chama Comentários à Lei Anticorrupção. Qual o principal comentário à lei?
Gilson Dipp — O interessante aqui é que é um livro que não tem uma citação, nem de jurisprudência, nem de doutrina. Ele não tem nenhuma ideia ou concepção que não seja dos autores. E a lei é comentada artigo por artigo, já trazendo todos os problemas que decorreriam dela.

ConJur — Quais são esses problemas?
Gilson Dipp —
A lei foi feita porque a OCDE pediu ao Brasil a responsabilização das empresas por atos de corrupção, mas a doutrina penal brasileira não aceita a responsabilização jurídica penal das pessoas jurídicas, salvo em Direito Ambiental. É aquela velha história de que pessoa jurídica não é um ente e não pode delinquir, quem faz a delinquência são seus sócios etc. Portanto, essa lei tem toda a concepção de uma lei penal, mas teve que virar civil e administrativa. Todo o histórico parlamentar dela mostra isso. E aqui se fez uma responsabilização administrativa.

ConJur — Isso se refletiu na lei como um todo, então?
Gilson Dipp Claro. Todos os tipos de ilícitos administrativos elencados na lei têm um tipo penal correspondente com uma redação um pouco diferente. As penas aplicadas muitas vezes correspondem às penas aplicadas ao Direito Penal: suspensão de atividades, bloqueio de bens, proibição de contratar com bancos públicos.

ConJur — A grande novidade da lei foi a história do compliance, ou “programa de integridade”, que é como o governo decidiu traduzir. Existe novidade nisso? Já existia a preocupação com compliance muito antes dessa lei.
Gilson Dipp Claro! Todas as grandes empresas, em especial aquelas que investem na Bolsa de Nova York, têm programas de compliance. Mesmo grandes empresas sem exigência já tinham programas de integridade, tudo copiado do sistema americano, do sistema inglês, todas empresas multinacionais, isso não é novidade. O programa de compliance existe no Brasil desde a Lei de Lavagem de Dinheiro, de 1998.

ConJur — Já do mesmo jeito que está na Lei Anticorrupção?
Gilson Dipp Ela fala principalmente a bancos. Diz que os bancos, para evitar que dinheiro sujo entre no sistema financeiro devem conhecer seus clientes. Foi seguida a orientação do Gafi [Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo], que funciona junto à OCDE, fica no mesmo prédio e tudo. E as recomendações do Gafi ao Banco Central foram: antes de abrir uma conta, conheça o seu cliente, conheça a origem do dinheiro do seu cliente, conheça as transações comerciais do seu cliente com outras empresas. E eu brinco em palestras: “Conheça a ex-mulher do seu cliente, porque ninguém melhor para informar que a ex-mulher, que delata sem precisar de premiação”.

ConJur — E aquela medida provisória, que acabou caducando?
Gilson Dipp Fui ouvido duas ou três vezes lá na comissão especial Câmara sobre essa MP, porque ela visava mudar não o processo administrativo, mas o acordo de leniência – leia-se, em função da “lava jato”. A intenção era aplicar multas menores, para possibilitar acordos menos drásticos, para que não ficasse impossibilitada de contratar com o poder público, de ter financiamentos. Ou seja, o regulamento visou atenuar a rigidez da lei por uma questão factual de momento, que foi a “lava jato”.

ConJur — Ainda há a confusão sobre quem pode se envolver nos acordos...
Gilson Dipp Antes, quando se falava em acordo de leniência, a CGU tinha exclusividade. Mas quando é que começou a dar problema? Eu sempre critiquei isso. Como o acordo de leniência, que é o processo administrativo de responsabilização a cargo da entidade lesada, deu ibope, tanto o TCU quanto o Ministério Público quiseram participar. Mas não tem uma linha na lei sobre TCU, muito menos sobre Ministério Público. Cada um tem a sua atribuição. Como há uma tibiez, houve uma total submissão do nosso Legislativo às exigências do MP. Um Executivo fraco, um Legislativo incipiente, e ambos sob suspeita, aceitaram qualquer coisa que o Ministério Público impunha.

ConJur — Prevaleceu a vontade de um ator interessado, então.
Gilson Dipp Não estou dizendo que isso seja ruim. O que lamento é essa submissão dos poderes, que de resto ficaram enfraquecidos. Com a judicialização da política e com a politização do Judiciário e o ativismo judicial, quem manda é o Judiciário. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal.

ConJur — O Supremo deveria ter recuado?
Gilson Dipp Não é que ele queira mandar em tudo, é que pediram, e ele não teve a consciência de que não deveria avançar para além da sua atribuição. Por exemplo, as questões do impeachment. Isso é interna corporis do Legislativo! Ou o Legislativo usa de sua competência ou se demite dela. Tudo isso eu disse quando fui à Câmara falar na comissão especial que analisava a medida provisória.

ConJur — Era a MP que falava do TCU, não era?
Gilson Dipp O TCU não está na lei, está numa instrução normativa dizendo que o acordo de leniência trata de desvio de patrimônio público, de recursos públicos. Ora, nem todo ato ilícito decorre de verba pública. A missão do TCU é verificar as contas públicas. Qualquer prejuízo que um ente público tivesse, a qualquer momento o TCU poderia atuar, por força Constituição. Querer participar desde o início das negociações do acordo de leniência é uma pauta.

ConJur — E o Ministério Público?
Gilson Dipp Mesma coisa. Entraram dizendo que só eles conhecem o valor dos danos causados porque são os donos da ação penal. Mas são coisas diferentes, as competências são diversificadas! Agora o Ministério Público está fazendo acordo de leniência, com esse nome, homologado pelo juiz penal, com silêncio absoluto da administração. Isso pode ser tudo, delação premiada, pode ser até um termo de ajustamento de conduta, mas chamar de acordo de leniência e prejudicar os acordos que estão andando na CGU? E a própria CGU manda ouvir o Ministério Público porque tem dificuldades...

ConJur — Mas a medida provisória caducou e o TCU continua nos acordos de leniência.
Gilson Dipp O TCU tem uma instrução normativa de 2004 dizendo que se fazia necessária sua participação etc. E a CGU sucumbiu a isso. O acordo de leniência quem conduz é o ente lesado. Quem verifica as possibilidades, as vantagens e desvantagens que o acordo tiver é a administração pública e a empresa. Ponto.

ConJur — Então não é para ter ninguém de fora?
Gilson Dipp Ninguém! O Ministério Público já tem suas ferramentas. O TCU já tem sua tomada de contas, e em qualquer setor ele pode entrar como verificador do dano ao erário. Além de tudo isso, a lei nunca excluiu o Ministério Público ou a própria Receita de, ao se sentir lesada por um acordo, por um processo que chega a seu fim, promover as respectivas ações que lhe são próprias.

ConJur Hoje a participação do Ministério Público e do TCU nos acordos de leniência é ilegal?
Gilson Dipp
— Se alguém me mostrar um dispositivo da lei que se refira a esses órgãos, eu pago um cafezinho. Portanto, esta é uma lei que está sendo aplicada, mas que já veio com dificuldades de origem. Para o Brasil cumprir tratados com a OCDE, ela foi colocada rapidamente em discussão face às manifestações de junho de 2013, aprovada agosto daquele ano para entrar em vigor em janeiro de 2014, em plena “lava jato”, onde basicamente as investigações foram feitas a empresas.

ConJur — Bom, então por que uma empresa faria um acordo de leniência?
Gilson Dipp Eu disse quando ainda estava no STJ que se eu fosse advogado nunca faria um acordo de leniência. A participação do Ministério Público e do TCU dá mais garantias, mas ao mesmo tempo complica tanto, as exigências passam a ser tão grandes, que acaba prejudicando qualquer acordo. Isso teria que ser modificado na própria Lei Anticorrupção.

ConJur — Para dizer o quê?
Gilson Dipp Para estabelecer a participação do Ministério Público e do TCU. Mudar toda a configuração da lei, que hoje é o foco na prática de ato ilícito contra a administração pública, e ela que deve levar o processo administrativo, aplicar as penalidades, fazer acordo etc. Essa lei veio furada já da sua elaboração legislativa.

ConJur — Em que sentido?
Gilson Dipp Desde a mensagem presidencial do Lula, passando pela relatoria do Zarattini na Câmara e pelo Ricardo Ferraço, relator no Senado, a justificativa da lei era: "O Brasil tem de cumprir com acordos internacionais”, “o Brasil tem que combater a corrupção”, “o Brasil tem que combater o suborno”, "o Brasil tem que ser transparente". E aí eu falo em palestras: Com toda essa linguagem explícita, desde a mensagem presidencial até as relatorias na Câmara e no Senado, se alguém encontrar uma linha da lei que fale em corrupção e suborno, eu pago um cafezinho na esquina.

ConJur — E por que não fala em corrupção e suborno?
Gilson Dipp Porque é uma lei penal que não teve coragem! Corrupção e suborno são tipos penais!


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