Os que defendem o mérito como determinante essencial para o avanço
profissional e social acreditam ser esse progresso consequência do
esforço e dedicação de cada pessoa. Nessa visão, a competição entre
indivíduos estimula a produtividade e a eficiência, tanto no setor
privado quanto no setor público.
Ao longo da História, nem sempre o mérito tem sido o mais importante
critério para a escolha de dirigentes públicos, a qual com frequência é
definida pela renda, pela classe social, por amizades pessoais ou
simplesmente pelo uso da força. Foi só a partir da Revolução Francesa,
que instalou o regime republicano, que o mérito passou a ser adotado na
governança como algo a ser valorizado ou mesmo a ter prioridade.
Talvez o exemplo mais marcante dessa mudança tenha sido a escolha dos
generais do Exército francês feita por Napoleão Bonaparte, com base
exclusivamente no mérito, em contraste com o que se fazia nos tempos da
monarquia francesa, quando os comandos militares eram distribuídos aos
amigos do rei ou até vendidos a membros da nobreza.
Poucos discordam de que o mérito é essencial para o exercício de
funções altamente especializadas, como pilotar aviões ou fazer
cirurgias. São muitos, contudo, os que argumentam que o sucesso
profissional e social não depende apenas do mérito, mas das
oportunidades que cada indivíduo teve ao longo da vida, sobretudo na
infância. Segundo essa visão, numa sociedade com grandes diferenças de
renda os mais pobres seriam discriminados e numa sociedade igualitária
todos teriam as mesmas oportunidades.
Por exemplo, filhos de famílias de baixa renda não frequentam escolas
tão boas quanto os filhos das famílias mais abastadas e não têm,
portanto, condições de conseguir acesso às melhores universidades, mesmo
sendo tão ou até mais talentosos do que seus colegas ricos.
É essa percepção que leva muitos a proporem cotas de diferentes tipos
(raciais ou para egressos de escolas públicas, por exemplo) para
ingresso nas universidades, a fim de, assim, corrigir as iniquidades
resultantes do regime de escravidão no passado ou as injustiças do
capitalismo em qualquer período histórico.
Argumento similar foi usado pelos comunistas na Rússia, que ao
conquistarem o poder, em 1917, expandiram enormemente o número de
universidades e eliminaram os exames de seleção (semelhantes aos nossos
vestibulares) para acomodar os filhos dos trabalhadores, que antes da
revolução não tinham acesso a elas.
Essa política educacional não deu certo e teve de ser abandonada em
1923 pelo próprio Lenin. Os filhos dos trabalhadores tiveram
dificuldades de acompanhar os cursos, o número de desistências aumentou
muito e o nível de ensino e pesquisa do tempo dos czares caiu
significativamente. Lenin argumentou que universidades de bom nível e
estudantes bem treinados eram essenciais para a construção do socialismo
e reintroduziu os exames de seleção, mantendo apenas uma pequena cota
para os filhões dos trabalhadores.
Um problema com a visão clássica de meritocracia é definir exatamente
o que se entende por mérito. Nas áreas científicas e tecnológicas, esse
realmente não chega a ser um problema, assim como em muitas áreas
especializadas, como as das Forças Armadas. Nesses casos é relativamente
simples e consensual definir o que seja mérito e avaliá-lo, dada a
objetividade das funções a serem exercidas.
Na governança, contudo, esse pode ser um problema significativo,
porque representantes eleitos pelo povo, que defendem interesses de
diferentes grupos sociais, podem não ter os conhecimentos técnicos
necessários para exercer a função e acabam se valendo, para
assessorá-los, de consultores com a competência técnica necessária, mas
sem a legitimidade do voto
Tão importante quanto definir exatamente em que áreas a meritocracia é
essencial, e como medi-la, é a existência de uma cultura do mérito,
como nos Estados Unidos, herança da colonização e do protestantismo de
Lutero e Calvino.
Aceita-se, de modo geral, que o que caracteriza as sociedades
democráticas do mundo ocidental moderno são o império da lei e a cultura
do mérito, a qual se originou da religião. Ambos continuam dominantes,
apesar da redução marcante das religiões tradicionais no mundo.
Isso está ocorrendo também na China, onde foram intensos os esforços
de Mao Tsé-tung para reduzir a influência da religião (o “ópio do povo”,
para os comunistas mais ortodoxos). Apesar disso, os chineses estão
substituindo a ausência da influência da ética religiosa nessas questões
pelo renascimento das ideias de Confúcio e Han Fei, que na Antiguidade
inspiraram a criação de uma burocracia meritocrática no país.
Estas considerações são importantes para entender a visão da
população brasileira sobre meritocracia, que aparece com destaque numa
pesquisa qualitativa recente sobre “percepções e valores políticos nas
periferias de São Paulo”, realizada pela Fundação Perseu Abramo. Um dos
resultados da pesquisa é a percepção aparentemente hegemônica entre os
pesquisados, principalmente entre os mais jovens, de que “para ser
alguém na vida são necessários trabalhos e esforço”. As pessoas
reconhecem que na situação atual são importantes políticas públicas para
democratizar o acesso às oportunidades, mas “rejeitam aquelas políticas
que aparentam duvidar das capacidades individuais, como as cotas”, e
sustentam que “com esforço tudo é superado”.
A pesquisa mostra uma atitude bastante saudável de respeito à
meritocracia, que parece estar prevalecendo em diversas faixas sociais
da população brasileira, em contraste com visões mais antiquadas
baseadas em conceitos como o de luta de classes. Somente em países que
atravessam crises econômicas e institucionais desesperadas é que esse
tipo de percepção não se aplica (José Goldemberg é Professor Emérito e
ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP);
O Estado de S.Paulo,
15/5/17)
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