A meta da Cultura era ampliar a participação do e-commerce de 22% para 70% até 2020. No Brasil, cerca de 50% da receita da Fnac vem do e-commerce.
São Paulo – No dia 23 de junho, Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, recebeu EXAME Hoje
em seu escritório, na Avenida Paulista, para uma entrevista franca
sobre a enxurrada de problemas da empresa fundada há 70 anos. No
prejuízo desde 2012, a livraria dava como certo mais um ano no vermelho
para 2017. Herz falou que havia passado a hora de ganhar terreno no
digital, e de deixar suas lojas tradicionais mais inteligentes.
Também deixou a possibilidade de um negócio em aberto: “se a Amazon
vier aqui dizendo que vai me comprar, eu vou avaliar”. Outra
possibilidade, que surgiu em forma de boato no início deste ano, era uma
fusão com a concorrente Saraiva. “Não dá para dizer ‘eu nunca beberei
dessa água’”, disse Herz. Eis que, nesta terça-feira 19, a Cultura anunciou a compra da operação da francesa Fnac no Brasil. De 17 lojas, vai passar a 29.
Mas o mais importante é a participação de mercado. A Cultura conta
com 11% e, com a nova aquisição, passa para 16%. Ainda continua como a
segunda livraria do país, mas diminui a diferença em relação à Saraiva,
que conta com cerca de 25%. A Saraiva, inclusive, havia saído na frente na negociação para aquisição da Fnac,
quando a empresa anunciou que queria deixar a operação no Brasil.
Vencer esse páreo foi crucial para a sobrevivência da Cultura no
mercado. A operação ainda vai ter custo zero. A Fnac vai aportar 150
milhões de reais para deixar o país, conforme adiantou o jornalista Lauro Jardim, d’O Globo, com informações confirmadas por EXAME Hoje.
A verba vai ajudar a cobrir o fluxo de caixa negativo das duas
empresas, além de outras pendências, e a dívida da Cultura com os
bancos, que está em cerca de 60 milhões de reais. Deixando essas dívidas
para trás, a empresa ganha mais potencial para investir, e os retornos
para a Fnac virão nos termos do contrato de licenciamento. Com o
negócio, a Cultura adquiriu os direitos de utilização da marca Fnac no
Brasil, que ainda será vista por um tempo no país.
De acordo com a consultora Ana Paula Tozzi, que assessora a Cultura,
as lojas devem passar por uma remodelação, para se adequar ao modelo da
tradicional livraria, que aposta no glamour e na experiência para atrair
os clientes.
Além disso, a Cultura vai conseguir ampliar os centros de
distribuição, ter ganhos no comércio de eletro-eletrônicos, em que ainda
não atua de forma consistente, e que representam 47% das vendas globais
da Fnac no mundo, ou 3,5 bilhões de euros ao ano. E, de certa forma, a
companhia ainda encurta o caminho para o plano de cinco anos da Cultura:
ser uma empresa mais digital e com lojas cada vez mais desejadas. A
meta da Cultura era ampliar a participação do e-commerce de 22% para 70%
até 2020, mas Herz afirmou a EXAME Hoje que queria “fazer mais rápido”.
No Brasil, cerca de 50% da receita da Fnac vem do e-commerce.
Segundo nota divulgada pela Fnac Darty, a Cultura “apresentou um
projeto industrial ambicioso para a Fnac Brasil”. O negócio, segundo o
comunicado, vai “permitir à Livraria Cultura diversificar suas
atividades com os produtos tecnológicos da Fnac”. A Cultura, por sua
vez, afirmou em nota que “a união entre os dois grupos criará valores e
sinergias, compartilhando culturas similares… e permitirá que a Livraria
Cultura diversifique seus negócios adicionando novas linhas dos
produtos e serviços”.
O negócio era disputado, e alguns outros pontos também pesaram a
favor da Cultura. “É uma empresa com boa reputação no mercado, bem
estruturada, com boa capacidade de operação e com tradição de ser boa
pagadora. Acabou sendo mais eficiente na negociação”, afirma a
consultora Ana Paula Tozzi.
No Brasil há cerca de duas décadas, a Fnac opera com 12 lojas e o
negócio representa 2% das vendas anuais do grupo, estimadas em 7,4
bilhões de euros. Com a queda das vendas nos últimos anos, a operação
tem caixa suficiente para se manter com seus atual capital de giro, mas
precisa de recursos de fora para conseguir expandir o negócio. A venda
das operações no Brasil é parte do plano global da Fnac Darty de focar
os investimentos diretos na Europa, e buscar investidores para expandir
as operações em outros mercados.
Outro ponto que afastou a empresa de permanecer no Brasil foi a
dificuldade para consolidar uma liderança. Desde a saída da presidente
Claudia Elisa Soares, em fevereiro deste ano, após apenas um ano no
cargo, o processo para tentar sair do país se acelerou. Executivos
afirmaram na época de que ela não conseguiria reestruturar a empresa com
a velocidade necessária para fazer a operação ser rentável no Brasil.
A Cultura enfrenta queda nas receitas há dois anos — em 2016, o
faturamento ficou em 380 milhões de reais, ante 460 milhões em 2014. Em
dezembro, a Cultura comprou a participação de 25% que o fundo Neo
detinha no negócio. O Neo havia adquirido a participação em 2009,
injetando capital para acelerar o processo de expansão física da rede,
que passou de um faturamento de 220 milhões para 440 milhões entre 2008 e
2013, antes de estagnar junto com a economia brasileira. A meta de
faturar 500 milhões de reais em 2014 nunca foi alcançada.
Desde que herdou de seu pai o comando da empresa da família, em 2009,
Sergio Herz tinha planos de dar uma guinada na estratégia de negócios
da Cultura. A ideia era parar de abrir livrarias, e incrementar ainda
mais as unidades existentes para servirem como polos culturais (assim
como já acontece há muito tempo na principal loja da rede, no Conjunto
Nacional, em São Paulo). O motivo é evidente: livrarias que vendem
basicamente livros estão em frangalhos no mundo todo.
Alguns testes dessa loja do futuro estão em andamento. Desde o ano
passado a loja do Shopping Market Place, em São Paulo, começou a usar um
sistema que precifica os produtos de acordo com o horário de compra e
com o perfil do cliente. Um livro específico poderá ter preços
diferentes para clientes diferentes. É a mesma lógica que a Amazon levou
para suas livrarias físicas. EXAME Hoje visitou a primeira loja da rede
em Nova York em maio, e constatou que apenas os livros mais populares
no site da companhia têm vez em suas prateleiras.
Para não ficar para trás, a Cultura fez o negócio mais ousado em seus 70 anos.
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