terça-feira, 16 de maio de 2017

Meritocracia e o poder público

 

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Por José Goldemberg


Os que defendem o mérito como determinante essencial para o avanço profissional e social acreditam ser esse progresso consequência do esforço e dedicação de cada pessoa. Nessa visão, a competição entre indivíduos estimula a produtividade e a eficiência, tanto no setor privado quanto no setor público.

Ao longo da História, nem sempre o mérito tem sido o mais importante critério para a escolha de dirigentes públicos, a qual com frequência é definida pela renda, pela classe social, por amizades pessoais ou simplesmente pelo uso da força. Foi só a partir da Revolução Francesa, que instalou o regime republicano, que o mérito passou a ser adotado na governança como algo a ser valorizado ou mesmo a ter prioridade.

Talvez o exemplo mais marcante dessa mudança tenha sido a escolha dos generais do Exército francês feita por Napoleão Bonaparte, com base exclusivamente no mérito, em contraste com o que se fazia nos tempos da monarquia francesa, quando os comandos militares eram distribuídos aos amigos do rei ou até vendidos a membros da nobreza.

Poucos discordam de que o mérito é essencial para o exercício de funções altamente especializadas, como pilotar aviões ou fazer cirurgias. São muitos, contudo, os que argumentam que o sucesso profissional e social não depende apenas do mérito, mas das oportunidades que cada indivíduo teve ao longo da vida, sobretudo na infância. Segundo essa visão, numa sociedade com grandes diferenças de renda os mais pobres seriam discriminados e numa sociedade igualitária todos teriam as mesmas oportunidades.

Por exemplo, filhos de famílias de baixa renda não frequentam escolas tão boas quanto os filhos das famílias mais abastadas e não têm, portanto, condições de conseguir acesso às melhores universidades, mesmo sendo tão ou até mais talentosos do que seus colegas ricos.

É essa percepção que leva muitos a proporem cotas de diferentes tipos (raciais ou para egressos de escolas públicas, por exemplo) para ingresso nas universidades, a fim de, assim, corrigir as iniquidades resultantes do regime de escravidão no passado ou as injustiças do capitalismo em qualquer período histórico.

Argumento similar foi usado pelos comunistas na Rússia, que ao conquistarem o poder, em 1917, expandiram enormemente o número de universidades e eliminaram os exames de seleção (semelhantes aos nossos vestibulares) para acomodar os filhos dos trabalhadores, que antes da revolução não tinham acesso a elas.

Essa política educacional não deu certo e teve de ser abandonada em 1923 pelo próprio Lenin. Os filhos dos trabalhadores tiveram dificuldades de acompanhar os cursos, o número de desistências aumentou muito e o nível de ensino e pesquisa do tempo dos czares caiu significativamente. Lenin argumentou que universidades de bom nível e estudantes bem treinados eram essenciais para a construção do socialismo e reintroduziu os exames de seleção, mantendo apenas uma pequena cota para os filhões dos trabalhadores.

Um problema com a visão clássica de meritocracia é definir exatamente o que se entende por mérito. Nas áreas científicas e tecnológicas, esse realmente não chega a ser um problema, assim como em muitas áreas especializadas, como as das Forças Armadas. Nesses casos é relativamente simples e consensual definir o que seja mérito e avaliá-lo, dada a objetividade das funções a serem exercidas.

Na governança, contudo, esse pode ser um problema significativo, porque representantes eleitos pelo povo, que defendem interesses de diferentes grupos sociais, podem não ter os conhecimentos técnicos necessários para exercer a função e acabam se valendo, para assessorá-los, de consultores com a competência técnica necessária, mas sem a legitimidade do voto

Tão importante quanto definir exatamente em que áreas a meritocracia é essencial, e como medi-la, é a existência de uma cultura do mérito, como nos Estados Unidos, herança da colonização e do protestantismo de Lutero e Calvino.

Aceita-se, de modo geral, que o que caracteriza as sociedades democráticas do mundo ocidental moderno são o império da lei e a cultura do mérito, a qual se originou da religião. Ambos continuam dominantes, apesar da redução marcante das religiões tradicionais no mundo.

Isso está ocorrendo também na China, onde foram intensos os esforços de Mao Tsé-tung para reduzir a influência da religião (o “ópio do povo”, para os comunistas mais ortodoxos). Apesar disso, os chineses estão substituindo a ausência da influência da ética religiosa nessas questões pelo renascimento das ideias de Confúcio e Han Fei, que na Antiguidade inspiraram a criação de uma burocracia meritocrática no país.

Estas considerações são importantes para entender a visão da população brasileira sobre meritocracia, que aparece com destaque numa pesquisa qualitativa recente sobre “percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, realizada pela Fundação Perseu Abramo. Um dos resultados da pesquisa é a percepção aparentemente hegemônica entre os pesquisados, principalmente entre os mais jovens, de que “para ser alguém na vida são necessários trabalhos e esforço”. As pessoas reconhecem que na situação atual são importantes políticas públicas para democratizar o acesso às oportunidades, mas “rejeitam aquelas políticas que aparentam duvidar das capacidades individuais, como as cotas”, e sustentam que “com esforço tudo é superado”.

A pesquisa mostra uma atitude bastante saudável de respeito à meritocracia, que parece estar prevalecendo em diversas faixas sociais da população brasileira, em contraste com visões mais antiquadas baseadas em conceitos como o de luta de classes. Somente em países que atravessam crises econômicas e institucionais desesperadas é que esse tipo de percepção não se aplica (José Goldemberg é Professor Emérito e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP); 

O Estado de S.Paulo, 15/5/17)

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