sábado, 5 de outubro de 2013

NAS FRONTEIRAS INSANAS DA BUROCRACIA MIGARTÓRIA

Veja um exemplo de absurdo gerado pela burocracia desumana à qual imigrantes, refugiados e apátridas podem ser submetidos. A história surreal de Ifrain Ramirez que viveu cinco meses no aeroporto de Guarulhos

Ifrain Pas Ramirez Morales, de 41 anos, 1,75 metro de altura e 80 quilos, é um cubano marrento, que anda a passos largos e preguiçosos e gosta de comunicar-se com as mãos e por meio de caretas, performáticas. Costuma responder a uma pergunta com outras. Quando contrariado, tem o hábito bizarro de torcer o nariz, os lábios e as mãos, um gesto a que acrescenta uma dezena de onomatopeias. “Prruuff”, “ziiuu”, “huuum”, “tsk, tsk, tsk”, “hããã” e “viiiuplaaft” são suas favoritas, entremeadas com um portunhol pronunciado velozmente.

Em Cuba, Ifrain foi criado por uma mãe adotiva, desde bebê. Em busca de melhores condições, seus pais biológicos migraram para os Estados Unidos. Começou a trabalhar aos 16 anos. Quando terminou a escola, decidiu que não queria ir para uma universidade. “Estudar me emburrece. Não leva a nada. Não tinha chances de me manter e precisava trabalhar para ajudar em casa. Se não fizesse isso, todo mundo morria de fome”, afirma. Seu último emprego em Cuba foi como chefe de jardinagem num hotel em Havana, onde cresceu. Ele não achava ruim viver num regime comunista, mas era difícil sobressair no trabalho e ganhar mais dinheiro.

Em 2006, com um visto de turista no passaporte, Ifrain veio para o Brasil. Deixara em Cuba o único filho, Kelly, nascido de um relacionamento que acabara em divórcio. Depois de desembarcar em São Paulo, passeou por zoológicos e pelas praias do litoral paulista. Deslumbrou-se com o Parque da Pedra Grande, na Serra de Itapetininga, cuja formação geológica é tida como um ponto propagador de energia positiva. Ifrain decidiu ficar. Arrumou bicos em que fazia de tudo: trocava telhados, lâmpadas, fazia serviços de pedreiro, pintura, fiação elétrica. Foi também “cuidador” de cachorro, copeiro e jardineiro. Chegou a ganhar R$ 120 por dia e, com essa renda, diz ter acumulado o suficiente para comprar móveis e eletrodomésticos e bancar o aluguel de um quarto.

Neste ano, quase oito depois de chegar ao Brasil, Ifrain soube que um primo embarcaria de Cuba para Quito, no Equador. Cansado, segundo ele, da “exploração dos estrangeiros” – “sempre disse a meus patrões que sou cubano, mas não idiota” –, resolveu largar um emprego de caseiro em São Paulo, com registro em carteira e salário de R$ 850 mensais, para encontrar o parente. Comprou uma passagem para o Equador e marcou a viagem para 24 de abril. No aeroporto de Guarulhos, munido do passaporte cubano, de um número de CPF e da carteira de identidade para estrangeiros, conhecida como RNE e expedida pela Polícia Federal, embarcou num voo da Avianca. Ao chegar a Quito pela noite, deparou com uma situação imprevista. Sem visto de entrada, foi barrado e mandado de volta ao Brasil na manhã seguinte.

No retorno, uma nova surpresa aguardava Ifrain na imigração brasileira. Seu RNE era provisório – fora expedido graças à anistia para estrangeiros em situação ilegal, concedida pelo governo Lula em 2009 – e estava vencido desde 21 de agosto de 2011. Por esse motivo, ele estava impedido de reingressar no país. Ifrain lembra o diálogo que teve com o agente da PF:

– Vem comigo para esse lugar, porque você será deportado.
– Deportado? Para onde?
– Para Cuba.
– Não!!! Que Cuba o quê! Você está louco? – disse, incrédulo. – Sou de Cuba, mas moro aqui há quase oito anos.
– Cala a sua boca! Você será deportado, sim.


A vida no conector


Começava aí a jornada mais inusitada da história aventureira de Ifrain. Ele descobriu, mais tarde, que também não poderia ser deportado para Cuba. Recebeu a visita da consulesa de Cuba em São Paulo, Ivette Martinez Leyva. Ela comunicou-lhe que não poderia voltar ao país natal porque deixara de ser considerado cubano a partir do momento em que requisitara documentos brasileiros. “Ele não podia voltar para Cuba, porque fora expatriado. Depois de dois anos fora da ilha, seus cidadãos não podem regressar”, diz a defensora pública federal Alessandra Casali, designada para tratar do caso de Ifrain. Como tampouco podia entrar no Brasil, Ifrain passou a ser considerado um “apátrida” (…)

Em 25 de abril de 2013, Ifrain (…) passou a viver no aeroporto de Guarulhos. Como a bagagem despachada no avião fora confiscada, restavam a Ifrain uma mochila com uma toalha, uma escova de dente e uma muda de roupas, o celular, cartões de crédito (depois cancelados) e um pouco de dinheiro. Seu destino foi uma saleta do aeroporto de Cumbica, com uma placa onde se lê em letras garrafais: “Área Restrita/Restricted Area”. Ela é reservada aos passageiros em via de deportação e se abre para um corredor, de uns 100 passos de comprimento e outros 30 de largura, que liga os terminais 1 e 2 do aeroporto de Guarulhos. 

Dentro delas, há uma fila de cadeiras metálicas de estofado azul e três sofás de couro marrom. Sobre eles, edredons doados por companhias aéreas. Nas paredes, rabiscos em árabe escritos a caneta, restos de um pernilongo esmagado na calada da noite e outras siglas ininteligíveis aos olhos brasileiros. Ao fundo, um banheiro feminino e um masculino. 

Em ambos, há um vaso sanitário e um chuveiro sem energia elétrica. A saleta e o corredor, de onde se podem avistar, por janelões, as aterrissagens e as decolagens dos aviões, formam o “conector”, uma área que não é considerada nem território brasileiro nem estrangeiro, por onde os deportados podem circular. Um passo além do “conector”, de qualquer de um dos lados, é proibido aos deportados – que ficam, permanentemente, sob a vigilância de três fiscais da companhia que administra o aeroporto de Guarulhos.

O “conector” foi o lar de Ifrain por 160 dias. Foi onde o encontrei no fim da manhã de 1° de outubro, depois de perder um embarque para Assunção, no Paraguai. Ifrain vestia uma de suas três camisas – uma polo gasta azul-marinho, com listras verticais em tons de azul, verde e branco –, uma de suas duas bermudas – de jeans, puída e manchada –, um relógio de pulso antigo preso à mão esquerda e uma sandália de borracha aos pedaços. Seu cabelo, ondulado e comprido, estava engordurado. Implorava por um bom xampu. No rosto, de sobrancelhas espessas e unidas, nariz adunco e barbicha longa e grisalha, o sorriso de dentes amarelados denunciava a falta de pasta de dente. No corpo, Ifrain ostentava presentes de deportados aleatórios, como um rosário, pulseiras africanas em tons variados e um colar de bolinhas.

Perguntei a ele como fizera para suportar viver por cinco meses, as 24 horas do dia, naquele ambiente. O escape, diz Ifrain, foi a internet. Ele ficava plugado praticamente o tempo todo. Ao ser barrado na volta ao Brasil, conservara um iPad míni, comprado à vista. Quando caiu no limbo, diz que fez um negócio com um deportado e o trocou por um notebook e mais US$ 200. 

Conseguiu o acesso à internet, graças ao sinal da conexão sem fio de um hotel usado para pernoite por passageiros de voos internacionais, no outro extremo do “conector”. A senha lhe foi passada por um nigeriano – e Ifrain se viciou em OdinQuest, um game do Facebook. A rede social também virou o meio de comunicação com o resto do mundo. Pelo Facebook, Ifrain passou a falar com conhecidos e parentes em todas as partes e a dar notícias de sua estadia em Guarulhos – uma das fotos publicadas por ele mostra a saleta dos deportados, com a irônica legenda: “Minha Casa, Minha Vida”, referência ao programa de moradia popular do governo Dilma Rousseff.

A comida era fornecida pela Avianca, companhia aérea que deixara Ifrain embarcar para Quito sem documentos regulares. Por isso, a empresa sofrera uma punição. Toda dia, chegava para Ifrain uma marmita do restaurante dos funcionários do aeroporto, conhecido em Guarulhos pelo apelido de Mosca Frita. “Dá para imaginar, não?”, diz Ifrain, sarcástico, ao comentar a qualidade da comida. Quando estivemos juntos, dentro da marmita havia arroz, alguns pedaços de brócolis e uma bisteca suína. Ele ganhou ainda uma lata de refrigerante. A funcionária que prestava serviços para a Avianca, ao entregar a comida, lhe avisou: “Fui eu que fiz, Ifrain. Se reclamar…” Apesar da ameaça velada, ele deu apenas duas garfadas na carne e largou a marmita.

Por falta de chuveiro elétrico, os banhos exigiam uma estratégia para se adequar à temperatura ambiente. Se o dia estivesse frio, Ifrain não tomava banho. Se o tempo esquentasse, aproveitava também para lavar a roupa. Sem pasta, passou a escovar os dentes só com as cerdas. Como produtos de higiene são artigos de luxo no “conector”, Ifrain só os usava quando um passageiro compartilhava um pouco. Os cabelos cresceram. As unhas também. Para cortá-las, Ifrain usava os dentes. E as do pé?

– Aqui é assim – diz ele, e emenda uma onomatopeia para explicar o seu método: – “Quiiiiiirrrr” e vai rasgando. Quando toma banho, fica meio mole, a pele toda torcida e “quiiiiiirrrr”. Vai cortando. Não tem como. Aqui não deixa entrar isqueiro, meu filho, imagina cortador de unhas.

Nos primeiros dias, a hora do sono virava um pesadelo.Incomodado com as cadeiras metálicas desconfortáveis da saleta da área restrita, Ifrain migrou para uma área do “conector” onde antes estavam os três sofás com 15 confortáveis poltronas de couro marrom, o lugar favorito de descanso dos passageiros que aguardavam por seus embarques. Era ali que pernoitava – ao som das gravações bilíngues, lidas pela locutora do aeroporto, com instruções de embarque e desembarque para os passageiros. “Imagina às 3 da manhã aquela mulher gritando na sua orelha”, diz Ifrain, resmungando.

Sem conseguir dormir, Ifrain se rebelou. Com a ajuda de cinco indianos que buscavam refúgio no Brasil e estavam na área restrita, arrastou os sofás para dentro da saleta. Foi saudado pelos indianos, que conviveram com ele por quase um mês. “Me abraçaram. Falaram: ‘Nossa! Obrigado!’”, diz Ifrain, e providencia outra onomatopeia: – “Nhinhonhu oing-doing-glump”, para explicar como se deu o agradecimento em híndi, língua que ele não fala, mas diz entender perfeitamente, como todas as outras.

Em sua estadia, Ifrain diz que conheceu “meio aeroporto” – de funcionários das casas de câmbio a faxineiros das salas VIPs das companhias aéreas – e virou uma espécie de síndico do condomínio dos deportados e refugiados de Guarulhos. Reinaldo Oliveira, de 27 anos, ex-vendedor de chips internacionais de telefone, que transitava pela área do “conector”, diz ter testemunhado, várias vezes, arranca-rabos ferozes entre Ifrain e os policiais.

 “Ele tomava as dores pelos outros deportados, entrava no meio da briga e não queria nem saber”, afirma Oliveira. Ifrain passou também a auxiliar Oliveira a vender os chips de telefone, que custam US$ 15, a passageiros. “Uma vez, vi ele ‘vendendo’ nossos chips para um grupo de sete estrangeiros”, diz Reinaldo. Especializou-se também em guiar passageiros estrangeiros em busca da área de fumantes. “Vou levando e levando, digo: ‘me’, ‘smoking’, ‘me tem fósforo’. Aí, peço um cigarrinho. Fumo todo dia. Escondido no banheiro. Porque, se pegam, estou ferrado.”

Seu esforço em ajudar quem passava por ali rendeu a Ifrain também presentes em dinheiro. Para comprovar suas relações multilaterais, ele saca do bolso um bolo de notas. São da China, Colômbia, Arábia Saudita, Índia, Malásia, México, Chile, Hong Kong, Bolívia, Argentina, Coreia, Honduras, Paraguai, Guiana, Egito, Venezuela, Nigéria, Japão, Uruguai, Guiné e Irã. “Todos que passam aqui me dão uma moeda de recordação. Não vale nada, são centavos, entende?”, diz Ifrain. Ele conta que sua companhia mais duradoura no terminal foram passageiros oriundos de países como a Índia ou o Paquistão, que chegam ao Brasil com o intuito de pedir refúgio.

Na manhã de 1° de outubro, Ifrain deu boas-novas ao etíope Henok Belete, de 28 anos. Morador da África do Sul, Belete pretendia passar um mês no México em férias. Saiu de Johannesburgo, gastou dois dias em São Paulo, onde conheceu a Praça da Sé e a Estação da Luz, cenas devidamente registradas por um smartphone de última geração, e seguiu para a Cidade do México. 

Ao chegar lá, foi sumariamente deportado para a África do Sul, e teve de fazer escala novamente no Brasil. “Nunca mais venho a estes países latinos. Você sai de seu país em férias, chega por aqui e enfrenta todos esses problemas. Não consigo acreditar, estou decepcionado”, diz Belete. “E, pior, mesmo o pessoal da polícia não sabe falar inglês. Nem aqui nem no México. Você não consegue falar com ninguém.” Quando alguém lhe contou que Ifrain morava ali havia cinco meses, o queixo de Belete caiu. “Impossível!”, disse, descrente, mirando Ifrain de cima a baixo. “Se fosse comigo, eu me matava… ele é muito forte, inacreditável… está até sorrindo, como pode?!”


De volta ao mundo


Quando ficou claro que Ifrain não poderia ser deportado para Cuba, ele recebeu visitas de defensores públicos e advogados. Tentaram convencê-lo a assinar um documento com pedido de refúgio no Brasil. Nessa situação, poderia ter deixado o aeroporto e seguido para um dos albergues públicos, à disposição de estrangeiros refugiados no país. Sob o argumento de que tinha RNE, CPF e carteira de trabalho, Ifrain refutou a solução. “Eu falei: ‘Ttsk, tsk, tsk. Não! Abrigo com mais de 50 pessoas, com drogados, moradores de rua? Já morei nesses lugares que você aluga um quarto com três, quatro caras. Com a quantidade de coisas que tenho? Computador, celular, roupa, vou ser roubado. Fiquei quase oito anos aqui e nunca morei em abrigo. Vou morar agora? Sai fora! Sou invocado’.”
Por cinco meses, Ifrain resistiu e disse que só sairia do aeroporto se lhe pagassem uma indenização pelos “danos sofridos” ou à força.

Não foi preciso nem força nem dinheiro. Às 18 horas do dia 2 de outubro, policiais federais o convocaram para uma conversa. Ao chegar à superintendência da PF em Guarulhos, deparou com a defensora pública Alessandra Casali. Ela tentava, havia semanas, uma resposta oficial do Ministério da Justiça sobre o caso de Ifrain. Pedira ao Comitê Nacional para os Refugiados a emissão de uma Certidão de Trânsito, um documento provisório para que Ifrain pudesse deixar o conector, sob alegação de que seu caso não se enquadrava em nenhuma situação prevista na lei.

Depois de um primeiro pedido, extraviado em Brasília, a certidão fora finalmente expedida. “Aqui está a permissão para você ficar no Brasil por 30 dias, que precisará ser renovada”, disse Alessandra ao entregar a certidão a Ifrain. “Agora você vai sair do aeroporto e tocar sua vida.”

Segundo Alessandra, a permanência de Ifrain no “conector” de Guarulhos foi a mais longa de que a Defensoria Pública tem conhecimento. Inspirados em seu caso, os defensores públicos enviaram ofícios à Polícia Federal, à administração do aeroporto e às companhias aéreas, em que cobraram uma regulamentação do uso do “conector”. “É um absurdo você ficar naquele estado, privado de suas liberdades. É um limbo, mas parece uma prisão”, diz Alessandra. “Também queremos saber por que os deportados são colocados ali, descobrir por que esse procedimento existe, porque na lei não é previsto.”

Ao saber que teria de sair do aeroporto, Ifrain ficou em choque. Brigou, afirmou que não tinha amigos e nem para onde ir. Alessandra lhe entregou referências de dois abrigos, no momento lotados. Um advogado da Avianca lhe deu R$ 1.000 em dinheiro. Sua mala confiscada então reapareceu, quebrada. “Quebrada e toda aberta. Me falaram para eu reclamar com a Avianca. Meu carregador do notebook ficou na área restrita, e eles disseram que não encontraram nada. Agora estou sem ter para onde ir e sem computador. Não tenho ninguém. Não tenho ninguém”, disse Ifrain.

Aflito com o mundo real, ele diz que, nas primeiras horas fora do “conector”, só se acalmou depois de ter respirado o ar puro, pela primeira vez em cinco meses. Ainda aos tropeços, girou nos calcanhares e, com a bagagem desarrumada a tiracolo, recostou-se uma vez mais, “viuuuuplaft”, nas cadeiras metálicas de estofado azul do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Nelas, dormiu a sua primeira noite fora do limbo.

Vinicius Gorczeski
(Época – 05/10/2013)

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