A marca da presença britânica no Rio de Janeiro vai além do futebol e a cerveja.
Que foram os britânicos que trouxeram o futebol para o Brasil ninguém
duvida. Diz a história oficial que o paulista Charles Miller, de pai
escocês e mãe brasileira, teria realizado, em 1895, a primeira partida
de futebol em solo tupiniquim. O evento teria ocorrido na Várzea do
Carmo, no Braz, entre os funcionários da Companhia de Gás e da Companhia
Ferroviária de São Paulo. Mas essa versão dos fatos é contestada pelos
guardiões da memória de Bangu, no Rio de Janeiro. Um deles, o
pesquisador Carlos Molinari, que estuda a história do bairro há mais de
15 anos, diz que o pontapé inicial desse esporte, em nosso país, foi
dado em setembro de 1894, pelo escocês Thomas Donohoe, um dos técnicos
que os donos da Fábrica de Tecidos Bangu trouxeram da Grã-Bretanha para
integrar a linha de produção da indústria têxtil.
Para a partida histórica, seu Danau – como os brasileiros chamavam
Donohoe – convocou outros funcionários de origem inglesa que já
conheciam futebol. Dois times de seis jogadores disputaram a pelada no
terreno da fábrica, onde hoje fica o estacionamento do Shopping Bangu.
Mas tenha ou não acontecido no Rio o primeiro chute do futebol
brasileiro, o fato é que contratar técnicos britânicos para cuidar da
operação dos teares e da produção era uma prática comum entre as
tecelagens cariocas daquele tempo, como foi o caso das fábricas de Del
Castilho e Sapopemba (em Deodoro), entre muitas outras que se instalaram
na cidade.
Aliás, no Rio do século XIX, os britânicos tinham primazia e
prestígio em várias outras funções técnicas e científicas: de médicos a
farmacêuticos; de engenheiros de estradas de ferro a relojoeiros,
ferreiros etc. Ter alguns hábitos da Grã-Bretanha, assim como da França,
era algo muito chique entre a elite e a população da cidade que buscava
ascensão social.
Embora a vinda de ingleses ao Rio de Janeiro seja anterior à chegada
da família real – pois faziam incursões científicas pelo litoral
brasileiro –, foi em 1808 que eles “invadiram” a então capital do país.
Com a abertura dos portos às nações amigas e a conquista de impostos
mais baixos que os pagos pelos portugueses, inúmeros técnicos,
missionários, cônsules, aventureiros e comerciantes desembarcaram na
cidade, com a perspectiva de compensar as perdas que amargavam na
Europa, em razão do Bloqueio Continental contra a Grã-Bretanha,
promovido por Napoleão Bonaparte.
Novos costumes
O impacto mais imediato na vida dos cariocas, com a chegada dos
britânicos – ingleses, escoceses, irlandeses e galeses – e da corte, foi
a profusão de novos artigos e produtos disponíveis no mercado, que
mudaram muitos de nossos hábitos. Os primeiros negociantes chegavam com
navios carregados de mercadorias, que eram vendidas em leilões: tecidos,
chapéus, casacas, meias, sapatos, lenços, louças, bules, talheres,
relógios, ferramentas, tintas, móveis, vidro, binóculos e muitos outros
itens do cotidiano. Logo, eles começaram a se instalar em casas
comerciais: no Rio de 1811, já havia 75 estabelecimentos deles (contra
207 dos portugueses).
De acordo com Gilberto Freyre, em seu livro Ingleses no Brasil,
houve, nessa época, uma verdadeira revolução na cidade – transformações
que ele comparou com o teatro, que, de repente, muda o cenário do
espaço e o figurino dos atores. Os tecidos coloridos feitos no Oriente,
comercializados por portugueses, por exemplo, passaram a ser vistos como
pano para roupa de matuto. Os cidadãos urbanos, agora, se vestiam com
linhos, casimiras, cambraias, fustões, lãs e outras fazendas inglesas de
cores pálidas ou escuras. A paisagem do casario também sofreu
alterações. “Por se prestarem a esconder malfeitores e assassinos”, dom
João VI editou lei contra as gelosias (janelas feitas de madeira
treliçada), abrindo caminho para a importação de vidro e ferro
fabricados na Inglaterra. Em pouco tempo, as fachadas das casas
assumiram novas feições.
Freyre ainda detecta muitas outras mudanças de costumes, como o
hábito de morar em residências ajardinadas, longe do Centro, e veranear
fora da cidade, como fazia George March, que passava o verão em sua
fazenda de lazer, localizada onde hoje fica a cidade de Teresópolis.
Foram também os ingleses que introduziram o piano nas nossas salas de
visita; o chá, o pão de trigo, o sanduíche e o bife com batata em nossas
mesas; e hábitos de higiene, como o de se barbear todos os dias… Também
foram eles que nos apresentaram à cerveja, pois, até então, os
portugueses só vendiam vinhos.
Essa “invasão” do Rio de Janeiro, possibilitada pela gravitação de
Portugal na órbita da Inglaterra, também valeu várias antipatias aos
britânicos, que – pela conjuntura política favorável – não hesitavam em
conquistar favores e privilégios. Tornaram-se impopulares,
principalmente, entre os padres – pelo fato de serem protestantes
anglicanos e não seguirem a religião católica – e entre os até então
donos do comércio do Brasil – os portugueses, para quem um escritório
comercial inglês passou a ser mais temível do que toda a artilharia
britânica.
Márcia Pimentel
(MultiRio – 16/06/2014)
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