Um
“atalho” usado pelo Ministério Público Federal para ter cooperação
judicial internacional coloca em risco a operação “lava jato”. Um
documento que acaba de chegar à Justiça mostra que o MPF driblou
exigências legais para obter dados de contas bancárias na Suíça. Como o
Estado nunca pode ir contra a lei — que ele mesmo faz —, o
movimento pode custar caro a todo o desenvolvimento da já famosa
operação que investiga corrupção na Petrobras.
O tratado de
cooperação jurídica entre o Brasil e a Suíça para matéria penal deixa
claro o “caminho das pedras”: cabe às autoridades centrais dos países
fazer pedidos e autorizar a troca de documentos.
O Decreto 6.974/2009,
que promulgou o tratado, lista como autoridade central no Brasil apenas
um órgão: a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério de Justiça.
Isso significa que todo pedido e autorização de cooperação penal entre
os dois países precisa necessariamente passar por esta secretaria para
ser considerado legal. Caso contrário, claro, é ilegal.
Uma certidão que acaba de ser anexada a um processo no Superior
Tribunal de Justiça mostra que o Ministério Público Federal trouxe da
Suíça documentos relacionados à operação “lava jato” sem a autorização
do Ministério da Justiça. Trata-se de um pen drive (mídia USB) com
informações de contas bancárias relacionadas a “Paulo Roberto Costa,
Alberto Youssef e outros” (veja lista abaixo).
O Ministério Público suíço confirma ter entregado os documentos ao procurador brasileiro Deltan Dallagnol — chefe da força-tarefa do MPF na “lava jato” — em 28 de novembro de 2014.
O Ministério Público suíço confirma ter entregado os documentos ao procurador brasileiro Deltan Dallagnol — chefe da força-tarefa do MPF na “lava jato” — em 28 de novembro de 2014.
Titular da conta | Banco |
---|---|
White Candle Invest | Banque Cramer & Cie |
Omega Partners | Royal Bank of Canada (Suisse) |
Inernational Team Enterprise | Royal Bank of Canada (Suisse) |
Larose Holdings | Royal Bank of Canada (Suisse) |
Glacier Finance | Royal Bank of Canada (Suisse) |
OST Invest & Finance | Banque Lombárd Odier & Cie |
Sampaio de Mesquita | Banque Lombárd Odier & Cie |
Sygnus Assets | PKB Privatebank |
Rock Canyon Invest | PKB Privatebank |
Sagar Holding | Bank Julius Baer & Co |
Paulo Roberto Costa | Bank Julius Baer & Co |
Quinus Services | HSBC Private Banque (Suisse) |
O
pedido não foi feito via Ministério da Justiça, como determina o
tratado internacional. A própria Secretaria Nacional de Justiça fez um
alerta ao MP, enviando um ofício à Procuradoria-Geral da República no
qual diz que “é de extrema importância que os documentos restituídos
pelas autoridades suíças não sejam usados para instruir processos ou
inquéritos não mencionados no pedido de cooperação jurídica
internacional, sem prévia autorização da autoridade central”.
Na certidão recentemente anexada a um processo relacionado à Odebrecht no STJ, o Ministério da Justiça atesta que não tem conhecimento da motivação ou do desenvolvimento da viagem do Ministério Público Federal à Suíça em novembro de 2014. Ou seja, a entrega dos documentos não passou pela autoridade central responsável pela cooperação jurídica entre Brasil e Suíça, como diz a lei. Logo, é uma prova ilegal, que pode contaminar todo o processo.
Reunião com o ministro
Essa certidão, que ameaça ruir parte da operação que investiga corrupção
na Petrobras, foi pivô de um dos episódios mais marcantes da novela
“lava jato”. Os advogados da Odebrecht foram recebidos em audiência pelo
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no dia 5 de fevereiro deste
ano, para reclamar de vazamentos de informações sigilosas e para pedir
que o ministério emitisse a certidão sobre a cooperação internacional. O
simples fato de ter havido uma reunião (oficial e listada na agenda do
ministro) foi motivo de notícias alarmantes e acusações contra os
advogados e o ministro.
O caso ganhou destaque em jornais e o
próprio Cardozo foi à imprensa rebater as críticas ao encontro, dizendo
que não aceitaria a criminalização da advocacia, como estava ocorrendo.
Sua fala rebatia insinuações feitas inclusive pelo ex-ministro do
Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, que, em redes sociais, pedia a
demissão de Cardozo. “Nós, brasileiros honestos, temos o direito e o
dever de exigir que a presidente Dilma demita imediatamente o ministro
da Justiça. Reflita: você defende alguém num processo judicial. Ao invés
de usar argumentos/métodos jurídicos perante o juiz, você vai recorrer à
política?”, escreveu Barbosa.
A melhor resposta a Joaquim
Barbosa, avaliam advogados, é a própria certidão do Ministério da
Justiça, que mostra como provas foram trazidas de forma ilegal da Suíça.
Profissionais que atuam no caso apontam também que a certidão
desmente o que disse o secretário de cooperação internacional da
Procuradoria-Geral da República e procurador regional da República, Vladimir Aras, em entrevista ao Jornal Nacional.
No dia 20 de fevereiro deste ano, o jornal mostrou a rota que devem
seguir os pedidos de provas da Suíça na “lava jato”: O Ministério
Público Federal no Paraná faz um pedido de informações para a Secretaria
de Cooperação Jurídica internacional da PGR, que encaminha tal demanda
ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional do Ministério da Justiça, que, por sua vez, faz uma
solicitação às autoridades suíças.
Aras disse à Rede Globo, que o
pedido dos advogados da Odebrecht para ter acesso à certidão que agora
chega ao STJ seria “uma tentativa de encontrar nulidade onde não há”. O
procurador disse ainda ter “certeza absoluta, convicção, de que todo
procedimento foi observado de acordo com as leis e os tratados”.
Pesca proibida
Questionado pela ConJur sobre o documento que mostra o
MPF encaminhando pedidos diretamente ao Ministério Público Suíço e
recebendo documentos relativos à operação, Vladimir Aras diz, agora, que
“são corriqueiros e absolutamente comuns os contatos diretos entre
autoridades de persecução de países distintos”.
Ele reafirma que
todos os procedimentos foram observados na “lava jato” e que o fato de
documentos terem sido entregues a Dallagnol antes de haver o pedido
formal via Ministério da Justiça foi o resultado de contatos prévios,
estimulados para que os pedidos “sejam precisos, adequados e completos e
não necessitem de aditivos ou retificações”. Ou seja, o MPF teve acesso
às provas para saber exatamente quais provas pedir pela via formal.
“A
tramitação pela autoridade central ou por via diplomática é requisito
sempre observado pelo Ministério Público Federal em todos os pedidos de
cooperação, tenha ou não tenha havido contato direto prévio entre
procuradores brasileiros e estrangeiros”, diz Aras (leia a resposta
completa abaixo).
A professora de Direito Internacional da Uerj e advogada do Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados, Carmen Tiburcio,
entende que a atuação do MPF neste caso — em tese, uma vez que ela
ressalta não atuar no caso — segue as normas internacionais que impedem o
fishing expedition. A expressão se refere a pedidos genéricos,
em uma “pescaria” de provas. Segundo ela, ao ter acesso aos documentos
antes, o Ministério Público saberá o que pedir. Ela enfatiza que só será
possível usar os documentos oficialmente após tê-los recebido pela via
da cooperação.
Árvore envenenada
Já o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano, que advoga para a Odebrecht, rebate: “A lei é clara: só é possível trazer documentos via autoridade central”. Segundo ele, o argumento segundo o qual a remessa de provas serviu apenas para que o MPF, posteriormente, fizesse o pedido pela via correta, sabendo o que pedir “é para tentar fazer com que essa ilegalidade clara não contamine as provas”.
Para Serrano, há uma ilegalidade patente em tudo que
resultou desta coleta de provas ilícita. Ele aponta a regra do Direito
Constitucional conhecida como teoria dos frutos da árvore envenenada,
segundo a qual, uma vez que a acusação baseou-se em provas ilícitas,
toda ela é ilegal. Serrano faz questão de ressaltar que isso não é uma
posição da Odebrecht, mas dele, e que será levada aos criminalistas que
atuam no caso.
O fato de a companhia ter sido forçada a pedir em
juízo a certidão, uma vez que o MPF havia se negado a fornecê-la,
mostra, para Serrano, que o MPF adota uma postura dúbia: “Quando
trata-se de acusações contra os réus, diz que é preciso ser transparente
junto ao público. Quando diz respeito a um erro do próprio MP, não age
de forma transparente”. E finaliza: “A transparência seletiva é
incompatível com uma instituição republicana”.
O criminalista Fábio Tofic Simantob faz coro às
críticas. Segundo ele, como os documentos tratam de dados bancários,
dependem, inclusive de autorização judicial para serem obtidos. Além
disso, não podem ser entregues a qualquer órgão que não seja a
autoridade central do país. “Isso não é uma padaria, onde qualquer
pessoa chega no balcão e pede o que quiser para levar para casa”, diz o
advogado, que também atua na “lava jato”. A obtenção das informações
bancárias sem o procedimento correto, diz Tofic, torna todo o
procedimento viciado.
Em nova petição no STJ, a Odebrecht aponta
também que, agora que está comprovado que foram encaminhados para a
Suíça três pedidos de cooperação contendo o nome de empresa do grupo
Odebrecht, a defesa tem todo o direito de conhecer o conteúdo desses
pedidos.
Pressa contra perfeição
Esta não é a primeira vez que o Ministério Público põe à prova o
provérbio judaico que diz que “o caminho mais curto é pedregoso”. A
sanha do órgão em buscar provas que, posteriormente, são consideradas
ilícitas e anulam o processo chegou ao ponto de o próprio MPF propor
mudanças legislativas para que o uso de provas ilícitas não contaminasse
o processo. Assim, seria blindado para usar as provas que quisesse e,
depois, descartá-las, aproveitando o resultado que estas trouxessem à
acusação.
O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, cita como exemplo do problema a operação farol da colina, que, em 2004, prendeu, entre outros, o empresário do Pará Fernando Yamada.
Coincidentemente, a prisão foi determinada pelo juiz Sergio Moro, em um
desdobramento do caso Banestado. Yamada foi solto e, posteriormente,
absolvido, porque provas que o Ministério Público Federal trouxe de fora
do país não seguiram o trâmite determinado pela lei.
Outro
evento que gerou burburinho foi o da Igreja Renascer, em que um
documento da Justiça Italiana convocava o jogador Kaká para depor “a
pedidos da Justiça Brasileira”. No entanto, a Justiça negou que tivesse
feito o pedido. O Ministério da Justiça, por sua vez, afirmou que o pedido foi
encaminhado ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação
Internacional do Ministério da Justiça pelo promotor Marcelo Mendroni, e não pela vara que cuidava do caso. Mendroni era o membro do Ministério Público de São Paulo responsável pela denúncia.
O jurista Lenio Streck, ao comentar a questão,
afirma que, se ficar comprovado que o MPF tomou um "atalho
investigativo", "podemos estar em face, talvez, da maior escorregada
formal do processo penal nos últimos tempos".
Ele faz a ressalva
de que é preciso esperar o posicionamento da Justiça. "Mas algo há. E
houve. Parece que o MP está diante do 'dilema da ponte' da qual falo
para enfrentar argumentos teleológicos no livro Verdade e Consenso:
como ultrapassar um abismo, chegar do outro lado e depois voltar para
construir a ponte pela qual se acabou de passar?", questiona.
Lenio
aponta que "para o bem e para o mal, devemos agir por principio e não
de forma finalística teleológica", lembrando que ele mesmo colocou essa discussão em pauta
no último congresso do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em
setembro, quando dividiu a mesa com o juiz responsável pela "lava jato"
em Curitiba, Sergio Fernando Moro.
Resposta da Procuradoria-Geral da República |
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Todos os procedimentos de cooperação
internacional foram observados no caso Lava Jato, como ocorre aliás em
todas as outras apurações transnacionais do MPF.
São corriqueiro e
absolutamente comuns os contatos diretos entre autoridades de
persecução de países distintos, sejam eles procuradores, policiais ou
autoridades ligada a UIFs. Tais contatos prévios são estimulados por
foros internacionais, como o UNODC, como providências que devem
anteceder pedidos formais, para que tais rogatórias e "mutual legal
assistance requests" sejam precisos, adequados e completos e não
necessitem de aditivos ou retificações.
Ademais a troca de informações entre autoridades do Estado requerido e
Estado requerente não é prática vedada por qualquer norma interna ou
internacional, sendo modelo condizente com o que a comunidade
internacional espera dos países para o eficaz combate à criminalidade
transnacional, notadamente aquela relacionada a crimes graves.
A
tramitação pela autoridade central ou por via diplomática é requisito
sempre observado pelo Ministério Público Federal em todos os pedidos de
cooperação, tenha ou não tenha havido contato direto prévio entre
procuradores brasileiros e estrangeiros, valendo lembrar que a PGR é
autoridade central em três tratados (Portugal e Canadá e Convenção de
Nova York) e também vela pela validade de documentos que tramitam por
esses canais.
Há mais de uma década o MPF vem utilizando modernas
técnicas de cooperação para instruir ações penais no Brasil. O método
adotado hoje na Lava Jato segue boas práticas internacionais, os
tratados e a legislação interna.
São três as perguntas a fazer: de
quem é o dinheiro que tramitou por essas contas? Quem depositou esse
dinheiro? Qual a razão dessas transferências?
|
Clique aqui para ler a certidão do Ministério da Justiça.
Clique aqui para ler as informações do MP da Suíça sobre a entrega de documentos a Deltan Dallagnol.
Clique aqui para ler a nova petição da Odebrecht sobre o caso
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