Divulgação
Braungart: “É preciso reinventar tudo”
Melina Costa, de Revista EXAME
São Paulo - O químico alemão Michael Braungart lidera uma das vertentes
mais radicais entre os defensores da chamada economia circular. O
conceito prevê que os materiais usados num aparelho celular ou num
automóvel sejam reutilizados após o consumo em novos processos
produtivos. Braungart vai além: ele sugere que esse tipo de preocupação
seja soberana na concepção dos produtos e na escolha dos materiais
usados em sua confecção.
Coautor do livro best-seller Cradle to Cradle (“Do berço ao berço”, numa
tradução livre), ele criou, ao lado do arquiteto americano William
McDonough, a associação Cradle to Cradle Products Innovation Institute,
nos Estados Unidos, e já conferiu um selo a mais de 1 000 produtos,
além de prestar consultoria para marcas como Puma e Philips. De seu escritório em Hamburgo, Braungart concedeu a seguinte entrevista a EXAME.
Exame - O senhor prega que o foco em ampliar a reciclagem não é a maneira mais adequada de proteger o meio ambiente. Por quê?
Braungart - Nossos atuais produtos são incrivelmente
primitivos no que diz respeito a questões ambientais. Você entra em
contato com dezenas de químicos ao tocar um cupom de supermercado ou um
tíquete de estacionamento. As cinzas de um jornal queimado são tão
tóxicas que você não pode usá-las para agricultura.
A qualidade do ar em prédios é de três a oito vezes pior do que a
qualidade do ar em espaços abertos de cidades, porque os prédios não
foram feitos para nós. Precisamos reinventar os produtos. Eles precisam
ser bons para a biosfera. Devido a ganhos de eficiência, os pneus duram
mais hoje do que há 30 anos. Mas agora inalamos suas partículas, que
ficaram muito menores e se soltam quando a borracha atinge a estrada.
É preciso reinventar tudo, porque esses produtos não foram feitos para
nós. Um xampu com silicone, por exemplo, reveste não só os fios de
cabelo mas também os recifes de corais. Globalmente, colocamos 10
milhões de toneladas de plástico nos oceanos todos os anos. Se
diminuirmos 10% disso, resolve? Não. Precisamos rever a produção de
plástico desde o início.
Tradicionalmente, pensamos em proteger o meio ambiente quando diminuímos
o consumo de água, a conta de energia, a produção de resíduos. Mas esse
tipo de proteção apenas reduz os danos. Representa fazer a coisa errada
de maneira controlada. É como dizer: proteja seus filhos, bata neles
apenas cinco vezes em vez de dez.
Exame - Qual é o alcance desse conceito até agora?
Braungart - A fabricante Puma tem 128 produtos com
nosso selo cradle to cradle no mercado. Calculamos ter, ao todo, 2 900
produtos elaborados segundo esses princípios no mundo. Muitos produtos
foram redesenhados sem que isso tenha sido comunicado aos consumidores.
Se os fabricantes falarem “essa roupa íntima foi feita para entrar em
contato com a pele”, as pessoas vão perguntar “e o que acontecia antes?”
Também há muita inovação ocorrendo sem necessariamente o aval de nosso
selo. Podemos ver que essas coisas estão se tornando mais dominantes em
diferentes áreas.
Exame - Não é uma ideia radical demais?
Braungart - Afinal, cadeias inteiras de produção
precisariam ser transformadas. Qual é a alternativa? Se não mudarmos,
seremos pessoas demais neste planeta. A alternativa é, em vez de reduzir
o consumo de energia nos prédios, construir prédios que sejam como
árvores, que limpem o ar. Em São Paulo, as pessoas perdem anos de vida
devido à má qualidade do ar.
Exame - É mais caro produzir pelo modelo da economia circular?
Braungart - Em tese, o produto é aproximadamente 20%
mais barato porque não é preciso gerenciar o resíduo no final. A
inteligência na produção se dá no começo. Quando se escolhem os
materiais no início, não é necessário tratar o lixo. A questão da saúde
ocupacional também fica mais fácil. Mas leva tempo para mudar o sistema
produtivo. Por isso não queremos mudar as coisas imediatamente.
Exame - A maioria das grandes empresas demonstram resistência a mudar?
Braungart - Desenvolvemos um catalisador em parceria
com a empresa química Akzo Nobel para substituir um catalisador de
antimônio usado para fabricar PET. Antimônio é um metal tão tóxico
quanto o arsênio, altamente cancerígeno, e por isso eles queriam
substituí-lo.
Mas, quando se tem a autorização do FDA (Food and Drug Administration,
órgão regulador americano) para utilizar o antimônio, por que mudar?
Encontramos na Coca-Cola dezenas de vezes mais antimônio do que é
legalmente permitido para a água. Mas, se o FDA aprovou, não importa. O
pessoal da Coca-Cola me disse: “Não vendemos água”.
Exame - O Brasil discute uma legislação para
responsabilizar os fabricantes pelos resíduos de seus produtos
pós-consumo. É uma boa política?
Braungart - A questão é: o Brasil ainda utiliza PVC nas
embalagens? Isso torna a reciclagem cara para os resíduos de plástico. O
país regula a toxicidade dos pigmentos no plástico? O pigmento “verde
7”, por exemplo, é um dos mais perigosos porque causa a emissão de
partículas tóxicas durante a reciclagem. Mas lidar com resíduos é a
atitude errada. Quando um país começa a cuidar dos resíduos, é porque
começou na extremidade errada da cadeia. Precisamos criar modelos novos.
Exame - De maneira prática, ainda temos um problema sério com o lixo acumulado — como lidar com isso?
Braungart - Sim, precisamos de fases transitórias. Eu
criaria “supermercados de resíduos”. Na Europa, dois terços dos
aparelhos de TV dos quais as pessoas querem se livrar estão intactos.
Precisamos apoiar mercados de produtos usados, estabelecer sistemas de
coleta de produtos pós-consumo e desenvolver sistemas de desmontagem de
produtos.
Estamos, provavelmente, bem no começo. Veja o caso dos aparelhos
celulares: retornamos para a indústria apenas nove dos 41 elementos que
estão presentes lá. No fim do ano, líderes políticos estarão reunidos em
Paris durante a conferência da ONU sobre a mudança do clima, a COP 21.
Exame - O objetivo é alcançar um acordo para limitar o
aumento da temperatura global em 2 graus Celsius. Qual é sua opinião a
respeito dessa meta?
Braungart - Estive na conferência da ONU em Copenhague,
em 2009. Fazia frio, 10 graus negativos, e estávamos falando do efeito
estufa. O design da conferência como um todo foi um desastre. Não sei
qual vai ser a organização da conferência de Paris, mas acho que o
objetivo de 2 graus Celsius é um pouco estranho. A natureza não funciona
dessa maneira. O mais importante seria aprender a colocar os materiais
de volta em seus ciclos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário