Arena Jurídica
Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, edição de 4 de julho de 2016
O sucesso da Operação Lava Jato decorre, entre outros fatores,
de alterações recentes na legislação brasileira, em especial da lei que
regulamentou a colaboração premiada (Lei n.º 12.850, de 2013).
Para que
se dê continuidade ao enfrentamento da corrupção e da lavagem de
dinheiro é fundamental a aprovação de novos marcos legais. Seguindo
orientações da Convenção das Nações Unidas e recomendações do Grupo dos
20 (G-20), o Brasil acelerou o importante debate sobre a implementação
de umas das maiores ferramentas contra a corrupção e fraude pública.
Existentes desde 1978 nos Estados Unidos – e atualmente implementados
em vários países da Europa e da África –, os programas de whistleblower
dão proteção a funcionários públicos e empregados da iniciativa privada
que, detendo posição de acesso às práticas internas das repartições e
empresas, se deparam com atos atentatórios ao interesse público ou que
ponham em risco a saúde e a segurança públicas, o direito de
consumidores, o meio ambiente ou a real competitividade no mercado. Na
primeira categoria se encaixam, por exemplo, os atos de corrupção, de
fraude pública e de grosseira perda de recursos públicos.
Ao decidir voluntariamente trazer informações sobre tais malfeitos, o
cidadão suplementa e reforça a capacidade do Estado de coibir práticas
não aceitas pelo ordenamento jurídico. Dadas as limitações da autoridade
investigadora e até mesmo das técnicas investigativas, não raras vezes
fatos cometidos no âmbito de repartições públicas e empresas jamais
chegariam a ser conhecidos pelas autoridades – e, portanto, não seriam
comprovados em processos de apuração – sem o relato espontâneo do
insider.
Em função disso, o esforço do cidadão no auxílio à manutenção do
Estado de Direito tem sido qualificado internacionalmente como exercício
dos direitos decorrentes da cidadania, do exercício da liberdade de
consciência e expressão, ou, ainda, como integrante do rol dos direitos
humanos.
Embora, evidentemente, não seja aceitável que os cidadãos se calem
sobre fatos ilícitos que presenciam no âmbito da sociedade, a tarefa de
reportar uma infração nunca é fácil.
Muito ao contrário, a experiência mostra que o cidadão é exposto a
retaliações diretas no âmbito da relação de emprego, com sérios riscos
para sua carreira, como demissão, negativas de promoção ou aumento
salarial, afastamento das atividades regularmente exercidas e, em casos
mais graves, riscos à integridade física e emocional. Em outras
palavras, o cidadão nunca sai sem arranhões. Com frequência se verifica,
ao menos, o dano moral da segregação corporativa ou social do
indivíduo, provocando evidente desconforto emocional e funcional.
Por serem essas consequências contra o cidadão usuais, esperadas e
não desejadas pelo sistema jurídico, o foco dos programas de
whistleblower é essencialmente a construção de sistema normativo que
estabeleça um procedimento claro para o relato e enseje a proteção ou a
remediação das situações de dano.
Entre as ferramentas de proteção, a mais importante, segundo a
unanimidade dos padrões internacionais, é a preservação da identidade do
cidadão que, sem malícia e de boa-fé, fez o relato.
Da mesma forma, a possibilidade de pronta determinação da cessação
dos atos de retaliação e a posterior indenização de danos são parte dos
standards internacionais sobre o tema. A premiação, como medida de
incentivo, é adotada por alguns sistemas jurídicos, especialmente nos
Estados Unidos, onde esse recurso é fortemente utilizado e visto com
naturalidade pelo Congresso norte-americano.
Por sua vez, o Congresso brasileiro tem demonstrado preocupações
sobre o tema, em busca até mesmo de atendimento aos compromissos
internacionais assumidos. Existem vários projetos de lei que buscam
estabelecer a figura do whistleblower, todos ainda sem uma
sistematização unitária.
Interessante perceber, desde logo, que, corretamente e com
sensibilidade às características da sociedade brasileira, a imensa
maioria desses projetos antevê as dificuldades que o cidadão enfrenta
quando busca cooperar com o Estado e por isso prevê também a premiação
para esse cidadão.
Importante notar que as pessoas que acorrem em socorro do Estado, de
modo espontâneo, e por não terem cometido os atos ilícitos que relatam,
não estão procurando benefícios como redução de penas criminais ou
civis. É justamente aí que reside a diferença entre o cidadão honesto
que relata e o criminoso que delata coautores, assinando acordos de
delação ou acordos de leniência.
Cientes da importância do fomento da participação dos cidadãos de bem
no enforcement estatal brasileiro, autoridades de 13 instituições
brasileiras integrantes da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à
Lavagem de Dinheiro (Enccla) deram início, no último mês de março, na
sede da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), ao estudo das
melhores práticas internacionais relacionadas ao tema. O propósito é
sistematizar as diversas propostas em tramitação no Congresso Nacional
para que, ao final, seja ofertado um anteprojeto único, o qual, atento
às necessidades específicas de alguns órgãos, adote, da melhor maneira
possível, formas de proteção e incentivo a essa tão importante
participação dos cidadãos nos destinos da coisa pública.
Espera-se, por meio dessa nova legislação, um reforço substancial na
probidade das relações públicas e privadas, modificando sem precedentes o
Estado brasileiro e a sua sociedade.
*ANTONIO CESAR BOCHENEK É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES
FEDERAIS DO BRASIL (AJUFE); MÁRCIO ANTONIO ROCHA É DESEMBARGADOR
FEDERAL, COORDENADOR DA AÇÃO 4 DA ENCCLA 2016
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