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À venda: pátios cheios de carros são evidência de uma das piores fases da indústria no Brasil
São Paulo — Talvez nenhum período da história recente tenha deixado
tantas más lembranças para os brasileiros quanto os anos 80. Foi nessa
época que o país conviveu mais intensamente com as insanidades da
hiperinflação, do alto desemprego, da destruição generalizada de riqueza e com um desarranjo total da economia.
As mazelas que o Brasil enfrentou então foram sintetizadas na merecida
alcunha de década perdida.
A expressão passou a servir de alerta
permanente para os riscos que o descontrole dos preços e da dívida
pública acarreta ao crescimento — ou à falta dele. Mas tudo aquilo que,
até pouco tempo, parecia sepultado no passado está ressurgindo da tumba.
No dia 3 de março, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
divulgou que em 2015 a economia sofreu uma retração de 3,8%, a maior
desde 1990. Não foi surpresa para ninguém o tombo tão forte.
Afinal, o
Brasil vem desacelerando há sete trimestres consecutivos e as evidências
estão por toda parte. O consumo caiu 4%.
A produção recuou em todos os 25 segmentos da indústria de
transformação. Os investimentos encolheram pelo segundo ano consecutivo,
acumulando uma contração de quase 18%. A taxa de desemprego vem
crescendo. E a bolsa de valores oscila entre o pessimismo e surtos de
euforia gerados por qualquer fiapo de boa notícia. Esse é o retrato
nefasto do momento.
Mas, ao olhar para a frente, vemos que o que está por vir pode assumir
proporções trágicas. De acordo com as projeções do banco americano
Goldman Sachs, a economia brasileira segue encolhendo no primeiro
trimestre de 2016, e a redução de nosso PIB per capita poderá chegar a
10% em dois anos.
No período de 1981 a 1992, a famosa década perdida que começou com uma
recessão e terminou em outra, a renda encolheu 7,6%. “O Brasil vai
conseguir ter um resultado pior em dois anos do que o registrado durante
toda a década perdida”, diz Alberto Ramos, diretor de pesquisas para a
América Latina do Goldman Sachs.
De qualquer ângulo que se observe a economia brasileira, não há motivo
para acreditar que o que vemos hoje seja uma deterioração pontual. A
maioria dos analistas entrou em 2016 apostando que algum consenso
político seria alcançado ainda no começo do ano e logo haveria uma
reanimação da economia.
A consultoria Tendências, por exemplo, estimava em dezembro que a
economia voltaria a crescer no terceiro trimestre deste ano. Mas, de lá
para cá, a crise política só tem se agravado. Isso fez com que em março a
Tendências postergasse a expectativa de algum sinal de retomada para o
primeiro trimestre de 2017, ou seja, seis meses mais tarde.
Já há quem acredite que não só 2016 esteja condenado mas o ano de 2017
também. Após os termos da suposta delação do senador Delcídio do Amaral
virem a público, o banco de investimento Credit Suisse revisou as
projeções para a economia brasileira: agora o cenário é de uma queda de
4,2% em 2016, seguida de nova retração de 1% em 2017.
Esse é o prognóstico considerado mais provável pela equipe do economista
Nilson Teixeira. Se a crise se agravar ainda mais e gerar uma paralisia
ainda maior na economia, este ano poderá terminar com uma redução no
PIB de — respire fundo — inacreditáveis 6,1%. Nesse panorama, um tombo
maior também seria garantido para 2017: -2,3%.
“O que o Brasil vive é uma grande recessão sem precedentes históricos”,
diz o economista Armando Castelar, do Instituto Brasileiro de Economia
da Fundação Getulio Vargas. “Uma recessão de magnitude e duração maior
do que qualquer coisa que o país já tenha vivido no último século.”
Caso se concretizem três contrações seguidas do PIB, será a primeira vez
desde 1901 que o Brasil registrará uma recessão que poderá perdurar por
três anos consecutivos. O país, obviamente, sairá diminuído. Nessa
situação, o PIB de 2017 voltaria ao patamar de 2004, anulando assim os
ganhos adicionais conquistados em mais de uma década de expansão
econômica.
A deterioração sem precedentes levanta a seguinte dúvida: mais que uma
recessão, o Brasil caminha para uma depressão? Há pouca convergência
sobre o que é de fato uma depressão econômica. Um estudo do Fundo
Monetário Internacional traz parâmetros para a discussão.
O trabalho avaliou 21 países da OCDE, grupo de nações mais ricas, entre
1960 e 2007, e mostrou que, em geral, as depressões provocam uma perda
acima de 10% do produto interno bruto. “A contração nesse caso é três
vezes maior do que a verificada numa recessão severa”, diz Marco Terrones, economista do FMI responsável pela avaliação.
A maior de todas — a Grande Depressão americana dos anos 30 — resultou
numa queda total de 29,4% na economia dos Estados Unidos. Pelo conceito
usado pelo FMI, o Brasil estaria próximo de cair numa depressão. Para
alguns economistas, porém, falta um componente essencial.
De acordo com Monica de Bolle, pesquisadora do centro de estudos
Peterson Institute, em Washington, uma depressão só se caracteriza
quando há ocorrência também de deflação. Ou seja, uma espiral de preços
em queda, fruto da falta de confiança no futuro. Hoje, o Brasil vive
justamente o contrário.
No ano passado, a inflação fechou em quase 11%. Era esperado que a
redução da atividade econômica agisse como um freio na escalada de
preços. Até agora não é isso o que se vê. Em janeiro, o índice de preços
ao consumidor avançou 1,27% — número que indica o mesmo ritmo de
aceleração de 2015. A resiliência da inflação traz de volta outro
bicho-papão do passado: a inflação descontrolada.
A disparada de preços não ocorre do dia para a noite. A inflação se
aloja gradualmente no tecido econômico. Primeiramente, é a indexação de
salários que determina que o piso dos índices de preço sempre avance
mais um pouco. Em segundo lugar, é a chamada inflação inercial que entra
em ação.
É quando lojistas, fabricantes, prestadores de serviços começam a
aumentar preventivamente os preços, pois acreditam que todo o resto da
economia está fazendo o mesmo. Aí, o problema já está instalado. Na
reedição de antigas encrencas do país, até o famigerado termo “calote”
voltou a circular. Em 2014, ninguém falava em risco de calote.
Mas o avanço da dívida pública bruta, que deverá subir 11 pontos
percentuais em apenas 24 meses e poderá chegar a 90% do PIB em 2018,
acende o sinal amarelo — ainda mais com o governo persistindo em gerar
déficit em suas contas, mesmo pagando juros altíssimos.
A Economist Intelligence Unit, braço de estudos e pesquisas da revista
britânica The Economist que desde 2013 também funciona como agência de
classificação de risco, calcula em 15% o risco de ocorrer um calote na
dívida brasileira. É uma situação que ainda parece confortável, mas o
fato é que a probabilidade era a metade um ano atrás.
As reservas de 370 bilhões de dólares seriam uma espécie de colchão de
segurança. E o fato de a maior parte da dívida estar nas mãos de
investidores locais, como bancos e seguradoras, é um alento. No passado,
uma crise aguda como a atual acabava com o país batendo na porta do
Fundo Monetário Internacional e se submetendo ao ajuste fiscal imposto
pela instituição.
Funcionou assim nos anos 60 e 80. Hoje não corremos esse risco. Mas a
queda livre na recessão sempre pode trazer surpresas. Ou, como bem
ilustrou recentemente o investidor Luis Stuhlberger, principal gestor de
recursos do país: em se tratando de Brasil, há sempre o risco de
aparecer um alçapão no fundo do poço — e de descobrirmos que o problema é
ainda maior.
É da natureza dos empresários apostar que o futuro será melhor — caso contrário, ninguém faria nada, e todo o dinheiro ficaria parado na renda fixa. Mas a economia brasileira tem desafiado a capacidade de gestão de crises em quase todas as áreas.
No setor automotivo, por exemplo, a consultoria GO Associados, de São
Paulo, projeta uma redução de 18% na venda de carros em 2016, após o
recuo de 25% observado em 2015. Os pátios lotados são uma prova
contundente.
“Já estamos num momento difícil. Se ficar pior do que isso, será uma
situação de calamidade”, diz o português Carlos Gomes, presidente para o
Brasil e para a América Latina do grupo francês PSA, dono das marcas de
automóveis Peugeot e Citroën. “E ninguém nunca está pronto para
calamidades.”
A empresa acumula prejuízos no Brasil desde 2013 e não vê
tão cedo um horizonte de lucro por aqui.
O varejo vive o pior revés em anos. O grupo holandês C&A anunciou no
fim de fevereiro o fechamento de 12 das 280 lojas que tem aqui. Segundo
a Confederação Nacional do Comércio, o número de lojas de rua fechadas
no país em 2015 chegou a 95 000. Por baixo, 400 000 pessoas perderam o
emprego apenas no encerramento desses negócios.
Elas fazem parte do contingente de 1,5 milhão de trabalhadores que foram
demitidos em 2015. Estima-se que mais de 2 milhões de postos de
trabalho sejam eliminados no Brasil neste ano. Os efeitos do desemprego
já começaram a ser sentidos, mas ficarão mais evidentes a partir de
agora.
“O que faz o cenário político realmente mudar é a sensação de mal-estar
da população, que ainda não sentiu toda a recessão”, diz Castelar, da
Fundação Getulio Vargas. Uma parte dos novos desempregados conta ainda
com as verbas rescisórias e o benefício temporário do seguro-desemprego.
Depois de consumir esses recursos, passam a encarar a rotina de quem
ficou sem trabalho.
Apesar do rápido aumento na taxa de desemprego em 2015, de 5,3% para
7,6%, há estimativas que indicam que os salários tiveram um modesto
aumento de 0,3% no ano passado. Neste ano, não tem jeito: os rendimentos
deverão encolher cerca de 3%. Fazendo tudo novamente piorar: menos
consumo, menos produção, menos crescimento...
Nesse enredo de filme de terror, não é apenas a riqueza do presente que é
destruída. Também estão sendo minadas as chances de uma recuperação no
futuro próximo. Pior que a queda do PIB, que evidentemente é péssima, é a
retração extrema do nível de investimento no Brasil. O indicador vem no
campo negativo desde o início de 2014.
No ano passado, o investimento caiu novamente — nada menos que 14%. O
banco Credit Suisse estima que em 2016 haja outro tombo da mesma
magnitude, e o desânimo deverá se estender até 2017. O cálculo é que, no
período de 2014 a 2017, a queda acumulada dos investimentos poderá
chegar a 31%.
“Isso é fruto da falta de esperança e confiança no Brasil”, diz o
economista José Roberto Mendonça de Barros, da consultoria MB
Associados. “Vale tanto para as empresas quanto para os consumidores.”
São casas que deixam de ser compradas, máquinas que não são
encomendadas, novas tecnologias que deixam de ser incorporadas ao setor
produtivo, infraestrutura que não é construída.
O investimento que não é feito hoje impacta diretamente o futuro.
Pesquisas mostram a forte correlação entre o investimento e a
produtividade do trabalhador — algo que persiste em baixa no Brasil.
De acordo com Abdul Erumban, economista do centro de pesquisa Conference
Board que analisou dados do Brasil no período de 1967 a 2015, para cada
ponto percentual de aumento do investimento, a produtividade do
trabalhador brasileiro avança 0,5 ponto.
“Apenas para repor a depreciação da infraestrutura e produzir
crescimento econômico, é necessário investir em torno de 15% do PIB ao
ano”, diz o economista Antonio Delfim Netto. “O Brasil não está
conseguindo nem isso e está criando as condições para uma estagnação do
crescimento. É uma destruição de valor.”
Não resta a menor dúvida de que o Brasil vive uma situação inédita com
desdobramentos ainda imprevisíveis. O embate político estancou a
economia. Não há consenso nem mesmo entre o governo e sua base aliada sobre os rumos para o Brasil.
“Para evitar um agravamento da inflação e renovar a confiança dos
investidores, alguns setores socioeconômicos terão de fazer
sacrifícios”, diz o economista americano Werner Baer, da Universidade de
Illinois. “E não está claro como isso será possível enquanto estivermos
na situação política atual.” Dito isso, o diagnóstico do que fazer para
tirar o país da crise não é um mistério.
O economista alemão Jens Arnold, responsável pelas análises do Brasil na
OCDE, considera que, do ponto de vista econômico, as saídas para o
imbróglio são fáceis. “Por isso, não imaginei que a crise fosse tomar a
dimensão que tomou”, afirma Arnold. “Não era possível pensar que haveria
tanta incapacidade de gerar um consenso político em torno das reformas
necessárias para o país.”
E quais seriam essas reformas? No curto prazo, a fixação de uma regra
para o crescimento das despesas públicas é uma delas. Dessa forma, a
conta não cresceria muito em momentos de bonança econômica e seria
possível economizar para períodos mais difíceis. Além disso, é preciso
elevar a idade mínima de aposentadoria dos brasileiros para algo mais
próximo da média de 64 anos dos países mais ricos.
Hoje, a idade média aqui é de 52 anos para mulheres e de 55 para homens,
algo insustentável. Outra medida seria rever as regras de reajuste do
salário mínimo: o valor do piso quase dobrou nos últimos anos, já
descontada a inflação. E, se essa crise vai tirar mais produtividade da economia brasileira, é preciso pensar em como retomá-la no médio prazo.
Para isso, o país precisa cortar os nós burocráticos. Ou seja, o
receituário é plenamente conhecido. A crise pode ser a motivação para
que finalmente as mudanças aconteçam. Tudo isso poderia ter sido feito
antes, claro, mas não foi.
Não está restando alternativa senão um ajuste forçado — a um custo
imenso para a sociedade brasileira. Como país, não soubemos evitar os
desmandos na economia e suas consequências. É torcer para que o fim da
agonia esteja próximo.
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