"O objetivo da lei não foi reequilibrar uma partida, mas fortalecer um lado enfraquecendo outro", diz Marcelo Paixão, economista e sociólogo
São Paulo – A reforma trabalhista sancionada ontem pelo presidente Michel Temer traz mudanças profundas nas regras da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Para empresários e grande parte dos economistas, é um marco positivo que expande ao invés de tirar direitos e vai diminuir a insegurança jurídica.
Mas esta não é a visão de Marcelo Paixão, economista e sociólogo
licenciado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) atualmente
na Universidade de Austin, no Texas.
Ele diz que a reforma vai tornar mais vulneráveis as categorias com
menor poder de pressão e aprofundar a “uberização” do trabalho. Veja a
entrevista:
EXAME.com – O principal aspecto da reforma é possibilidade de
que acordos coletivos entre sindicatos e empresas prevaleçam sobre o
determinado por lei em alguns pontos. Essa flexibilidade não é positiva?
Marcelo Paixão – Quando falamos em reformas, existem
vários caminhos; foi adotado um. Essa proposta supõe que as categorias
profissionais tenham todas o mesmo poder de barganha, e não tem.
Determinados sindicatos ligados às maiores empresas vão ter maior
capacidade de fazer valer seus interesses, mas há uma heterogeneidade
muito grande mesmo no mercado de trabalho formal, e isso potencialmente
aumenta o leque de assimetrias em um mercado já reconhecidamente
assimétrico.
Uma legislação trabalhista tem que proteger o lado mais fraco, que é o
do trabalho na relação com o capital. É por isso que a OIT, por
exemplo, foi criada: para criar um padrão internacional e evitar que os
países criem competição espúria pela redução do valor da força de
trabalho.
A reforma
tem um problema político: não passou pelo crivo da população e foi
adotada por um governo que não foi eleito com este programa. Ela só leva
em consideração uma determinada realidade e vai vulnerabilizar as
categorias com menor poder de pressão, por isso que não acho
inteligente. Saiba mais:
Veja com a ContaAzul o que a reforma prevê sobre mudanças trabalhistas
Houve também o fim do imposto sindical, que sustentava essas
entidades. Isso enfraquece esse lado da barganha ou vai gerar sindicatos
mais comprometidos?
O fim do imposto sindical foi uma reivindicação histórica do novo
sindicalismo. O imposto sindical sempre foi uma forma de tributação dos
trabalhadores que dava aos sindicatos uma dimensão quase para-estatal,
algo dúbio.
Sempre fui crítico a isso, pois contribuiu para manter sindicatos
ilegítimos e fantasmas. Foi uma verdadeira fábrica de pelegos, usando a
linguagem sindicalista.
Mas mesmo apoiando sua extinção, há uma realidade que vai ser
modificada. É como tirar o produto da pessoa viciada, precisa de um
período de transição.
Se é derrubado de uma hora para a outra e as instituições existentes
não tem tempo para se preparar, vai reduzir o poder de barganha dos
sindicatos diante dos interesses do patronato. No longo prazo, acredito
que os sindicatos vão realmente ter uma preocupação maior em garantir
sua legitimidade diante das suas categorias.
Isso vai significar superação da atual fragmentação que vem ocorrendo
desde o inicio dos anos 2000, mas sou cético em relação a capacidades
das categorias estruturarem sindicatos com algum grau de barganha.
Metalúrgicos, bancários, petroleiros, petroquímicos são categorias
com tradição de organização maior, enquanto outras como comerciários e
trabalhadores da construção civil vem demonstrando uma histórica
dificuldade. Comerciários, por exemplo, são muito diversos e
fragmentados, vai do pequeno comércio às grandes redes.
O objetivo da lei não foi reequilibrar uma partida, mas fortalecer um
lado enfraquecendo outro. Mesmo algo positivo fica questionável.
Outro aspecto é a regulação de alguns contratos como de
trabalho autônomo, intermitente e terceirizado. Isso não é positivo para
gerar formalização?
Metade da população brasileira vive sem nenhum tipo de garantia. Essa
ampliação da zona do contrato temporário que cria a figura do
trabalhador autônomo com vínculos empregatícios, junto com a lei da
terceirização, sinaliza a uberização, o modelo uber do trabalho no
mundo.
Trabalha uma quantidade de horas e ganha pela hora. Se tiver doença
ou outra coisa, problema seu. A formalização não é vara de condão, pode
ocorrer com um padrão de proteção muito baixo.
O Brasil já é conhecido por ter poucos direitos do trabalho, vide
número de acidentes do trabalho e resgates do trabalho escravo, por
exemplo. Não é só no Xingu, é na construção nas cidades. É um país que
não superou a memória de escravidão.
A figura do trabalhador autônomo com vínculos empregatícios tem o
efeito trágico de tirar o direito e levar da justiça do trabalho para o
direito contratual e civil. Passa a estabelecer subordinação onde os
trabalhadores não podem barganhar nem no coletivo, pois são apenas
prestadores de serviço.
Uma grande empresa é uma grande empresa, você conta nos dedos a
quantidade em cada setor. Mas os trabalhadores são uma legião. A empresa
barganha com cada um e impõe seus termos e direitos e uma relação de
prestação de serviços não tem 13º salário, férias, etc.
Até pouco tempo havia um consenso na sociedade brasileira de que
nosso grande problema era a desigualdade social. Nossos exemplos
históricos mostram que o desenvolvimento econômico produzindo
concentração de renda é equivocado e estamos insistindo de novo nele.
É uma tragédia, aprovada sem debate, por um Congresso em dias
tenebrosos e um governo com acusações graves de corrupção. Não tinha
legitimidade para ser aprovado.
Também houve um aperto nas condições de acesso à Justiça do
trabalho, mas com aumento do teto de isenção. A ideia é desestimular o
uso de quem não tem uma razão clara e dar mais segurança jurídica. Isso
não é positivo?
O problema do acesso à Justiça transcende o trabalho. Só 4% dos
homicídios são elucidados, por exemplo. Houve um aumento grande dos
casos de emprego doméstico, porque ocorreu um grande esforço de
formalização desse trabalho e as empregadas estão mais conscientes e
procuram mais o que me parece óbvio: hora extra, carteira assinada, etc.
Se a Justiça está sobrecarregada, não é retirando direito que vamos
resolver. Diria que é preciso ter mais juiz, reequipar o Judiciário e
fazer com que os donos das grandes empresas respeitem as leis.
Muitas vezes o trabalhador vai de má fé, tem muitos que vão pedir o
que não merecem. Mas com esse nível de informalidade e assimetrias, a
maior parte é porque os trabalhadores se sentiram lesados. Reduzir
direitos em nome de maior racionalidade é um contrassenso. O presidente
diz que entramos no século XXI, mas eu diria que voltamos ao XIX.
Mas e sobre o nível de emprego, qual o efeito a ser esperado?
Se a legislação trabalhista fosse um empecilho para a criação de
empregos, a economia brasileira não teria vivido os vários ciclos dos
últimos 70 anos. Não acho que exista uma correlação entre reduzir
direitos trabalhistas e aumento de emprego.
Poderíamos notar que o Brasil tem que competir com a Ásia, que produz
mais barato. Longe de mim achar que o mundo é o mesmo de 40 anos atrás.
Temos temos novas tecnologias, mas há várias formas de enfrentar. Pode
crescer reduzindo direitos e produzindo muito barato, mas é incoerente
com um mundo cada vez mais depende do conhecimento.
Com todos os equívocos das politicas adotadas desde 2010 e que
sentimos até hoje, o fato é que quando estimulamos o mercado interno e
distribuímos renda, há mais dinheiro circulando e mais horizonte de
retorno pros empresários que investem na produção. O que garante é a
existência de demanda efetiva, e medidas de concentração de renda não
são coerentes com isso.
http://exame.abril.com.br/economia/reforma-trabalhista-e-uberizacao-e-tira-direitos-diz-professor/
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