Veja um exemplo de absurdo
gerado pela burocracia desumana à qual imigrantes, refugiados e
apátridas podem ser submetidos. A história surreal de Ifrain Ramirez que
viveu cinco meses no aeroporto de Guarulhos
Ifrain Pas Ramirez Morales, de 41 anos, 1,75 metro de altura e 80
quilos, é um cubano marrento, que anda a passos largos e preguiçosos e
gosta de comunicar-se com as mãos e por meio de caretas, performáticas.
Costuma responder a uma pergunta com outras. Quando contrariado, tem o
hábito bizarro de torcer o nariz, os lábios e as mãos, um gesto a que
acrescenta uma dezena de onomatopeias. “Prruuff”, “ziiuu”, “huuum”,
“tsk, tsk, tsk”, “hããã” e “viiiuplaaft” são suas favoritas, entremeadas
com um portunhol pronunciado velozmente.
Em Cuba, Ifrain foi criado por uma mãe adotiva, desde bebê. Em busca
de melhores condições, seus pais biológicos migraram para os Estados
Unidos. Começou a trabalhar aos 16 anos. Quando terminou a escola,
decidiu que não queria ir para uma universidade. “Estudar me emburrece.
Não leva a nada. Não tinha chances de me manter e precisava trabalhar
para ajudar em casa. Se não fizesse isso, todo mundo morria de fome”,
afirma. Seu último emprego em Cuba foi como chefe de jardinagem num
hotel em Havana, onde cresceu. Ele não achava ruim viver num regime
comunista, mas era difícil sobressair no trabalho e ganhar mais
dinheiro.
Em 2006, com um visto de turista no passaporte, Ifrain veio para o
Brasil. Deixara em Cuba o único filho, Kelly, nascido de um
relacionamento que acabara em divórcio. Depois de desembarcar em São
Paulo, passeou por zoológicos e pelas praias do litoral paulista.
Deslumbrou-se com o Parque da Pedra Grande, na Serra de Itapetininga,
cuja formação geológica é tida como um ponto propagador de energia
positiva. Ifrain decidiu ficar. Arrumou bicos em que fazia de tudo:
trocava telhados, lâmpadas, fazia serviços de pedreiro, pintura, fiação
elétrica. Foi também “cuidador” de cachorro, copeiro e jardineiro.
Chegou a ganhar R$ 120 por dia e, com essa renda, diz ter acumulado o
suficiente para comprar móveis e eletrodomésticos e bancar o aluguel de
um quarto.
Neste ano, quase oito depois de chegar ao Brasil, Ifrain soube que um
primo embarcaria de Cuba para Quito, no Equador. Cansado, segundo ele,
da “exploração dos estrangeiros” – “sempre disse a meus patrões que sou
cubano, mas não idiota” –, resolveu largar um emprego de caseiro em São
Paulo, com registro em carteira e salário de R$ 850 mensais, para
encontrar o parente. Comprou uma passagem para o Equador e marcou a
viagem para 24 de abril. No aeroporto de Guarulhos, munido do passaporte
cubano, de um número de CPF e da carteira de identidade para
estrangeiros, conhecida como RNE e expedida pela Polícia Federal,
embarcou num voo da Avianca. Ao chegar a Quito pela noite, deparou com
uma situação imprevista. Sem visto de entrada, foi barrado e mandado de
volta ao Brasil na manhã seguinte.
No retorno, uma nova surpresa aguardava Ifrain na imigração
brasileira. Seu RNE era provisório – fora expedido graças à anistia para
estrangeiros em situação ilegal, concedida pelo governo Lula em 2009 – e
estava vencido desde 21 de agosto de 2011. Por esse motivo, ele estava
impedido de reingressar no país. Ifrain lembra o diálogo que teve com o
agente da PF:
– Vem comigo para esse lugar, porque você será deportado.
– Deportado? Para onde?
– Para Cuba.
– Não!!! Que Cuba o quê! Você está louco? – disse, incrédulo. – Sou de Cuba, mas moro aqui há quase oito anos.
– Cala a sua boca! Você será deportado, sim.
– Deportado? Para onde?
– Para Cuba.
– Não!!! Que Cuba o quê! Você está louco? – disse, incrédulo. – Sou de Cuba, mas moro aqui há quase oito anos.
– Cala a sua boca! Você será deportado, sim.
A vida no conector
Começava aí a jornada mais inusitada da história aventureira de
Ifrain. Ele descobriu, mais tarde, que também não poderia ser deportado
para Cuba. Recebeu a visita da consulesa de Cuba em São Paulo, Ivette
Martinez Leyva. Ela comunicou-lhe que não poderia voltar ao país natal
porque deixara de ser considerado cubano a partir do momento em que
requisitara documentos brasileiros. “Ele não podia voltar para Cuba,
porque fora expatriado. Depois de dois anos fora da ilha, seus cidadãos
não podem regressar”, diz a defensora pública federal Alessandra Casali,
designada para tratar do caso de Ifrain. Como tampouco podia entrar no
Brasil, Ifrain passou a ser considerado um “apátrida” (…)
Em 25 de abril de 2013, Ifrain (…) passou a viver no aeroporto de
Guarulhos. Como a bagagem despachada no avião fora confiscada, restavam a
Ifrain uma mochila com uma toalha, uma escova de dente e uma muda de
roupas, o celular, cartões de crédito (depois cancelados) e um pouco de
dinheiro. Seu destino foi uma saleta do aeroporto de Cumbica, com uma
placa onde se lê em letras garrafais: “Área Restrita/Restricted Area”.
Ela é reservada aos passageiros em via de deportação e se abre para um
corredor, de uns 100 passos de comprimento e outros 30 de largura, que
liga os terminais 1 e 2 do aeroporto de Guarulhos.
Dentro delas, há uma
fila de cadeiras metálicas de estofado azul e três sofás de couro
marrom. Sobre eles, edredons doados por companhias aéreas. Nas paredes,
rabiscos em árabe escritos a caneta, restos de um pernilongo esmagado na
calada da noite e outras siglas ininteligíveis aos olhos brasileiros.
Ao fundo, um banheiro feminino e um masculino.
Em ambos, há um vaso
sanitário e um chuveiro sem energia elétrica. A saleta e o corredor, de
onde se podem avistar, por janelões, as aterrissagens e as decolagens
dos aviões, formam o “conector”, uma área que não é considerada nem
território brasileiro nem estrangeiro, por onde os deportados podem
circular. Um passo além do “conector”, de qualquer de um dos lados, é
proibido aos deportados – que ficam, permanentemente, sob a vigilância
de três fiscais da companhia que administra o aeroporto de Guarulhos.
O “conector” foi o lar de Ifrain por 160 dias. Foi onde o encontrei
no fim da manhã de 1° de outubro, depois de perder um embarque para
Assunção, no Paraguai. Ifrain vestia uma de suas três camisas – uma polo
gasta azul-marinho, com listras verticais em tons de azul, verde e
branco –, uma de suas duas bermudas – de jeans, puída e manchada –, um
relógio de pulso antigo preso à mão esquerda e uma sandália de borracha
aos pedaços. Seu cabelo, ondulado e comprido, estava engordurado.
Implorava por um bom xampu. No rosto, de sobrancelhas espessas e unidas,
nariz adunco e barbicha longa e grisalha, o sorriso de dentes
amarelados denunciava a falta de pasta de dente. No corpo, Ifrain
ostentava presentes de deportados aleatórios, como um rosário, pulseiras
africanas em tons variados e um colar de bolinhas.
Perguntei a ele como fizera para suportar viver por cinco meses, as
24 horas do dia, naquele ambiente. O escape, diz Ifrain, foi a internet.
Ele ficava plugado praticamente o tempo todo. Ao ser barrado na volta
ao Brasil, conservara um iPad míni, comprado à vista. Quando caiu no
limbo, diz que fez um negócio com um deportado e o trocou por um
notebook e mais US$ 200.
Conseguiu o acesso à internet, graças ao sinal
da conexão sem fio de um hotel usado para pernoite por passageiros de
voos internacionais, no outro extremo do “conector”. A senha lhe foi
passada por um nigeriano – e Ifrain se viciou em OdinQuest, um game do
Facebook. A rede social também virou o meio de comunicação com o resto
do mundo. Pelo Facebook, Ifrain passou a falar com conhecidos e parentes
em todas as partes e a dar notícias de sua estadia em Guarulhos – uma
das fotos publicadas por ele mostra a saleta dos deportados, com a
irônica legenda: “Minha Casa, Minha Vida”, referência ao programa de
moradia popular do governo Dilma Rousseff.
A comida era fornecida pela Avianca, companhia aérea que deixara
Ifrain embarcar para Quito sem documentos regulares. Por isso, a empresa
sofrera uma punição. Toda dia, chegava para Ifrain uma marmita do
restaurante dos funcionários do aeroporto, conhecido em Guarulhos pelo
apelido de Mosca Frita. “Dá para imaginar, não?”, diz Ifrain,
sarcástico, ao comentar a qualidade da comida. Quando estivemos juntos,
dentro da marmita havia arroz, alguns pedaços de brócolis e uma bisteca
suína. Ele ganhou ainda uma lata de refrigerante. A funcionária que
prestava serviços para a Avianca, ao entregar a comida, lhe avisou: “Fui
eu que fiz, Ifrain. Se reclamar…” Apesar da ameaça velada, ele deu
apenas duas garfadas na carne e largou a marmita.
Por falta de chuveiro elétrico, os banhos exigiam uma estratégia para
se adequar à temperatura ambiente. Se o dia estivesse frio, Ifrain não
tomava banho. Se o tempo esquentasse, aproveitava também para lavar a
roupa. Sem pasta, passou a escovar os dentes só com as cerdas. Como
produtos de higiene são artigos de luxo no “conector”, Ifrain só os
usava quando um passageiro compartilhava um pouco. Os cabelos cresceram.
As unhas também. Para cortá-las, Ifrain usava os dentes. E as do pé?
– Aqui é assim – diz ele, e emenda uma onomatopeia para explicar o
seu método: – “Quiiiiiirrrr” e vai rasgando. Quando toma banho, fica
meio mole, a pele toda torcida e “quiiiiiirrrr”. Vai cortando. Não tem
como. Aqui não deixa entrar isqueiro, meu filho, imagina cortador de
unhas.
Nos primeiros dias, a hora do sono virava um pesadelo.Incomodado com
as cadeiras metálicas desconfortáveis da saleta da área restrita, Ifrain
migrou para uma área do “conector” onde antes estavam os três sofás com
15 confortáveis poltronas de couro marrom, o lugar favorito de descanso
dos passageiros que aguardavam por seus embarques. Era ali que
pernoitava – ao som das gravações bilíngues, lidas pela locutora do
aeroporto, com instruções de embarque e desembarque para os passageiros.
“Imagina às 3 da manhã aquela mulher gritando na sua orelha”, diz
Ifrain, resmungando.
Sem conseguir dormir, Ifrain se rebelou. Com a ajuda de cinco
indianos que buscavam refúgio no Brasil e estavam na área restrita,
arrastou os sofás para dentro da saleta. Foi saudado pelos indianos, que
conviveram com ele por quase um mês. “Me abraçaram. Falaram: ‘Nossa!
Obrigado!’”, diz Ifrain, e providencia outra onomatopeia: – “Nhinhonhu
oing-doing-glump”, para explicar como se deu o agradecimento em híndi,
língua que ele não fala, mas diz entender perfeitamente, como todas as
outras.
Em sua estadia, Ifrain diz que conheceu “meio aeroporto” – de
funcionários das casas de câmbio a faxineiros das salas VIPs das
companhias aéreas – e virou uma espécie de síndico do condomínio dos
deportados e refugiados de Guarulhos. Reinaldo Oliveira, de 27 anos,
ex-vendedor de chips internacionais de telefone, que transitava pela
área do “conector”, diz ter testemunhado, várias vezes, arranca-rabos
ferozes entre Ifrain e os policiais.
“Ele tomava as dores pelos outros
deportados, entrava no meio da briga e não queria nem saber”, afirma
Oliveira. Ifrain passou também a auxiliar Oliveira a vender os chips de
telefone, que custam US$ 15, a passageiros. “Uma vez, vi ele ‘vendendo’
nossos chips para um grupo de sete estrangeiros”, diz Reinaldo.
Especializou-se também em guiar passageiros estrangeiros em busca da
área de fumantes. “Vou levando e levando, digo: ‘me’, ‘smoking’, ‘me tem
fósforo’. Aí, peço um cigarrinho. Fumo todo dia. Escondido no banheiro.
Porque, se pegam, estou ferrado.”
Seu esforço em ajudar quem passava por ali rendeu a Ifrain também
presentes em dinheiro. Para comprovar suas relações multilaterais, ele
saca do bolso um bolo de notas. São da China, Colômbia, Arábia Saudita,
Índia, Malásia, México, Chile, Hong Kong, Bolívia, Argentina, Coreia,
Honduras, Paraguai, Guiana, Egito, Venezuela, Nigéria, Japão, Uruguai,
Guiné e Irã. “Todos que passam aqui me dão uma moeda de recordação. Não
vale nada, são centavos, entende?”, diz Ifrain. Ele conta que sua
companhia mais duradoura no terminal foram passageiros oriundos de
países como a Índia ou o Paquistão, que chegam ao Brasil com o intuito
de pedir refúgio.
Na manhã de 1° de outubro, Ifrain deu boas-novas ao etíope Henok
Belete, de 28 anos. Morador da África do Sul, Belete pretendia passar um
mês no México em férias. Saiu de Johannesburgo, gastou dois dias em São
Paulo, onde conheceu a Praça da Sé e a Estação da Luz, cenas
devidamente registradas por um smartphone de última geração, e seguiu
para a Cidade do México.
Ao chegar lá, foi sumariamente deportado para a
África do Sul, e teve de fazer escala novamente no Brasil. “Nunca mais
venho a estes países latinos. Você sai de seu país em férias, chega por
aqui e enfrenta todos esses problemas. Não consigo acreditar, estou
decepcionado”, diz Belete. “E, pior, mesmo o pessoal da polícia não sabe
falar inglês. Nem aqui nem no México. Você não consegue falar com
ninguém.” Quando alguém lhe contou que Ifrain morava ali havia cinco
meses, o queixo de Belete caiu. “Impossível!”, disse, descrente, mirando
Ifrain de cima a baixo. “Se fosse comigo, eu me matava… ele é muito
forte, inacreditável… está até sorrindo, como pode?!”
De volta ao mundo
Quando ficou claro que Ifrain não poderia ser deportado para Cuba,
ele recebeu visitas de defensores públicos e advogados. Tentaram
convencê-lo a assinar um documento com pedido de refúgio no Brasil.
Nessa situação, poderia ter deixado o aeroporto e seguido para um dos
albergues públicos, à disposição de estrangeiros refugiados no país. Sob
o argumento de que tinha RNE, CPF e carteira de trabalho, Ifrain
refutou a solução. “Eu falei: ‘Ttsk, tsk, tsk. Não! Abrigo com mais de
50 pessoas, com drogados, moradores de rua? Já morei nesses lugares que
você aluga um quarto com três, quatro caras. Com a quantidade de coisas
que tenho? Computador, celular, roupa, vou ser roubado. Fiquei quase
oito anos aqui e nunca morei em abrigo. Vou morar agora? Sai fora! Sou
invocado’.”
Por cinco meses, Ifrain resistiu e disse que só sairia do aeroporto
se lhe pagassem uma indenização pelos “danos sofridos” ou à força.
Não foi preciso nem força nem dinheiro. Às 18 horas do dia 2 de
outubro, policiais federais o convocaram para uma conversa. Ao chegar à
superintendência da PF em Guarulhos, deparou com a defensora pública
Alessandra Casali. Ela tentava, havia semanas, uma resposta oficial do
Ministério da Justiça sobre o caso de Ifrain. Pedira ao Comitê Nacional
para os Refugiados a emissão de uma Certidão de Trânsito, um documento
provisório para que Ifrain pudesse deixar o conector, sob alegação de
que seu caso não se enquadrava em nenhuma situação prevista na lei.
Depois de um primeiro pedido, extraviado em Brasília, a certidão fora
finalmente expedida. “Aqui está a permissão para você ficar no Brasil
por 30 dias, que precisará ser renovada”, disse Alessandra ao entregar a
certidão a Ifrain. “Agora você vai sair do aeroporto e tocar sua vida.”
Segundo Alessandra, a permanência de Ifrain no “conector” de
Guarulhos foi a mais longa de que a Defensoria Pública tem conhecimento.
Inspirados em seu caso, os defensores públicos enviaram ofícios à
Polícia Federal, à administração do aeroporto e às companhias aéreas, em
que cobraram uma regulamentação do uso do “conector”. “É um absurdo
você ficar naquele estado, privado de suas liberdades. É um limbo, mas
parece uma prisão”, diz Alessandra. “Também queremos saber por que os
deportados são colocados ali, descobrir por que esse procedimento
existe, porque na lei não é previsto.”
Ao saber que teria de sair do aeroporto, Ifrain ficou em choque.
Brigou, afirmou que não tinha amigos e nem para onde ir. Alessandra lhe
entregou referências de dois abrigos, no momento lotados. Um advogado da
Avianca lhe deu R$ 1.000 em dinheiro. Sua mala confiscada então
reapareceu, quebrada. “Quebrada e toda aberta. Me falaram para eu
reclamar com a Avianca. Meu carregador do notebook ficou na área
restrita, e eles disseram que não encontraram nada. Agora estou sem ter
para onde ir e sem computador. Não tenho ninguém. Não tenho ninguém”,
disse Ifrain.
Aflito com o mundo real, ele diz que, nas primeiras horas fora do
“conector”, só se acalmou depois de ter respirado o ar puro, pela
primeira vez em cinco meses. Ainda aos tropeços, girou nos calcanhares
e, com a bagagem desarrumada a tiracolo, recostou-se uma vez mais,
“viuuuuplaft”, nas cadeiras metálicas de estofado azul do Aeroporto
Internacional de Guarulhos. Nelas, dormiu a sua primeira noite fora do
limbo.
Vinicius Gorczeski
(Época – 05/10/2013)
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