Chefs franceses assinam carta aberta na internet contra a compra da Monsanto pela Bayer; eles denunciam o que chamam de “a invasão dos pesticidas"
A compra da multinacional de biotecnologia Monsanto pela empresa química alemã Bayer num negócio de 66 bilhões de dólares conseguiu o impossível: unir chefs estrelados franceses em prol de uma causa comum. Diferenças gastronômicas foram postas de lado no movimento que, segundo eles, pretende alertar sobre a crescente venda — e, consequente, consumo — de alimentos com agrotóxicos.
A carta aberta divulgada pelo site francês de gastronomia
Atabula conta com as assinaturas de Michel e Sébastien Bras, pai e
filho que comandam um restaurante no departamento de Aveyron várias
vezes presente na lista dos 50 melhores restaurantes do mundo; Yannick
Alléno, dono de um estabelecimento com três estrelas no Guia Michelin e
cozinheiro do ano em 2014 pelo guia francês Gault et Millau; Mauro
Colagreco, considerado o melhor chef francês pelo guia britânico Best
Restaurant em 2015 e Olivier Roellinger, premiado internacionalmente
pelo talento no preparo de frutos do mar. Todos eles denunciam o que
chamam de “a invasão dos pesticidas em nossos pratos” em um negócio que
representa uma ameaça para a diversidade de alimentos, para a saúde
humana e para o meio ambiente.
A transação entre Bayer e Monsanto — chamada pelos chefs de um
“casamento dos infernos” — foi anunciada em setembro em mais um episódio
na concentração do mercado global de insumos agrícolas. As americanas
Dow Chemical e DuPont se uniram em julho deste ano. A chinesa ChemChina
deve concluir até 2017 a compra da suíça Syngenta. Todos os negócios
ainda carecem de aprovação dos órgãos reguladores.
Foi nesse contexto que surgiu a carta aberta redigida pelo ex-editor
do Guia Michelin e fundador do site Atabula, o francês Franck
Pinay-Rabaroust. O jornalista lançou o manifesto em seu site e solicitou
o apoio de todos os chefs e associações que se identificassem com a
causa. “Os grandes chefs da cozinha francesa são figuras midiáticas e
influenciadores de opinião. Eles podem e devem promover o debate
político”, explica.
Segundo o autor, a carta surgiu de uma necessidade pessoal de
expressar seu descontentamento e sua preocupação com as consequências da
transação entre Bayer e Monsanto. “Esta nova empresa que nasce tem uma
ambição muito perigosa que diz respeito a todos nós: controlar toda a
cadeia alimentar, da terra onde cresce a semente até o alimento que
chega no nosso prato. Não podemos aceitar de cabeça baixa, temos que
agir”, afirma Pinay-Rabaroust.
A carta ganhou rapidamente o apoio de todos profissionais de
restaurantes e, consequentemente, visibilidade nas mídias sociais. Para
se ter ideia da repercussão, a carta aberta já foi assinada por mais de
20.000 pessoas ligadas aos negócios de alimentação, como restaurantes,
bares e cafés do mundo todo.
Em trecho da carta, os chefs apoiam a causa no papel de “ardentes
defensores da culinária e da arte de comer bem, comprometidos
cotidianamente na valorização dos bons produtos, dos pequenos produtores
e de valores fundamentais como o apoio à biodiversidade, meio ambiente e
a saúde dos clientes”. Para eles, uma das principais preocupações está
no fato de que “os agrotóxicos e os organismos geneticamente modificados
(OGM) constituem um perigo exposto em nosso prato e uma fonte de
inquietude para os agricultores que veem limitada a liberdade de plantar
e de cultivar determinadas sementes e não conseguem preços competitivos
no mercado”.
Os profissionais alertam que “sem um produto saudável e de qualidade,
sem a diversidade de plantio, o cozinheiro não pode expressar o seu
talento criativo” e assinam embaixo que “no futuro, por causa dos
transgênicos e de diferentes produtos químicos oriundos da indústria
agroquímica, a variedade de cultivo não existirá mais”, fazendo um apelo
à “responsabilidade e à tomada de consciência coletiva”.
Defesa da tradição
O chef Armand Layachi, do restaurante Le Goût Juste, em Montpellier,
soube do manifesto por meio da associação Euro-Toques França. Com sede
em Bruxelas, a associação representa todos os chefs franceses na Europa
que se engajam pela defesa da qualidade dos alimentos e na proteção da
herança culinária francesa.
Todos os chefs associados se comprometem a garantir aos seus clientes
uma alimentação saudável e segura vinda de alimentos frescos e da
estação. Como membro engajado, Layachi diz que “alertar sobre os perigos
dos transgênicos e dos agrotóxicos é mais que proteger a saúde dos
clientes, trata-se de proteger as gerações futuras e mostrar para as
multinacionais que elas não vão ditar as regras”.
Para o chef, que utiliza somente produtos orgânicos de agricultores
locais, utilizar qualquer produto para cozinhar hoje em dia significa
envenenar os clientes em pequenas doses. Ele acredita que os pequenos
agricultores — os poucos que ainda dominam a arte do cultivo orgânico —
em pouco tempo não vão mais conseguir competir com o preço dos alimentos
modificados produzidos em larga escala. “Nós, chefs, se quisermos
garantir a saúde de nosso clientes vamos ter que trabalhar com uma gama
limitadíssima de alimentos. É como limitar um pintor às cores preta e
branca”, acredita.
Defensor árduo da agricultura orgânica, Layachi crê que a variedade
de alimentos, sabores e aromas só será recuperada se o homem voltar
aprender a trabalhar a terra sem o uso da biotecnologia. “Precisamos
reaprender a cultivar e usar o solo de forma inteligente, sustentável e
eficaz. Para mim isso é questão de segurança alimentar”.
Layachi não está sozinho nessa crença. Seu discurso é similar ao de
Nicolas Bricas, agrônomo da Unesco e chefe de projetos sobre segurança
alimentar nos países do hemisfério sul. Segundo ele, o monopólio do
mercado mundial de insumos agrícolas vai completamente em desencontro
com o que se busca hoje em termo de agroecologia, ciência que estuda a
agricultura desde uma perspectiva ecológica e sustentável.
“A transação entre Bayer e Monsanto coloca em cheque a diversidade
genética das plantas e a diversidade das diferentes formas de cultivo de
acordo com o meio ambiente”, afirma. E isso não mudará tão cedo.
Segundo Bricas, os agricultores não têm alternativas a não ser utilizar
certos produtos que protegem a colheita de doenças e predadores, em
particular as monoculturas. Esse fato explica o poder das multinacionais
de insumos agrícolas e também o porquê de muitos agricultores
defenderem o uso dos agrotóxicos.
O caminho para reverter o cenário atual é aumentar os investimentos
em pesquisas que acelerem a transição da agricultura que conhecemos hoje
para um modelo de produção sustentável, que utilize menos água e tenha o
menor impacto possível na biodiversidade. Nesse sentido, cartas
abertas, como a do site Atabula, são importantes para a diversidade de
opiniões nos debates sobre agricultura e gastronomia. Afinal, é como diz
o provérbio: a boa comida é a base para a felicidade genuína.
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