terça-feira, 5 de julho de 2016

O que vem após a Lava Jato?


Arena Jurídica


Por Antonio Cesar Bochenek e Márcio Antonio Rocha*






Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, edição de 4 de julho de 2016


O sucesso da Operação Lava Jato decorre, entre outros fatores, de alterações recentes na legislação brasileira, em especial da lei que regulamentou a colaboração premiada (Lei n.º 12.850, de 2013). 

Para que se dê continuidade ao enfrentamento da corrupção e da lavagem de dinheiro é fundamental a aprovação de novos marcos legais. Seguindo orientações da Convenção das Nações Unidas e recomendações do Grupo dos 20 (G-20), o Brasil acelerou o importante debate sobre a implementação de umas das maiores ferramentas contra a corrupção e fraude pública.

Existentes desde 1978 nos Estados Unidos – e atualmente implementados em vários países da Europa e da África –, os programas de whistleblower dão proteção a funcionários públicos e empregados da iniciativa privada que, detendo posição de acesso às práticas internas das repartições e empresas, se deparam com atos atentatórios ao interesse público ou que ponham em risco a saúde e a segurança públicas, o direito de consumidores, o meio ambiente ou a real competitividade no mercado. Na primeira categoria se encaixam, por exemplo, os atos de corrupção, de fraude pública e de grosseira perda de recursos públicos.

Ao decidir voluntariamente trazer informações sobre tais malfeitos, o cidadão suplementa e reforça a capacidade do Estado de coibir práticas não aceitas pelo ordenamento jurídico. Dadas as limitações da autoridade investigadora e até mesmo das técnicas investigativas, não raras vezes fatos cometidos no âmbito de repartições públicas e empresas jamais chegariam a ser conhecidos pelas autoridades – e, portanto, não seriam comprovados em processos de apuração – sem o relato espontâneo do insider.

Em função disso, o esforço do cidadão no auxílio à manutenção do Estado de Direito tem sido qualificado internacionalmente como exercício dos direitos decorrentes da cidadania, do exercício da liberdade de consciência e expressão, ou, ainda, como integrante do rol dos direitos humanos.

Embora, evidentemente, não seja aceitável que os cidadãos se calem sobre fatos ilícitos que presenciam no âmbito da sociedade, a tarefa de reportar uma infração nunca é fácil.

Muito ao contrário, a experiência mostra que o cidadão é exposto a retaliações diretas no âmbito da relação de emprego, com sérios riscos para sua carreira, como demissão, negativas de promoção ou aumento salarial, afastamento das atividades regularmente exercidas e, em casos mais graves, riscos à integridade física e emocional. Em outras palavras, o cidadão nunca sai sem arranhões. Com frequência se verifica, ao menos, o dano moral da segregação corporativa ou social do indivíduo, provocando evidente desconforto emocional e funcional.

Por serem essas consequências contra o cidadão usuais, esperadas e não desejadas pelo sistema jurídico, o foco dos programas de whistleblower é essencialmente a construção de sistema normativo que estabeleça um procedimento claro para o relato e enseje a proteção ou a remediação das situações de dano.

Entre as ferramentas de proteção, a mais importante, segundo a unanimidade dos padrões internacionais, é a preservação da identidade do cidadão que, sem malícia e de boa-fé, fez o relato.

Da mesma forma, a possibilidade de pronta determinação da cessação dos atos de retaliação e a posterior indenização de danos são parte dos standards internacionais sobre o tema. A premiação, como medida de incentivo, é adotada por alguns sistemas jurídicos, especialmente nos Estados Unidos, onde esse recurso é fortemente utilizado e visto com naturalidade pelo Congresso norte-americano.

Por sua vez, o Congresso brasileiro tem demonstrado preocupações sobre o tema, em busca até mesmo de atendimento aos compromissos internacionais assumidos. Existem vários projetos de lei que buscam estabelecer a figura do whistleblower, todos ainda sem uma sistematização unitária.

Interessante perceber, desde logo, que, corretamente e com sensibilidade às características da sociedade brasileira, a imensa maioria desses projetos antevê as dificuldades que o cidadão enfrenta quando busca cooperar com o Estado e por isso prevê também a premiação para esse cidadão.

Importante notar que as pessoas que acorrem em socorro do Estado, de modo espontâneo, e por não terem cometido os atos ilícitos que relatam, não estão procurando benefícios como redução de penas criminais ou civis. É justamente aí que reside a diferença entre o cidadão honesto que relata e o criminoso que delata coautores, assinando acordos de delação ou acordos de leniência.

Cientes da importância do fomento da participação dos cidadãos de bem no enforcement estatal brasileiro, autoridades de 13 instituições brasileiras integrantes da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) deram início, no último mês de março, na sede da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), ao estudo das melhores práticas internacionais relacionadas ao tema. O propósito é sistematizar as diversas propostas em tramitação no Congresso Nacional para que, ao final, seja ofertado um anteprojeto único, o qual, atento às necessidades específicas de alguns órgãos, adote, da melhor maneira possível, formas de proteção e incentivo a essa tão importante participação dos cidadãos nos destinos da coisa pública.

Espera-se, por meio dessa nova legislação, um reforço substancial na probidade das relações públicas e privadas, modificando sem precedentes o Estado brasileiro e a sua sociedade.

*ANTONIO CESAR BOCHENEK É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL (AJUFE); MÁRCIO ANTONIO ROCHA É DESEMBARGADOR FEDERAL, COORDENADOR DA AÇÃO 4 DA ENCCLA 2016


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