terça-feira, 15 de setembro de 2015

Modelo das concessões petrolíferas do país é inconstitucional




O petróleo e os recursos minerais são bens da União por determinação dos artigos 20, IX e 176, caput da Constituição de 1988. O debate se dá em torno da sua classificação como bens públicos de uso especial ou bens públicos dominicais. Para os defensores do petróleo e dos recursos minerais como bens dominicais, esta definição não impediria a possibilidade de serem afetados para usos específicos. Estes recursos seriam bens públicos exauríveis, afetados, porém alienáveis, pois teriam uma finalidade que implica em sua utilização, portanto, em sua alienação.

Estas concepções, no entanto, estão equivocadas. O petróleo e os recursos minerais são bens públicos de uso especial, bens indisponíveis cuja destinação pública está definida constitucionalmente: a exploração e aproveitamento de seus potenciais. A exploração do petróleo e dos recursos minerais está vinculada aos objetivos fundamentais dos artigos 3º, 170 e 219 da Constituição de 1988, ou seja, o desenvolvimento, a redução das desigualdades e a garantia da soberania econômica nacional. Trata-se de um patrimônio nacional irrenunciável.

Em decorrência disto, a natureza jurídica do contrato de concessão de exploração de petróleo, assim como o contrato de concessão de lavra mineral, é a de um contrato de concessão de uso de exploração de bens públicos indisponíveis, cujo regime jurídico é distinto em virtude da Constituição e da legislação ordinária, portanto, a de um contrato de direito público. Estas concessões são atos administrativos constitutivos pelos quais o poder concedente (a União) delega poderes aos concessionários para utilizar ou explorar um bem público.

Ainda em relação à natureza jurídica do petróleo como bem público, a questão da propriedade sobre o resultado da lavra do petróleo e gás natural foi debatida no Supremo Tribunal Federal no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3273-9/DF, impetrada pelo então Governador do Paraná, Roberto Requião, alegando a inconstitucionalidade de uma série de dispositivos da Lei 9.478, de 06 de agosto de 1997, especialmente o seu artigo 26, caput[1]. De acordo com este dispositivo, o contrato de concessão permitiria a propriedade privada dos recursos petrolíferos. O concessionário (seja uma empresa ou um consórcio) adquiriria o direito exclusivo de explorar naquela área determinada, por sua conta e risco, tornando-se proprietário do petróleo produzido.

Para os defensores da constitucionalidade do artigo 26, caput da Lei 9.478/1997, a Emenda Constitucional 9, de 1995, teria equiparado o regime jurídico aplicável ao petróleo e gás ao dos demais bens minerais previstos no artigo 176 da Constituição. O concessionário teria o direito de propriedade sobre o produto da lavra, ao se aplicar o disposto no artigo 176, caput da Constituição ao petróleo, regido pelo artigo 177, com a interpretação de que o artigo 176 seria a “regra geral” para a exploração de todos os recursos minerais de titularidade da União, inclusive o petróleo.

Os que entendem a inconstitucionalidade da Lei 9.478/1997 afirmam que as jazidas de petróleo são bens públicos indisponíveis da União. No entanto, o artigo 26 da Lei 9.478/1997 atribui a propriedade do petróleo, quando extraído, ao concessionário. A Lei 9.478/1997 teria migrado, assim, do monopólio estatal ao extremo oposto da titularidade dos concessionários. Este artigo seria inconstitucional, pois a propriedade do petróleo e gás natural, mesmo após extraídos, de acordo com o artigo 20, IX da Constituição, é da União. A questão da inconstitucionalidade do artigo 26 da Lei 9.478/1997 estaria ligada também à manutenção ou não do monopólio estatal do petróleo. Se o monopólio foi mantido pela Emenda Constitucional  9/1995, a União não poderia transferir a propriedade do produto da lavra para o concessionário.

A maioria do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto elaborado, após pedido de vista, pelo ministro Eros Grau, na sessão ocorrida em 16 de março de 2005, considerando improcedente a ação direta de inconstitucionalidade. Em seu voto, o ministro Eros Grau discordou da natureza jurídica do petróleo como bem público de uso especial, entendendo-o como um bem público dominical. Embora tenha afirmado, corretamente, que o monopólio diz respeito à atividade econômica, não à propriedade dos bens, o ministro Eros Grau defendeu a posição de que a transferência da propriedade do resultado da lavra das jazidas de petróleo e gás natural para terceiros seria constitucional, pois não afetaria o monopólio estatal da atividade, previsto no artigo 177. Deste modo, seria aplicável ao petróleo e ao gás natural o mesmo tratamento dado aos concessionários da exploração dos demais recursos minerais, conforme disposto no artigo 176, caput da Constituição. Além disto, a propriedade do concessionário sobre o produto da lavra seria relativa, pois sua comercialização continuaria a ser administrada pela União, por meio da Agência Nacional do Petróleo.

A decisão da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal foi, infelizmente, absolutamente equivocada. O artigo 26, caput da Lei 9.478/1997 é inconstitucional, pois viola o disposto nos artigos 20, IX e 177 da Constituição. O petróleo e o gás natural são bens inalienáveis da União, bens de uso especial, como os demais recursos minerais. A diferença entre o regime jurídico dos recursos minerais em geral (artigo 176) e o regime jurídico do petróleo, gás natural e minérios nucleares (artigo 177) é, justamente, o fato destes últimos terem sido monopolizados pela União. A autorização constitucionalmente manifestada no artigo 176, caput de que o produto da lavra mineral é propriedade do concessionário é uma exceção de alienabilidade ao regime jurídico dos bens minerais, por isso é expressa constitucionalmente. A regra é a inalienabilidade dos recursos minerais. Nos casos de concessão, é estipulada a exceção do artigo 176, caput. Se, de fato, como entendeu a maioria do Supremo Tribunal Federal, a Emenda nº 9/1995 e a Lei 9.478/1997 tornaram aplicável à exploração do petróleo e do gás natural as mesmas regras gerais previstas no artigo 176, especialmente a atribuição da propriedade do produto da lavra ao concessionário, não resta mais nenhuma distinção entre uma concessão de exploração de minérios e uma concessão de exploração de petróleo ou gás natural. Ora, a propriedade da União sobre o produto da lavra do petróleo e gás natural é mantida pela Constituição justamente pelo fato de esta atividade ser monopolizada, ao contrário da lavra dos minérios em geral. Com a atribuição da propriedade do produto da lavra do petróleo e gás natural ao concessionário, o controle da atividade petrolífera deixa, concretamente, de ser monopólio da União, o que viola os artigos 20, IX e 177 da Constituição de 1988.

De acordo com a análise de Juan Pablo Perez Alfonso, criticando o modelo venezuelano de concessões que existiu até a década de 1970, a diferença jurídica básica dos tipos de contrato se manifesta na diferença entre direitos reais e direitos contratuais. O titular da concessão tem direitos reais sobre o petróleo a ser explorado[2]. O contrato de concessão é o mais tradicional e é muito questionado, pois não permite a apropriação estatal de parte considerável da renda petrolífera gerada. 

Na Venezuela, por exemplo, desde 1946, a decisão dos governos democráticos foi a de não permitir mais nenhuma concessão ("princípio de no más concesiones"), tendo em vista a falta de investimentos e de desenvolvimento geradas pelo antigo sistema de concessões, finalmente abolido com a nacionalização da indústria petrolífera naquele país, em 1975.

Do mesmo modo, os países produtores de petróleo do Mar do Norte, notadamente a Noruega, decidiram não aceitar, ainda na década de 1960, o padrão tradicional de exploração por meio do sistema de concessões, impondo uma maior participação e direção da indústria petrolífera por parte de seus Estados. As alterações instituídas pela Noruega, um regime democrático consolidado, ampliaram o papel do Estado na exploração petrolífera e na apropriação das rendas geradas pelo setor. Ao enfrentar os interesses das multinacionais petroleiras e as prescrições de política econômica neoclássica, a Noruega priorizou sua própria política econômica nacional, não os interesses dos grupos econômicos privados. O chamado “North Sea model” concedia áreas menores do que o modelo de concessão tradicional. Embora as empresas privadas pudessem atuar diretamente na exploração e produção, foram implementadas uma série de taxações suplementares e imposições legais para reter boa parte da renda gerada pelo petróleo, como a chamada “participação governamental”, ampliou-se o controle estatal sobre os recursos produzidos, por meio do papel central da empresa estatal Statoil, ainda hoje sob controle do Estado norueguês, buscando acomodar os interesses privados sob o controle direto estatal. O modelo implementado tornou, assim, o Estado o principal operador da indústria petrolífera e o líder na acumulação de capital, reforçando a supremacia do Poder Público em relação ao capital privado na economia norueguesa.

O modelo dos contratos de concessão, criticado e abandonado em praticamente todos os países detentores de reservas petrolíferas consideráveis, foi o adotado pelo Brasil em 1997, modelo este que não poderia ser mais inadequado, tendo em vista o interesse público na exploração e produção de petróleo e gás natural. Além dos seus problemas estruturais, mencionados acima, não se pode relegar o fato de que a Lei nº 9.478/1997, que instituiu o modelo das concessões petrolíferas, é inconstitucional, pois o concessionário não pode ser proprietário do produto da lavra, sob pena de contrariar o fato de que o petróleo é um bem público de uso especial e é também monopolizado pelo Estado (artigos 20, IX e 177 da Constituição de 1988).

[1] Artigo 26, caput da Lei nº 9.478/1997: “A concessão implica, para o concessionário, a obrigação de explorar, por sua conta e risco e, em caso de êxito, produzir petróleo ou gás natural em determinado bloco, conferindo-lhe a propriedade desses bens, após extraídos, com os encargos relativos ao pagamento dos tributos incidentes e das participações legais ou contratuais correspondentes” (grifos meus).
[2] ALFONZO, Juan Pablo Perez, El Pentágono Petrolero, Caracas, Ediciones Revista Política, 1967, pp. 39-40.

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