"Não existe essa coisa de sociedade" --a frase célebre, de Margaret
Thatcher, era a exposição da crença ultraliberal no individualismo.
Situado no polo oposto aparente do thatcherismo, o lulismo compartilha a
descrença nessa "coisa de sociedade": no lugar da coleção de indivíduos
atomizados da ex-premiê britânica, nosso presidente honorífico enxerga
uma coleção de corporações reivindicantes. É essa leitura da política
que explica a reação indignada do Planalto às críticas sobre a
deterioração da situação fiscal do país. Na visão do governo, os
"empresários" --os beneficiários da concessão de desonerações
tributárias-- comportam-se como traidores quando atiram pedras nas
autoridades que protegeram seus lucros.
Trata-se de uma forma de
auto-engano: o recurso habitual para conservar a ilusão num encanto que
já desapareceu.
A inteligência política de Lula, cantada em prosa e verso, é uma
qualidade real, mas circunscrita às conjunturas favoráveis. Formado no
sindicalismo, o presidente honorífico montou seu sistema de poder como
uma mesa ampliada de negociação sindical. Trajando o manto do Bonaparte,
o governo opera como Grande Negociador, distribuindo benesses aos
"setores organizados" em grupos empresariais, máfias políticas,
corporações sindicais e movimentos sociais. A estratégia funcionou, do
ponto de vista da reprodução do poder lulista, enquanto o cenário
econômico proporcionou recursos para atender às "reivindicações" dos
parceiros negociadores. Mas o ciclo da abundância encerrou-se,
explodindo a casca frágil do consenso político.
Na "era Lula", o Brasil esculpiu um modelo econômico impulsionado pelos
motores do crédito público e privado e da explosão do consumo. A "etapa
chinesa" da globalização proporcionou os combustíveis do modelo:
investimentos externos fartos, derivados da elevada liquidez
internacional, e altas rendas de exportação, oriundas da valorização das
commodities. A poção mágica diluiu-se com o colapso das finanças
mundiais, mas as reservas no tanque permitiram ao governo servir um
simulacro aditivado na hora das eleições de 2010. O tanque, agora, está
quase vazio: o governo reduz a bolsa-empresário enquanto pressiona o
Congresso para fechar a torneira que irriga as corporações sindicais.
Sem acesso à substância estimulante, os negociadores se dispersam --e
até os fiéis petroleiros ensaiaram uma "traição".
As "Jornadas de Junho" foram o primeiro sintoma do encerramento do
ciclo. Desconcertando o governo, centenas de milhares de pessoas tomaram
as ruas para dizer que a sociedade existe --e exige serviços públicos
dignos. O segundo sintoma foi o rearranjo do tabuleiro eleitoral
deflagrado pela unificação entre PSB e Rede, uma operação celebrada pelo
PSDB. O radar dos analistas ainda não detectou o alcance dos eventos,
mas o Planalto entendeu o que se passa. Eduardo Campos e Marina Silva
saltaram da condição de alternativas dissidentes à de candidatos
oposicionistas, enquanto Aécio Neves admitiu que os tucanos perderam o
estatuto de núcleo dirigente da oposição. Na prática, configurou-se uma
frente de oposição tricéfala --e os três aspirantes decidiram que o
primeiro turno de 2014 será tratado como uma eleição primária para a
escolha do desafiante da oposição unida.
O giro da política monetária americana, previsto para os próximos meses,
ameaça provocar uma tempestade perfeita no Brasil, desvalorizando o
real e pressionando o botão da inflação. Mesmo assim, Dilma Rousseff (ou
Lula da Silva) conserva o favoritismo. O fim de ciclo, por si mesmo,
não conduz automaticamente à reversão da fortuna eleitoral. Para
derrotar o lulismo, a frente oposicionista precisaria dialogar com os
cidadãos comuns: os manifestantes de junho e o país que os apoiou. Os
três aspirantes teriam que dizer que "essa coisa de sociedade" existe.
Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista
em política internacional. Escreveu, entre outros livros, "Gota de
Sangue - História do Pensamento Racial" (ed. Contexto) e "O Leviatã
Desafiado" (ed. Record). Escreve aos sábados.
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