O Brasil é um país especial, no que a nossa identidade é formada a partir de cultura, e não de região, religião ou etnia.
Dias atrás cheguei à prefeitura de São Paulo, no belo prédio do
Viaduto do Chá, para um encontro com uma amiga que participa da
administração municipal. Íamos tomar café, falar de coisas de zepelim e
acabamos convidados para uma cerimônia tão emocionante que fez tremer o
beiço deste insensível.
Nela, o prefeito Haddad, representantes da Caixa Federal e
representantes dos milhares de imigrantes dos países vizinhos
comemoravam o acordo que dá contas bancárias para os imigrantes,
especialmente os que não possuem documentos brasileiros. Sabem o que
isso quer dizer, estimados leitores?
A casa onde vivia a família daquele menino boliviano tragicamente
assassinado, por exemplo, já tinha sido assaltada quatro vezes porque
todos sabiam que os imigrantes não tinham onde guardar o seu dinheiro. A
partir de agora eles têm, e isso é imenso.
Foi a Secretaria de Direitos Humanos do governo municipal de São
Paulo, associada a um banco federal quem deu um jeito e beneficiou a
muitos e muitos milhares de imigrantes que vêm para cá e aqui vivem, no
caminho da permanência e da cidadania, se assim o desejarem.
Se querem entender o sentimento da coisa, vejam esse vídeo
sub-caseiro que eu fiz, com a fala de uma líder dos imigrantes
bolivianos durante a cerimônia.
Isso pode ser o melhor de São Paulo, uma cidade onde jamais nos perguntam de onde somos.
Na sala de aula do Infante Manuel Carneiro da Cunha, dos doze bebês,
quatro são filhos de estrangeiros e apenas quatro têm pais nascidos
aqui. Setenta por cento são filhos de migrantes, como eu. São Paulo,
estimados leitores, é uma cidade que vive a diversidade na prática, e
não no gogó.
Almocei hoje em um dos novos restaurantes de chineses, o que
significa que tudo, com exceção das mesas e cadeiras, é chinês, e eu era
um dos poucos ocidentais à bordo. Eles estão chegando em números
crescentes, se sobrepondo às camadas anteriores de japoneses e coreanos,
e por isso a Liberdade, por exemplo, é o bairro fascinante que é. Não
existe nada parecido no Brasil ou na América Latina.
Se vocês quiserem encarar a rua Aurora, podem experimentar o incrível
Rinconcito, restaurante criado por peruanos para peruanos, trazendo
junto a gastronomia sem igual de lá. Imigração é transfusão de cultura
em sua melhor forma, e uma cidade que dá boas vindas aos imigrantes está
condenada ao sucesso, sempre.
O Brasil é um país especial, no que a nossa identidade é formada a
partir de cultura, e não de região, religião ou etnia. Minha família
veio de Portugal para o Recife no século 17; um Carneiro da Cunha viajou
para o Rio Grande do Sul lá por 1890, casou com uma gaúcha dos lados do
Uruguai, e cá estou eu vivendo em São Paulo e com um filho paulistano.
Não sei tanto sobre meus antepassados quanto talvez fosse legal
saber, mas sei que o que nos tornou brasileiros está ligado à promessa
que o Brasil nos faz: qualquer um, espanhol, coreano, boliviano, quem
for, que chegar aqui vira brasileiro, se quiser. Conseguindo resistir às
incomodações que vêm junto com a condição de migrante, na segunda
geração, no máximo, todo mundo já passa a fazer parte da grande feijoada
brasileira. O que espero, é que mais e mais deles venham, e sejamos
mais testados na nossa capacidade de lidar bem com quem vem pra cá, como
temos feito, muito mais do que não feito, ao longo dos tempos.
Eu realmente gosto de viver em uma cidade que recebe aos outros como
São Paulo, sem tratar aos outros como outros. Gosto de olhar ao redor e
ver tanta diversidade. Gosto de saber que o meu filho nasceu aqui e vai
fazer parte disso. Longe de ser um lugar perfeito, é um lugar onde a
origem de cada um conta tão pouco que isso raramente é assunto, e isso
realmente me faz bem. Uma amiga baiana disse que a coisa não é bem assim
para todos, mas eu acho que essa verdade começa a se diluir, mais e
mais. Nosso último presidente não foi migrante vindo da duríssima
realidade pernambucana e que aqui se fez cidadão?
Vendo aqueles imigrantes hoje, os olhos brilhando por se sentirem
sendo tratados com respeito, dignidade e, sim, carinho, senti orgulho de
viver aqui, senti orgulho do meu prefeito ali na frente, que se
preocupou com eles o suficiente pra ir lá e dar um jeito de poderem
abrir conta no banco.
Assim que, finalmente, depois de dez anos, resolvi transferir meu
título de eleitor para cá. Já é hora de aceitar que eu não sou mais o
porto-alegrense que sempre fui, mas sim um migrante, que vive onde os
migrantes são mais aceitos e desejados. Aquela cerimônia e aqueles
bolivianos e peruanos sorridentes ao meu redor me convenceram de que é
hora de o passado finalmente virar passado e eu me juntar a eles.
Portanto, um abraço a todos desse português, argentino, angolano,
alemão, japonês, colombiano, venezuelano, chinês, neo-paulistano, eu. É
um prazer estar aqui com vocês, e vamos ver o que fazemos por essa
cidade que topou fazer de nós o que ainda vamos ser.
A todos, um bom amanhã.
Marcelo Carneiro da Cunha
(Terra Magazine – 11/10/2013)
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